Migalhas Consensuais

Batna e fé – A (pouca) procura pelos métodos extrajudiciais para solução de litígios

A coluna explora a dificuldade em difundir métodos extrajudiciais, como mediação e negociação, para resolver conflitos. A inspiração veio de uma palestra que destacou como mostrar que a alternativa ao acordo (BATNA) no Judiciário é geralmente pior pode atrair mais pessoas para esses métodos.

20/6/2024

Difícil imaginar qual a relação entre as palavras do título.

Pois bem, tentarei fazer com que acompanhem meu raciocínio para chegar na ligação entre elas e o que me leva a conclusão do porquê de uma das dificuldades de se difundir o uso dos métodos extrajudiciais para resolver conflitos, principalmente os autocompositivos como mediação e negociação.1

A inspiração para escrever esse artigo me surgiu depois de duas experiências ocorridas no mesmo dia.

A primeira delas tratou-se de uma belíssima palestra sobre Mediação de Conflitos (mais precisamente de como atrair mais pessoas para usá-la), organizada pelo brilhante ICFML.2 O expositor nos trazia uma ideia simples, porém genial: Trazer os litigantes para mediação é bem simples, dizia ele, basta demonstrar que o BATNA deles é sempre pior, já que o Judiciário se encontra sobrecarregado, custoso e, não poucas vezes, ineficiente.3

Aqui uma simplória explicação do que seria BATNA apenas para fins de melhor compreensão desse artigo. 

BATNA - Best Alternative To a Negotiated Agreement ou MAANA - Melhor Alternativa A Negociação de um Acordo4, em português, nada mais é que “o que acontece se eu não fechar esse acordo”. Não fechar um acordo sempre é uma alternativa, o importante é saber se ela é melhor que anuir com o acordo proposto.

Durante o procedimento de mediação, o mediador incentiva as partes a analisarem a sua BATNA, se questionando se o que tenho fora da mesa de negociação (e é preciso conhecer e identificar, previamente, o que seria isso) é melhor que o desfecho da composição.

Geralmente o que se tem fora da mediação é outra maneira de se resolver o conflito, sendo que, na maioria dos casos, essa alternativa seria levar a questão para o Poder Judiciário decidi-la.

Daí o trazido pelo expositor.

É fácil demonstrar para qualquer um que levar uma questão para o Estado, isto é, para um dos nossos Tribunais, com certeza e na esmagadora maioria das vezes, é algo bem pior do que o pior acordo que se apresenta.

E não sou eu que pensa assim.

A FGV criou em 2009 o ICJBrasil, o Índice de Confiança na Justiça no Brasil. Trata-se de um levantamento de natureza qualitativa com objetivo de acompanhar de forma sistemática o sentimento da população em relação ao Judiciário brasileiro.5

Retratar a confiança do cidadão em uma instituição significa identificar se o cidadão acredita que essa instituição cumpre a sua função com qualidade, se faz isso de forma em que benefícios de sua atuação sejam maiores que os seus custos e se essa instituição é levada em conta no dia a dia do cidadão comum.

Em 2017 esse índice era de 24%, ou seja, de cada 100 pessoas apenas 24 confiavam no Judiciário. Para 76% delas o Poder Judiciário é considerado lento, caro e difícil de utilizar.

A má avaliação da Justiça também reflete as dimensões de honestidade, competência e independência.

Em 2021, 70% dos entrevistados consideraram o Poder Judiciário nada ou pouco honesto, ou seja, a maioria da população entendeu que essa instituição tem baixa capacidade para resistir a subornos. Além disso, 61% dos respondentes consideraram que o Judiciário é nada ou pouco competente para solucionar os casos; e 66% acreditam que o Judiciário é nada ou pouco independente em relação à influência dos outros Poderes do Estado.6

Aqui vale a pena trazer um dado paradoxo da mesma pesquisa que, muito embora os números acima mostrarem um resultado pessimistas, o fato é que, dentre as pessoas entrevistadas, 89% afirmaram que ainda buscariam o Judiciário para solucionar um problema.

Pois bem, retornemos à segunda experiência que mencionei, ocorrida no mesmo dia da palestra.

Iniciei uma negociação, como advogado, representando um cliente onde ele pretendia a devolução de um valor pela rescisão unilateral de um contrato.

Na época a jurisprudência era pacífica no sentido de limitar a multa a 30% do valor do contrato no tipo de negócio jurídico específico.

Ou seja, meu cliente perderia 30% do valor do contrato ao desistir dele. Meu objetivo era negociar essa multa, ou seja, esse percentual era o máximo a que se chegaria.

A parte contrária começou requerendo a multa no patamar de 50%. Durante as negociações meu cliente, levando em conta os custos de um processo, tempo de um litígio judicial, honorários etc., me autorizou a chegar em 40% (mesmo sabendo que o máximo que perderia em uma ação judicial seria os 30%).

Pois bem, a outra parte ancorou nos 50% e não negociou mais nada além dessa porcentagem.

Questionei o advogado, tentando o chamado “choque de realidade”, o porquê dessa insistência, já que toda a jurisprudência apontava para 30% e, na negociação, ele ganharia mais que isso, bem mais rápido e sem custo.

A resposta foi: “Confio na minha tese, ela com certeza, depois que explicar todos os meandros do caso, sairá vencedora no Judiciário”.

Alguém poderia falar que ele estaria blefando, ganhando tempo ou seria uma estratégia para negociar mais tarde.

Mas, refletindo, creio que não.

Seja como mediador de conflitos, agindo como negociador, ou no papel de advogado, vejo as pessoas desafiarem a razão e terem uma certa “certeza” de que o acaso dela será diferente, que ela convencerá o juiz, que embora 100 casos julgados de uma certa forma, o dela será diferente.

Por diversas vezes os litigantes mesmo com diversos indícios, dados, jurimetria, relatório, ou qualquer outro indicador, apontando que ele não conseguirá mais do que o proposto no acordo no Judiciário, este opta pelo caminho do processo.

Chamo isso de fé.

Não a fé religiosa. Aqui não vamos falar de religião ou espiritualidade, nem nada nessa linha. A palavra fé não é exclusiva da linha religiosa.

Dizemos, por exemplo, que temos fé em um amigo, fé que aquilo irá acontecer, fé no time de futebol. Até no mundo jurídico temos o usa da palavra, como nos vocábulos boa-fé, má-fé, fé pública, dentre outros.

Fé (do latim“fide”) é a adesão de forma incondicional a uma hipótese que a pessoa passa a considerar como sendo uma verdade sem qualquer tipo de prova ou critério objetivo de verificação, pela absoluta confiança que se deposita nesta ideia ou fonte de transmissão. Acompanha absoluta abstinência de dúvida. Tal sentimento não se sustenta em evidências, provas ou entendimento racional.7

A meu sentir, o brasileiro tende, quando se trata de resolução de conflitos pelo Poder Judiciário, a acreditar - não ter nenhuma dúvida - que mesmo, sem qualquer indício, com teses majoritariamente contrárias, com grandes riscos de não obter o bem jurídico, que vai sair exitoso.

Recentemente li um excelente artigo cujo título é “A persistência do misticismo, do senso comum e da má-fé nas receitas milagrosas contra a Covid-19: Uma proposta de interpretação”.Nele, o autor traz que o pensamento místico está disseminado em diversas formas da relação do homem com a realidade imaterial, e mesmo nas culturas de alguns países ditos modernos.

A dimensão mística é um componente essencial da natureza humana, por mais que o laicismo e a noção de progresso tenham atenuado a presença deste misticismo na cultura aparente.

O artigo mostra que, por exemplo, e embora as diversas pesquisas, dados etc., acreditou-se na cura da COVID pelo chá de boldo com limão, suco de maçã, inhame, água de coco, bicarbonato e outros.

E não só no Brasil temos dificuldade de as pessoas acompanharem as explicações que envolvem números e estatísticas, o que leva à cilada que as explicações simples podem representar.

Mathew D’Ancona nos mostrou9 como as explicações baseadas na fria lógica dos números não foram bem-sucedidas para convencer os britânicos a permanecerem na União Europeia.

Aqui não pretendemos tecer críticas por si só, ou apontar o dedo para um grupo ou certos comportamentos.

O que se almeja é que este singelo artigo chegue ao conhecimento do operador de Direito, e esse possa refletir se antes de levar algum caso para o Judiciário analisou de fato (e sinceramente) suas chances de êxito.

Se por acaso não seria o caso de, antes de distribuir a inicial, tentar uma abordagem a fim de negociar com a parte adversa e, neste ambiente, analisar se o que está “na mesa de negociação” não seria melhor do que conseguiria, no máximo, em um processo (ou empataria).

Que se dispa de egos (negociar não é fraqueza, e sim inteligência) e de misticismo (sua causa não é especial), e use a ciência e os números a favor de seu cliente.

E que usem mais o instituto da mediação para que isso seja possível.

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D'ANCONA, Matthew. Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de Fake News. Barueri: Faro Editorial, 2018

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil I: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. v 1. 11 ed. Ed. Podivm

FGV. Relatório ICJ Brasil. Disponível aqui.

GRANEZ, Marcio da Silva. A persistência do misticismo, do senso comum e do mal nas receitas milagrosas contra a Covid-19: uma proposta de interpretação. Revista  Mídia & Cotidiano – Pós Graduação da UFF. Disponível aqui. Acesso em 10 de março de 2024.

SOUZA, Isabela. 3 motivos que fazem o judiciário brasileiro ser lento. Politize. Disponível aqui. Acesso em 08 de março de 2024

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1 As estruturas mais clássicas de resolução de conflitos classificam-se, fundamentalmente, em três grupos, quais sejam, a autotutela, autocomposição e heterocomposição. No caso da autocomposição, o conflito é solucionado com ou sem necessidade de intervenção de terceiros, e principalmente, sem o uso da força, onde as partes chegam a um consenso para a resolução do litígio. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil I: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. v 1. 11 ed. Ed. Podivm

2 O Instituto de Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos (ICFML) é o principal órgão independente de padrões profissionais para mediação em Portugal, Brasil, e todos os países lusófonos. Disponível aqui

3 Vejamos os dados apresentados no artigo “3 motivos que fazem o judiciário brasileiro ser lento”. Disponível aqui.

4 Um vídeo com animação bem didático. Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Disponível aqui.

7 Disponível aqui.

8 A persistência do misticismo, do senso comum e do mal nas receitas milagrosas contra a Covid-19: uma proposta de interpretação | Mídia e Cotidiano (uff.br)

9 Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de Fake News.Barueri: Faro Editorial, 2018

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Colunistas

Mariana Freitas de Souza é advogada e mediadora. Presidente do ICFML Brasil. Diretora do CBMA. Membro da Comissão de Mediação do Conselho Federal da OAB. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/RJ. Membro da Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem do IAB. Membro do Global Mediation Panel da ONU. JAMS Weinstein International Fellow. Sócia do PVS Advogados.

Samantha Longo é advogada e professora. Membro do FONAREF – Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências e membro do Comitê Gestor de Conciliação, ambos do CNJ. Conselheira da OAB/RJ. Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pela UniCuritiba. Negotiation and Leadership Program na Harvard University. LLM. em Direito Empresarial pelo IBMEC/RJ. Autora de diversos artigos, coordenadora de obras coletivas, coautora da obra "A Recuperação Empresarial e os Métodos Adequados de Solução de Conflitos" e autora do livro "Direito Empresarial e Cidadania: a responsabilidade da empresa na pacificação dos conflitos".