Migalhas Consensuais

Por uma nova advocacia

Lizandra Colossi comenta sobre a advocacia moderna com um olhar inclusivo para métodos alternativos de resolução de conflitos.

17/10/2024

A advocacia contemporânea convida o profissional do Direito a ter um olhar inclusivo para os outros métodos de solução de controvérsias, que não o Judiciário.

Se pensarmos numa linha do tempo, a conciliação foi trazida pelas Ordenações Filipinas, e caiu em desuso - ou melhor, foi desacreditada - pelo espírito positivista do século 19, e de meados do século 20, que colocaram a “vontade da lei” como centro do Direito. Foi somente após a Segunda Grande Guerra que o mindset mundial, em choque com os horrores, atrocidades e crimes, perpetrados apesar da Constituição de Weimar, começou a se reconfigurar numa feição mais humanista novamente, trazendo de volta os conceitos da dignidade da pessoa humana, já apregoados por Cícero na Roma antiga, e por Kant na Idade Moderna, procurando destacar, de novo, o homem como o centro da ordem jurídica, seja nacional, seja supranacional.

Nosso CPC de 1973, e, permitam-me, vou focar na área cível a que me dediquei e estudei em todo o tempo da minha advocacia – previa a conciliação, sobretudo no início do processo judicial. Em 1988, a CF, norma máxima de um Estado democrático de Direito, dispôs, no preâmbulo, sobre o seu compromisso com a solução pacífica das controvérsias.

Em 2010, o Judiciário, numa avalanche crescente de processos, decidiu socorrer-se da conciliação e da mediação de conflitos – esta última praticada no país, de forma extrajudicial, desde a década de 90 – para incentivar as pessoas a resolverem, por si mesmas, os seus conflitos de interesses, reduzindo assim o número de processos em curso. Nesse sentido, inaugurou, normativamente, a nova visão sobre a conciliação e a mediação como métodos adequados de solução de conflitos, não apenas "alternativos” ao Judiciário. Estava inaugurada a Justiça multiportas, ou seja: a possibilidade de se resolverem as disputas entre as pessoa de maneira não litigante, numa construção consensual.

Em 2015, a lei 13.105, o novo CPC estimula a conciliação e a mediação por meio da previsão do seu art. 3o, §3º: é dever das partes, dos procuradores, dos juízes e promotores promoverem a conciliação e a mediação, além do Código dedicar uma seção à mediação que chamou de judicial. Muito embora Judiciário e mediação pouco ou nada tenham em comum pela própria natureza e e essência dos seus institutos, passou-se a realizar a mediação como forma de resolver o conflito antes que se desenrolassem as fases processuais, ou quando se pedisse a sua suspensão. Com isso, o CPC 2015 aposta na mediação para oportunizar às pessoas uma tentativa consensual mais aprofundada, dialogada, do que a conciliação, sendo essa uma das diferenças entre os institutos.

A lei 13.140/15 insere, no panorama legislativo, a mediação de conflitos como forma de solução de controvérsias, reconhecendo a experiência da consensualidade, realizada na seara extrajudicial por meio de Câmaras especializadas, e de mediadores ad hoc, desde os anos 90 no Brasil. Passados, contudo, quase 9 anos da promulgação do Marco Legal da mediação, no entanto, ainda é tímida a sua aceitação, e atribuo isso a alguns fatores: desconhecimento/desconfiança dos advogados, desconhecimento/desconfiança dos jurísdicionados, gestão emocional inadequada dos próprios conflitos entre as pessoas físicas e jurídicas, desejo de reparação por meio de um delírio indenizatório, dentre outros. 

Se nos propusermos a falar sobre as habilidades necessárias à advocacia contemporânea, portanto, precisaremos incluir aquelas correlatas à Justiça multiportas, expertises que auxiliarão o advogado da defesa do seu cliente de forma integral, e adequada. Vou enumerar algumas, em rol não exaustivo, pois a cada cliente, a cada situação conflitiva da vida com que lidamos, novas habilidades ou skills são desenvolvidas, testadas, e aprovadas, ou não. As que gostaria de sublinhar1  são:

  1. Tomada de perspectiva, ou a habilidade de tomar a perspectiva de outra pessoa como verdadeira;
  2. Ausência de julgamento, ou neutralidade - o que não é fácil porque tomar posições é quase uma segunda natureza na sociedade polarizada em que vivemos;
  3. Reconhecer as emoções em uma pessoa, e ter a habilidade de ajudar na sua gestão;
  4. Gerar conexão com o cliente, num elo de confiança;
  5. Conjugar humildade, sagacidade e firmeza, considerando os outros pontos de vista, tendo a habilidade de manejá-los numa mesa de negociação, sem deixar de defender o do seu cliente.

A tomada de perspectiva é uma habilidade por meio da qual atravessamos uma ponte imaginária entre quem nós somos, como vemos o mundo, e nos atrevemos - e é isso, é um atrevimento no bom sentido - a adentrar o universo do outro, sua forma de ver e encarar as situações da vida, notadamente o problema jurídico que enfrenta. Nessa travessia, não levamos conosco a nossa visão, ou, ao menos, procuramos momentaneamente neutralizá-la para conseguir, de fato, escutar o outro, sem ruído. Quando o advogado consegue fazer isso, acessa mais facilmente as reais intenções que estão por trás de cada postulação do seu cliente, e passa a entender o que o move a procurar suporte jurídico.

A partir dessa constatação, o advogado da contemporaneidade é convidado, para não dizer convocado pelo Código de Ética da Advocacia, a pensar na possibilidade de resolução consensual da demanda do seu cliente. Se não houver risco para ele, seja por perecimento do direito, ou prescrição da ação, por exemplo, ele pode aconselhar seu constituinte a resolver a disputa numa construção consensual, seja pela conciliação, pela negociação harvardiana2, ou pela mediação de conflitos. Ao fazer essa oferta, o advogado precisa informar ao seu cliente o tempo aproximado de cada um desses caminhos, suas vantagens, e desvantagens, se houver. Como num tabuleiro de xadrez, a escolha do caminho a seguir é crucial para o sucesso da causa.

A ausência de julgamento, ou um estado de neutralidade, é um desafio, tendo em vista que estabelecer quem está certo, quem está errado, quem detém o direito, e quem não, parecem operações matemáticas consolidadas nas cabeças dos homens e mulheres contemporâneas, notadamente pela polarização em que as sociedades pós-modernas vivem. Contudo, do advogado é esperada a neutralidade, o equilíbrio das emoções, a estratégia. Ainda que discorde do seu cliente, ainda que, para ele, o cenário desejado não seja o ideal, o advogado precisa atender a vontade do seu cliente, se esta não for ilegal, nem contrária aos seus próprios princípios morais. Ninguém deve vender a alma para pegar uma causa, mas querer que o outro escolha o que fazer com suas relações jurídicas da mesma forma que nós o faríamos é, no mínimo, míope. É preciso não julgar; é necessário, uma vez tomada a perspectiva do outro, analisar com o crivo da neutralidade, da racionalidade e da empatia, ao mesmo tempo. E tudo isso configura, sim, um desafio.

Ademais, é preciso não julgar, inclusive, para entrar em contato com as outras posições na mesa de negociação. Um bom negociador não desdenha das outras visões das pessoas envolvidas na controvérsia, nem tampouco as tenta derrubar ou invalidar; ao contrário, escuta, aprende e procura pontos de convergência, saídas que possam beneficiar a todos. Isso só é possível sem julgamento - do contrário, nosso campo de visão fica reduzido, e limitadas as possibilidades de solução. Fazer justiça, para a construção do consenso, não é apontar quem está certo ou quem está errado: é acomodar interesses, respeitado o Direito positivo e a vontade das pessoas – o que pode se mais desafiador do que se utilizar de uma tese, ou sustentar nos Tribunais Superiores.

Reconhecer as emoções em uma pessoa, e ter a habilidade de ajudar na sua gestão, só pode acontecer se as duas premissas anteriores tiverem sido observadas - a tomada de perspectiva, e a ausência de julgamento. Reconhecer emoções numa pessoa é, inicialmente, entender que ela é humana, dotada de razão, mas também de emoção, e que essa conduz boa parte das decisões de sua vida – se não todas, em muitas situações. Estudos apontam que as emoções são o pano de fundo das nossas escolhas, desde o planejamento de uma viagem, a aquisição de um carro, e até mesmo a cor da roupa do dia: como a pessoa vai se sentir em determinado local, o prazer de dirigir determinado carro ou de ter algo novo e colorido para vestir.

Reconhecer emoções facilita ao advogado apontá-las ao seu cliente, com respeito e cordialidade. É informar que, apesar da raiva que o cliente sente, em relação à parte contrária, é possível superar isso em prol da composição de interesses urgentes a uma família ou a uma empresa, por exemplo. É dizer, assertiva e respeitosamente, que, apesar do incômodo que causa, ele ou ela precisam se autoimplicar na decisão, visto que somente quem vive o problema tem, de fato, as chaves para a sua solução, em qualquer área do Direito.

O que as pessoas precisam é de um bom guia, ou de um excelente CEO da disputa, que não só explica as questões legais envolvidas, mas acolhendo, e transformando pela escuta empática as emoções de raiva, frustração e dor inicias e comuns a todo e qualquer conflito3, consegue dar a ele um tratamento consensual, caso o cliente aceite, ainda que precise de tempo para isso.

Gerar conexão com o cliente, num elo de confiança, não só garante a boa condução da causa, mas também a sua fidelização. Conectados, cliente e seu patrono passam a entender a situação sob um mesmo enfoque - e, na criação dessa realidade, a postura do advogado é crucial. Gerar conexão é o que os franceses chamam de rapport – em português, uma ligação de empatia entre as pessoas, que passam a se entender num nível além do racional, envolvido o seu emocional também. Nesse convívio agora estabelecido, a confiança surge naturalmente.

Quando há confiança estabelecida entre o cliente e o seu defensor, não importa tanto o caminho que o patrono trilhará: o cliente confia nele. Isso faz uma diferença enorme no momento de apresentar caminhos consensuais de solução, como a negociação, ou a mediação. O advogado, que tem a responsabilidade de discernir a melhor estratégia de solução para o problema posto, e, uma vez encontrada, apresentá-la com tranquilidade ao seu cliente. Essa postura mental de confiança, de entrega por parte do constituinte ao seu patrono, é rara hoje em dia, em tempos de Google e ChatGPT - portanto, o único caminho possível para a construção bem-sucedida do consenso passa pelo elo de confiança advogado- cliente.

A construção de consenso é mais exigente para as pessoas, físicas ou jurídicas, do que a propositura de demanda. E, talvez, esse seja um dos motivos de, ainda, não ter sido assumida como a grande saída estratégica da advocacia: os clientes não quererem se autoimplicar na solução, não quererem enfrentar a outra parte que não por meio do litígio, da discussão instrumentalizada num processo judicial.

Conjugar humildade, sagacidade e firmeza, considerando os outros pontos de vista, tendo a habilidade de manejá-los numa mesa de negociação, mas defendendo o do seu cliente - isso não é pouca coisa. Deixar o ego na porta, como diz Sherrie Abney, é um desafio. Somos formados e forjados na faculdade a ostentarmos o título de doutores, sem termos feito doutorado... nada contra título, muito pelo contrário: acredito que cada conquista, seja ela revestida por título ou não, merece ser reconhecida, e utilizada a favor do profissional, mas sem, com isso, formar nele a falsa impressão de que é o centro de tudo, o suprassumo da sua categoria, o máximo da capacidade em uma pessoa só... isso não é verdade, e é desgastante. Acreditem. Quem vai por esse caminho se sente cobrado ao extremo, seja por si mesmo, seja pelos outros; é refém dos elogios, e vive se comparando com os colegas, medindo forças para ver se alguém o ultrapassou... como no conto da Cinderela, quase como se perguntando: espelho, espelho meu, existe algum profissional melhor do eu? E a resposta é sim, e não. Sempre haverá saberes mais desenvolvidos por outra pessoa, que tem um chamado específico para aquela matéria. A visão de cada um, agregada ao seu estudo, constrói a nuance pròpria de cada profissional, e o torna único. Quem nós somos, a nossa singularidade, deve ser expressa no nosso trabalho também, sob pena de sermos autômatos, copycats de outros, e reféns do ChatGPT, ou do Google...

Precisamos encontrar quem nós somos na advocacia. Numa nova advocacia. De propósito e de construção de consenso, se isso for o melhor para os nossos clientes. Precisamos ser fiéis à nossa luz primordial para o trabalho. E desempenhar nosso múnus constitucional com amor, com esmero, e com alegría também. Trabalhar para viver, e não viver para trabalhar.

Que cada um dos doutores que conclui esta leitura possa refletir: qual o meu papel enquanto advogado? Como posso desempenhar ainda melhor a minha função essencial à justiça?

___________

1 BRASIL. Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988 Disponível aqui.

2 BRASIL. Lei 13.105, de 13 de março de 2015. Disponível aqui.

3 BRASIL. Resolução 125, de 29 de novembro de 2010. Conselho Nacional de Justiça

4 (CNJ). Disponível aqui.

5 FISHER, Roger; URY, William; PATTON, Bruce. Como chegar ao Sim: como negociar acordos sem fazer concessões. Tradução de Rachel Agavino. Rio de Janeiro: Sextante, 2018.

6 WEISEMAN, Theresa, citada por Brené Brown. O poder da Empatia. Disponível aqui.

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Colunistas

Mariana Freitas de Souza é advogada e mediadora. Presidente do ICFML Brasil. Diretora do CBMA. Membro da Comissão de Mediação do Conselho Federal da OAB. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/RJ. Membro da Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem do IAB. Membro do Global Mediation Panel da ONU. JAMS Weinstein International Fellow. Sócia do PVS Advogados.

Samantha Longo é advogada e professora. Membro do FONAREF – Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências e membro do Comitê Gestor de Conciliação, ambos do CNJ. Conselheira da OAB/RJ. Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pela UniCuritiba. Negotiation and Leadership Program na Harvard University. LLM. em Direito Empresarial pelo IBMEC/RJ. Autora de diversos artigos, coordenadora de obras coletivas, coautora da obra "A Recuperação Empresarial e os Métodos Adequados de Solução de Conflitos" e autora do livro "Direito Empresarial e Cidadania: a responsabilidade da empresa na pacificação dos conflitos".