Migalhas Contratuais

Todos querem apertar o botão vermelho do art. 393 do Código Civil para se ejetar do contrato em razão da covid-19, mas a pergunta que se faz é: todos possuem esse direito?

Todos querem apertar o botão vermelho do art. 393 do Código Civil para se ejetar do contrato em razão da covid-19, mas a pergunta que se faz é: todos possuem esse direito?

8/4/2020

Texto de autoria de Salomão Resedá

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. UM POUCO ANTES DA ALEGAÇÃO DE CASO FORTUITO; 3. EXISTEM PARÂMETROS PARA O CASO FORTUITO?; 4. A COVID-19 E A ALEGAÇÃO GENÉRICA DE CASO FORTUITO; 5. CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS

Palavras-Chave: Contratos. Inadimplemento. Caso fortuito. COVID-19.

Resumo: Em decorrência da pandemia instaurada pela COVID-19, muitas cidades brasileiras estabeleceram a quarentena compulsória. O lockdown imposto pelos governos estaduais acabou por resultar no rompimento do ciclo produto, levando muitas empresas e empresários a suspender suas atividades econômicas. Com isso, instaura-se no país um grau de pânico contratual onde há uma interpretação generalizada de que o evento coronavírus pode ser utilizado como causa de rompimento de cláusulas contratuais por ser enquadrado como caso fortuito. Portanto, conforme mencionado, todos querem apertar o botão vermelho para desfazer ou revisar os contratos, mas será que todos têm esse direito?

Introdução

Uma das principais expressões mencionadas no meio da pandemia instaurada pela COVID-19 é: "rompimento contratual". As cláusulas contatuais antes cumpridas rigorosamente – seja na modalidade adesão ou consensual, propriamente dita – passaram a ser observadas como fonte de injustiça e desequilíbrio social, imprimindo, assim, um generalizado sentimento de nova análise e modulação do quanto ali previsto.

Com o estabelecimento do lockdown, parte da economia sofrerá com grandes impactos tanto no que se refere à produção como à circulação de riquezas. Num patamar global, há consenso no sentido de que as nações afetadas experimentarão uma recessão mundial, sendo que, especificamente para o Brasil, a projeção não é muito animadora, haja vista a perspectiva de Produto Interno Bruto no patamar de 0,02%1 no ano de 2020 estabelecida pelo próprio governo2. Passando para a análise das Instituições Financeira de Crédito, esta projeção chega a identificar uma retração de 1% no Produto Interno Bruto nacional3.

As notícias não amistosas que circulam no mundo econômico impuseram um sentimento de revisão geral dos contratos. O desespero foi incutido na sociedade e a necessidade de romper parâmetros outrora inexistentes passou a ser algo concreto. O termo "colapso" saiu do mundo da fantasia e bate às portas da realidade. Com isso, há a possibilidade de destruição das cláusulas dos contratos – ou, no mínimo, sua revisão – pois vivencia-se uma situação de flagrante caso fortuito. Palmilhando por este caminho de teses, estaria, então, estabelecida a possibilidade de modificação da perspectiva contratual.

Aliás, a frase anterior encontra um equívoco, pois, atualmente, não há que se falar em "possibilidade". A sensação que é passada para a sociedade é a de que há o dever de revisar os contratos. Pais rejeitam-se a pagar as escolas ou faculdades dos seus filhos, mesmo os centros educacionais ofertando o acesso à conteúdo através de aulas virtuais. Inquilinos impõe aos seus locadores a obrigação de reduzir o valor do aluguel a patamares que são indicados por eles próprios, sem qualquer parâmetro, mas sob a justificativa de uma espécie de fragilidade nascida a partir da situação de excepcionalidade social.

Parece que se instalou no país, em matéria contratual, um estado de “pânico”. As relações contratuais ganharam uma fisionomia de algo tenebroso que devem ser questionadas, de todas as formas, por conta da pandemia que assola o mundo. Os contratos são, então, vistos como entraves que devem ser revistos. Todos querem apertar o botão vermelho para se ejetar da avença, mas a pergunta que se faz é: todos têm esse direito?

Um pouco antes da alegação de caso fortuito

Fazendo uma análise simples, e utilizando como exemplo a mesma empresa com seus braços de atuação em seguimentos de mercado, percebem-se situações diversas. No Brasil, através de aplicativos, há um startup que tanto atua no ramo de transporte de pessoas, como no de entrega de alimentação em domicílio, os denominados deliverys. Trata-se do mesmo tronco, porém com ramificações em áreas diversas de atuação.

Com o avanço da COVID-19 é possível perceber uma forte contração na utilização do serviço de transporte de pessoas. Porém, por outro lado, um incremento, também, agudo, no que se refere a utilização dos deliverys. Pode-se ciar, também empresas que não experimentaram tantos reflexos negativos4, ou mesmo atuam de forma positiva com as finanças, como as de alimentação que, conforme relatado pela mídia, tiveram aumento de venda de 18.6%5. Isso já taz à mesa o entendimento segundo o qual a pandemia não afeta negativamente todos os ramos da economia.

Toda relação jurídica criada deve ser cumprida. Quando dois polos se posicionam na perspectiva subjetiva de um contrato, nasce tanto para o sistema jurídico, como para as partes envolvidas, a esperança de que a avença seja adimplida da forma como foi previamente ajustada. Ocorre que, no curso do caminho até o seu ponto final podem ocorrer diversos desvios que resultarão em inadimplemento.

Para a maioria das situações de inadimplência o ordenamento se preocupou em estabelecer regras sancionatórias que resultarão na responsabilidade contratual e na possibilidade de imposição, por parte dos contratantes, de cláusulas penais, a fim de assegurar a prévia quantificação dos danos que, porventura, vierem a ocorrer com a impontualidade. O descumprimento não pode ser encarado como um comportamento ordinário, pois ele representa o espelho, basicamente, de duas situações: quando o devedor não se programou previamente para suportar os custos e as exigências dela decorrentes – mesmo, quando ele não quis cumprir de forma adequada - ou quando ocorre alguma situação imprevista que extrapola o limite do razoável, conduzindo, neste ponto, ao descompasso do cumprimento que, sem tal acontecimento, ocorreria normalmente.

Aquele que se encontra obrigado a cumprir uma obrigação deve se postar de forma diligente, buscando sempre o seu adimplemento, sob pena de recair sobre si a responsabilização contratual e suas consequências. A impontualidade do devedor resultará numa série de consequências jurídicas de caráter punitivo, como no caso da imposição de eventual processo em que se busque indenização pelos danos experimentados pelo credor. Também, ainda, pela via judicial, poderão ser adotados mecanismos de cumprimento coercitivo, como se pode observar, por exemplo, na demanda de adjudicação compulsória em que se visa retirar o bem da propriedade do devedor para transferi-la ao patrimônio do o credor.

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1 BRASIL, Agência. Governo diminui para 0,02% previsão de crescimento do PIB neste ano Governo diminui para 0,02% previsão de crescimento do PIB neste ano. Acessado em 2 abril 2020.

2 Conforme notícia publicada na coluna de Jamil Chade, do site Uol, a ONU projeta um PIB ainda menor para o país. Segundo o repórter: "com a queda prevista pela ONU, o Brasil volta a registrar mais um ano de perda. Depois de uma queda de 3,5% do PIB em 2015 e 3,3% em 2016, a economia nacional registrou fracos desempenhos em 2017 e 2018, com uma expansão de apenas 1,3%. No ano passado, o crescimento do PIB ficou em apenas 1%. Uma expansão de 3% ocorreu apenas em 2013. Acessado em 3 abril 2020.)

3 SÃO PAULO, Folha. JPMorgan e Goldman Sachs projetam profunda retração e PIB brasileiro na casa de -1% neste ano. Acessado em 2 abril 2020.

4 Segundo o site Tecmundo, o uso do serviço do Uber nas cidades alcançadas pela COVID-19 chegou a ter retração de 70%, conforme se observa na matéria intitulada "Uso do Uber cai em até 70% em cidades mais afetadas por COVID-19. Acessado em 2 abril 2020.

5 R7. Venda em supermercado sobe 18,6% e turismo cai 28,5% por covid-19. Acessado em 2 abril 2020.

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Coordenação

Eroulhts Cortiano Jr. é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Pós-doutor em Direito pela Universitá di Torino e pela Universitá Mediterranea di Reggio Calabria. Conselheiro Estadual da OAB/PR. Secretário-geral do IBDCONT. Advogado em Curitiba/PR.

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

José Fernando Simão é professor da USP. Advogado.

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Maurício Bunazar é mestre, doutor e pós-doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Diretor executivo e fundador do IBDCONT. Professor do programa de mestrado da Escola Paulista de Direito. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do IBMEC-SP.