Migalhas Consensuais

Consenso e futebol

Autocomposição não é uma realidade distante, não é conto de fadas, não é delírio. Resolver os conflitos ligados ao futebol via mediação, conciliação ou negociação (todas formas de autocomposição) será um gol de placa, onde todos os "jogadores" saem ganhando.

6/4/2023

A CBF - Confederação Brasileira de Futebol é uma associação de direito privado que tem por objeto dirigir, organizar, desenvolver e fomentar o futebol brasileiro.

Além de ser o esporte mais amado pelos brasileiros, a seleção masculina de futebol, a única que já ganhou cinco vezes a Copa do Mundo, é idolatrada não apenas por brasileiros, mas também por milhões de estrangeiros que, ao redor do mundo, consideram a nossa seleção a segunda mais querida, logo atrás de suas seleções nacionais.

Essa paixão que os torcedores nutrem pelas seleções brasileiras (masculina e feminina, em todas as suas categorias, de base ou titular) e pelos clubes de futebol é igualmente sentida por aqueles que trabalham com o futebol, nas áreas técnica e administrativa. O futebol, como um todo, tem um grande componente emocional.

Trabalhar em um ambiente tão apaixonado me fez imediatamente refletir em como os conflitos havidos no mundo do futebol vêm sendo solucionados e em que medida as partes têm buscado diálogo e consenso. 

Na esteira do que determina a FIFA (Fédération Internationale de Football Association), entidade que supervisiona as federações, confederações e associações relacionadas com o futebol ao redor do mundo, a CBF criou em 2015 um centro destinado a solucionar conflitos envolvendo os personagens que atuam no futebol. 

A Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD) é o órgão competente para dirimir litígios envolvendo os participantes do futebol brasileiro, a saber: as federações; as ligas de futebol vinculadas à CBF; os clubes; os atletas profissionais e não profissionais; os intermediários registrados na CBF; e os treinadores e demais membros de comissão técnica.

Ali se resolvem conflitos entre clubes e atletas, de natureza laboral e desportiva; questões atinentes à compensação por formação ou ao mecanismo de solidariedade; descumprimentos de regulamentos e regras sobre registro e transferência de atletas; contratos com intermediários; conflitos entre clubes e federações que não sejam da competência da Justiça desportiva, dentre outros.

Conforme os dados apresentados por Rafael Fachada, secretário geral da CNRD, a atuação da Câmara, desde sua criação, é exponencial. Em 2017, R$ 2 milhões haviam sido pagos pelos devedores em decorrência de decisões da CNRD. Em 2021, esse número chegou perto da casa de R$ 40 milhões. Em 2016, 7 processos foram instaurados perante a CNRD; em 2022, foram quase 300 casos novos.

Dos mais de 1000 processos instaurados até hoje na CNRD, constata-se que centenas deles foram encerrados por acordo entre as partes. A proporção é animadora: para cada sentença proferida pelos julgadores, um acordo foi firmado. Ou seja, 50% dos casos foram finalizados porque as partes se compuseram.

Visando incentivar ainda mais a celebração de acordos pelas partes, sugeri, enquanto estive à frente da Diretoria Jurídica da CBF, uma alteração no Regulamento da CNRD, para se incluir o seguinte dispositivo:

Art. 12-A– Na condução dos seus procedimentos, a CNRD deve incentivar as partes a buscarem soluções consensuais para as disputas, seja de forma direta, seja através do apoio da CNRD, disponibilizando, quando necessário, a sua estrutura em prol da solução pacífica dos casos.

A Câmara agora prevê o incentivo à busca do consenso. Trata-se de um convite ao diálogo e à construção de soluções pelas próprias partes envolvidas no conflito.

Sem dúvida, ninguém melhor do que as partes para ajustarem a melhor solução para o seu conflito. Às vezes, elas não conseguem encontrar a melhor saída sozinhas e, neste caso, um terceiro imparcial, e facilitador do diálogo, pode ser fundamental.

A ideia é estimular e encorajar as pessoas a conversarem logo no início do procedimento perante a CNRD, evitando-se, se possível, o desenrolar do procedimento com a necessidade de audiências, oitiva de testemunhas, prolação de decisões e eventualmente processamento de recursos.

Na obra "Direito empresarial e cidadania: a responsabilidade da empresa na pacificação de conflitos"1, sustento que as empresas têm responsabilidade na pacificação de conflitos. A empresa que conta com área ou centro voltado à pacificação dos conflitos internos (entre os colaboradores) e externos (decorrentes das relações com parceiros comerciais, órgãos públicos e demais stakeholders) é uma empresa responsável socialmente, que está preocupada em cumprir sua função social.

Temos que cada vez mais voltar nossos olhares para a desjudicialização, para a busca do consenso e para o uso dos métodos adequados de solução de conflitos. Ainda mais em conflitos que têm um componente emocional como aqueles que envolvem a paixão pelo futebol.

O trabalho da CNRD é digno de elogios, como pontuou recentemente Erika Montemor, Head do Player Status Department da FIFA:

"Foi interessante comparar o cenário nacional com o internacional e a troca de experiências. (...) O trabalho é realmente incrível, acho que eles construíram um sistema robusto e que tem reputação. É muito importante para a CBF e para a CNRD ter essa força e eficiência que eles mostram".2

Espero que o novo dispositivo introduzido no Regulamento da CNRD frutifique e traga excelentes resultados, permitindo que o consenso esteja cada vez mais presente nos conflitos envolvendo o futebol. Não só no âmbito da CNRD, mas também nas muitas arbitragens desportivas em curso (o uso da mediação nas arbitragens ainda é muito pequeno, existindo um vasto campo a ser preenchido).

Autocomposição não é uma realidade distante, não é conto de fadas, não é delírio. Resolver os conflitos ligados ao futebol via mediação, conciliação ou negociação (todas formas de autocomposição) será um gol de placa, onde todos os "jogadores" saem ganhando.

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1 LONGO, Samantha Mendes. Direito empresarial e cidadania: a responsabilidade da empresa na pacificação de conflitos. Porto Alegre: Paixão, 2023.

2 Disponível aqui.

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Colunistas

Mariana Freitas de Souza é advogada e mediadora. Presidente do ICFML Brasil. Diretora do CBMA. Membro da Comissão de Mediação do Conselho Federal da OAB. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/RJ. Membro da Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem do IAB. Membro do Global Mediation Panel da ONU. JAMS Weinstein International Fellow. Sócia do PVS Advogados.

Samantha Longo é advogada e professora. Membro do FONAREF – Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências e membro do Comitê Gestor de Conciliação, ambos do CNJ. Conselheira da OAB/RJ. Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pela UniCuritiba. Negotiation and Leadership Program na Harvard University. LLM. em Direito Empresarial pelo IBMEC/RJ. Autora de diversos artigos, coordenadora de obras coletivas, coautora da obra "A Recuperação Empresarial e os Métodos Adequados de Solução de Conflitos" e autora do livro "Direito Empresarial e Cidadania: a responsabilidade da empresa na pacificação dos conflitos".