Migalhas Consensuais

Harmonizando família e negócios: Advocacia colaborativa na sucessão empresarial

Esperar que soluções para questões familiares complexas se deem como em um passe de mágica após o falecimento do autor da herança é uma ilusão que deve ser afastada.

22/8/2024

 É sabido que, globalmente, a maioria das empresas são familiares. No Brasil, a realidade não é distinta; elas são cerca de 90% (noventa por cento) das empresas existentes. Tais empresas respondem por aproximadamente 75% (setenta e cinco por cento) da mão de obra do país e por 65% (sessenta e cinco por cento) do PIB (IBGE).

Considerado o contexto acima, fica evidente a importância das referidas empresas para a economia do país. E devido a essa relevância, torna-se ainda mais preocupante a informação de que apenas 36% (trinta e seis por cento) dessas empresas sobrevivem à segunda geração e só 19% (dezenove por cento) à terceira geração, segundo dados do Banco Mundial.

Antes de se adentrar nos fatores que dificultam a continuidade das empresas familiares ao longo das gerações, importante uma apreciação do que se pode entender por “empresas familiares”, sendo certo que, sob o aspecto de estrutural, elas se valem de um dos tipos societários previstos no ordenamento jurídico, sendo, em regra, sociedades limitadas ou sociedades anônimas.

Do ponto de vista doutrinário, há diversas correntes que se dedicam ao tema, com definições mais restritivas ou mais amplas. Para fins deste artigo, será adotada uma definição mais abrangente, tomando por empresa familiar aquela cuja quotas ou ações sejam, de forma parcial ou total, detidas por dois ou mais membros de uma família, por um ou mais grupos familiares, de modo que estes venham a interferir direta ou indiretamente na gestão e condução dos negócios a ela relacionados.

Apresentado o cenário do país e estabelecido o conceito de empresa familiar que será utilizado neste artigo, passa-se à apreciação das eventuais razões pelas quais somente uma minoria dessas empresas sobrevive à troca de gerações.

De acordo com o economista Thomas Michael Lanz, “as estatísticas apontam que a mais importante causa de encerramento das atividades ou de venda de empresas familiares são os conflitos. Dentre eles, aqueles que giram em torno da disputa pela sucessão dos negócios representam 65% no mundo.”1 Tem-se, assim, que a maior causa do fim do ciclo dos negócios na família empresária se deve a conflitos ligados à sucessão do patriarca/matriarca da família para a geração seguinte.

Esses conflitos têm naturezas diversas e muitos decorrem de questões familiares não necessariamente atreladas ao negócio em si, mas que interferem significativamente na sucessão. Disputas por reconhecimento e poder, confusão entre patrimônio pessoal e patrimônio empresarial, conflitos geracionais e visões distintas de futuro são apenas alguns exemplos de problemas que se apresentam nessas situações.

Esperar que soluções para questões familiares complexas se deem como em um passe de mágica após o falecimento do autor da herança é uma ilusão que deve ser afastada. O que ocorre é justamente o contrário. No momento do luto, as pessoas estão emocionalmente mais fragilizadas e a tendência é a de que discussões tendam para a competitividade e as partes se comportem como rivais. Para piorar, quem deveria ou poderia ajudar os envolvidos a entender a sua vontade não está mais presente. E mais, será que sua vontade será considerada após a sua morte? Qual vontade há de prevalecer?

É nessa conjuntura que tanto o método a ser utilizado para dirimir as controvérsias decorrentes da sucessão quanto o momento dessa escolha devem ser cuidadosamente considerados.

Há muito já se defende a utilização não apenas dos métodos adversariais (ações judiciais ou arbitrais), como também de alguns métodos consensuais, notadamente a negociação direta e a mediação em tais situações. Menos referências são encontradas quanto à Advocacia Colaborativa - método de solução de conflitos extrajudicial, consensual e voluntário, que estimula a autonomia das partes e está fincado em três pilares: transparência, não litigância e cláusula de retirada, cuja adequação para o tratamento desses conflitos parece perfeita2.

O método foi criado nos anos 90 por um advogado familiarista norte-americano chamado Stuart Webb. Após anos de advocacia contenciosa tradicional, Webb concluiu que questões de família não deveriam ser tratadas como uma questão meramente jurídica, mas sim como uma questão de relacionamento com consequências jurídicas. A proposta era criar um ambiente em que as partes pudessem se sentir suficientemente seguras para construir acordos a “quatro mãos”: cada parte assistida por seu advogado, mas todos trabalhando como uma equipe e não como adversários.

Para tanto, algumas regras foram estabelecidas: (i) o processo é voluntário e não adversarial. Ninguém está obrigado a participar e todos podem desistir do processo a qualquer momento, mas aqueles que decidirem participar assumem o compromisso de adotar um comportamento não litigioso e de negociar com base em interesses; (ii) há um compromisso de não litigância com cláusula de retirada: as partes se comprometem a agir como um time e os profissionais que atuam no processo colaborativo estão vedados de participar do litígio, devendo se retirar do processo, caso as partes não cheguem a um acordo; (iii) o processo é confidencial: as partes não podem divulgar a terceiros as informações ali obtidas ou utilizá-las em um eventual futuro processo litigioso; (iv) existe o dever de transparência e de compartilhamento de informações: toda informação relevante para a solução da questão deve ser trazida pelos participantes. Essas são as bases que sustentam a atuação colaborativa enquanto método.

Posteriormente, o método foi incrementado para permitir – e estimular - a possibilidade de que as equipes de negociação nos processos colaborativos fossem compostas por profissionais com diferentes expertises. Em casos de família, era muito comum a inclusão de um profissional da área de saúde e de um profissional de finanças, por exemplo. Por essa razão, alguns doutrinadores o defendem como um método multidisciplinar.

No Brasil, o método foi inicialmente objeto de estudo por grupos de profissionais nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo em 2010, tendo sido adotada a denominação de “Práticas Colaborativas” e recebido o Prêmio Innovare na categoria Advocacia em 2013, com a criação, na sequência, do Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas em 2014.

Atualmente, há diversos grupos de estudos espalhados pelo Brasil, dedicados ao estudo, aprofundamento e aplicação das Práticas Colaborativas em diversas áreas. No âmbito da advocacia brasileira, a OAB Federal e a maioria das OABs estaduais têm Comissões dedicadas ao tema. No mais, vale destacar que desde 2022, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei para regulamentação do método no país3.

Apresentada a Advocacia Colaborativa, passa-se agora a avaliar a sua adequação para o tratamento de conflitos decorrentes de sucessão em empresas familiares.

Famílias que estão em processo de transição geracional e de reorganização empresarial não deveriam se colocar ou ser tratadas como partes antagônicas ou em oposição. Para tanto, todos os envolvidos devem estar atentos ao estabelecimento de um ambiente propício para as negociações e voltado para o entendimento. Assim, há que se ter uma abordagem respeitosa, abrangente, que dê conta de forma adequada da multiplicidade de aspectos envolvidos, dentre os quais se destacam, além do jurídico, o emocional e o financeiro, preservando as relações de forma construtiva, objetivando um futuro sustentável.

Neste tocante, deve-se observar que os conflitos são inerentes à natureza humana. O que é de fato relevante é a forma como eles são abordados e enfrentados.

E é justamente pela pauta subjetiva presente na maioria dos conflitos decorrentes da sucessão empresarial que aqui se defende a adoção da Advocacia Colaborativa como um método adequado para tratá-los. Uma negociação colaborativa é dividida em cinco momentos: (i) identificação de interesses, preocupações e objetivos de cada envolvido; (ii) apresentação das informações relevantes para o caso; (iii) desenvolvimento de possíveis soluções; (iv) avaliação das opções na mesa; (v) e, finalmente, negociação de uma solução.

O papel do advogado colaborativo, além de assessorar seu cliente tecnicamente, é também garantir que a negociação tenha por premissa conhecer e respeitar as necessidades de todos à mesa de maneira equilibrada, trazendo ferramentas que auxiliem as partes na criação de soluções criativas.

Caberá ao advogado, ainda, sugerir a inclusão na equipe de negociação de especialistas que eventualmente se façam necessários naquela discussão. Em se tratando de questões negociais, é natural que haja matérias técnicas que devam ser adequadamente compreendidas pelos tomadores de decisão.

É fundamental, ainda, que todos estejam cientes de que um acordo colaborativo deve resultar em uma solução de benefício para todos os envolvidos, com a qual todos eles consigam conviver. Isso tende a preservar às relações familiares e a permitir a manutenção da empresa de forma saudável.

Quanto ao momento adequado para utilização de tal método, o recomendável é que ele seja adotado já nas primeiras tratativas envolvendo atos referentes à sucessão empresarial, evitando a eclosão de conflitos. A prevenção do conflito e o trato de questões pontuais que surjam no processo tendem a trazer melhores resultados tanto para as relações familiares quanto para a empresa, trazendo segurança e previsibilidade para o negócio. No mais, deve-se destacar que o ideal é que a sucessão seja tratada enquanto vivo o empresário (patriarca ou matriarca), para que este possa gerenciar as discussões no âmbito familiar, participando diretamente das decisões relevantes para a boa relação da família e futuro da empresa.

Nessa linha, o planejamento sucessório vem sendo um instrumento cada vez mais utilizado por aqueles que buscam exercer sua autonomia com relação ao patrimônio construído, definindo em vida a forma de sua distribuição, tanto quantitativa quanto qualitativamente, respeitados os limites legais. Um bom planejamento sucessório tem se mostrado uma excelente forma de organização das relações familiares. E para que esse planejamento seja tido como adequado, ele deverá considerar, enfrentar e tratar os potenciais conflitos dele decorrentes.

Pelas razões expostas acima, há que se entender que um planejamento sucessório assessorado por advogados colaborativos poderá tratar, além da pauta objetiva, questões decorrentes da pauta subjetiva que frequentemente levam ao fim da atividade empresarial quando mal conduzidas. As Práticas Colaborativas, portanto, podem ser um grande diferencial já no âmbito de um planejamento sucessório.

De qualquer forma, a escolha pela Advocacia Colaborativa quando já instaurado o conflito decorrente da sucessão empresarial também se mostra adequada, por se permitir que questões subjacentes, muitas vezes não tratadas em uma negociação estritamente objetiva, sejam devidamente abordadas pelas partes. Isso permite uma negociação franca e o alcance de uma solução com a qual todos os envolvidos consigam conviver.

A verdade é que a continuidade da empresa pela família empresária é fruto de uma sucessão bem conduzida. E a forma como ela é realizada faz toda a diferença. Certo é que, pelas ferramentas que detém para a condução de todo o processo de cocriação, a adoção da Advocacia Colaborativa em assuntos dessa natureza em muito poderá contribuir para soluções satisfatoriamente válidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABNEY, Sherrie R. Avoiding Litigation: a guide to civil collaborative law. Indiana: Trafford, 2006.

ABNEY, Sherrie R.. Civil Collaborative Law: the road less travelled. Indiana: Trafford, 2011.

CAMERON, Nancy J. Práticas Colaborativas: aprofundando o diálogo. Tradução de Alexandre Martins. São Paulo: IBPC, 2019, P. 27

TESLER, Pauline. Direito Colaborativo. São Paulo. Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas, 2021.

TEPEDINO, Gustavo e PEÇANHA, Danielle Tavares. Métodos alternativos de solução de conflitos no direito de família e sucessões. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado e RODRIGUES, Renata de Lima (Coord.). Contratos, família e sucessões: diálogos interdisciplinares. Indaiatuba, SP: Foco, 2021, p. 32.  

__________

1 LANZ, Thomas Michael. Sucessão nas empresas familiares. In Aspectos relevantes da empresa familiar e da família empresária: governança e planejamento patrimonial sucessório/ Roberta Naoc Prado (coord.). São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 216. 4 IDEM, p. 242.

2 Para fins deste artigo, os termos Práticas Colaborativas e Advocacia Colaborativa serão utilizados como sinônimos.

3 PL 890/22, atualmente encontra-se aprovado pela CCJC e segue para o Senado.

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Colunistas

Mariana Freitas de Souza é advogada e mediadora. Presidente do ICFML Brasil. Diretora do CBMA. Membro da Comissão de Mediação do Conselho Federal da OAB. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/RJ. Membro da Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem do IAB. Membro do Global Mediation Panel da ONU. JAMS Weinstein International Fellow. Sócia do PVS Advogados.

Samantha Longo é advogada e professora. Membro do FONAREF – Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências e membro do Comitê Gestor de Conciliação, ambos do CNJ. Conselheira da OAB/RJ. Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pela UniCuritiba. Negotiation and Leadership Program na Harvard University. LLM. em Direito Empresarial pelo IBMEC/RJ. Autora de diversos artigos, coordenadora de obras coletivas, coautora da obra "A Recuperação Empresarial e os Métodos Adequados de Solução de Conflitos" e autora do livro "Direito Empresarial e Cidadania: a responsabilidade da empresa na pacificação dos conflitos".