Migalhas Consensuais

A importância da governança corporativa na prevenção de conflitos societários

A governança corporativa pode ser definida como o sistema pelo qual as organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas.

23/12/2022

Seja nas sociedades de grande ou pequeno porte, de capital aberto ou fechado, com controle definido ou de capital pulverizado, seja nas sociedades familiares, ou até nas startups, a governança corporativa - adequada a cada estágio de desenvolvimento social - pode ser um instrumento fundamental para prevenir conflitos sociais. 

A ausência de prévio alinhamento e formalização de regras claras sobre temas sociais como: responsabilidades, formas de participação e intensidade de dedicação de cada sócio; objetivos e prioridades de curto, médio e longo prazo da sociedade; processos decisórios; capitalização e remuneração; acesso à informação e, ainda, resolução de impasses, pode causar e/ou agravar desentendimentos, mesmo nas organizações que estão apenas começando. 

Definição e princípios de governança corporativa 

A governança corporativa pode ser definida como o sistema pelo qual as organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas. Ela envolve os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização, auditoria e controle e demais stakeholders.1-2 

As boas práticas de governança informam e estabelecem as regras aplicáveis à sociedade, comunicam de forma clara os valores sociais, alinham interesses, evitam conflitos e facilitam os relacionamentos dentro e fora da organização, com o propósito de aumentar seu valor e longevidade. 

Os princípios básicos da governança, apontados no Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), são os seguintes: (i) transparência, abrangendo a disponibilização das informações que sejam de interesse dos stakeholders e não apenas aquelas impostas por disposições de leis ou regulamentos; (ii) equidade, que se caracteriza pelo tratamento justo e isonômico de todos os sócios e demais stakeholders, levando em consideração seus direitos, deveres, necessidades, interesses e expectativas, (iii) prestação de contas (accountability), conforme o qual os agentes de governança devem prestar contas de sua atuação de modo claro, conciso, compreensível e tempestivo, assumindo integralmente as consequências de seus atos e omissões e atuando com diligência e responsabilidade no âmbito dos seus papéis e (iv) responsabilidade corporativa, que orienta que os agentes de governança a zelar pela viabilidade econômico-financeira das organizações, reduzir as externalidades negativas de seus negócios e suas operações e aumentar as positivas, levando em consideração, no seu modelo de negócios, os diversos capitais (financeiro, manufaturado, intelectual, humano, social, ambiental, reputacional etc.) no curto, médio e longo prazo. 

Os estágios básicos de governança3 

Nas primeiras fases de desenvolvimento social (considerado aqui como a fase de ideação, pré-constituição da sociedade), é importante alinhar expectativas; pensar e discutir as responsabilidades básicas de cada sócio, suas formas de contribuição, os processos de decisão (construção do consenso) e os mecanismos de saída de sócios – estas últimas duas, causas recorrentes de litígios societários. Controles mínimos para apuração de resultados e prestação de contas também devem ser estabelecidos desde cedo. 

Da mesma forma, recomenda-se que os objetivos, propósito e valores sociais estejam claros entre os sócios e, posteriormente, sejam comunicados a todos os colaboradores e prestadores de serviço. 

Aos poucos (na fase de validação, constituição da sociedade), pode se evoluir para regras mais detalhadas sobre direitos e deveres dos sócios, com assinatura de acordo de sócios (formalizando direitos de voto e veto, forma de indicação e eleição de administradores, restrições à transferência de participação societária, regras de saída e dissolução, dentre outros temas relevantes). Cabe também organizar práticas relacionadas a empregados-chaves (tais como programas de stock option), clientes e fornecedores (criação de contratos-padrão, por exemplo) e parceiros estratégicos. 

Com o crescimento da base de clientes e do faturamento, recomenda-se definir alçadas para a tomada de decisão, com estruturação do conselho (consultivo ou de administração) e evolução de práticas de planejamento e controles internos.

 Sociedades mais estruturadas 

No caso das sociedades existentes há mais tempo e com maior porte, a quantidade de acionistas, investidores e stakeholders e os riscos do negócio exigirão regras mais sofisticadas, uma maior quantidade de órgãos e agentes de governança, bem como mecanismos de controles internos e defesa mais robustos. 

A governança vem, de fato, buscando alcançar e proteger maior quantidade de stakeholders, indo muito além de sócios e administradores. Ficou para traz o foco exclusivo no lucro e busca de rentabilidade imediata aos acionistas como prioridade absoluta. 

A demanda por processos de tomada de decisão mais criteriosos, bem como por um olhar mais abrangente por parte dos agentes de governança é crescente. Aspectos sociais e ambientais passaram a fazer parte da agenda das organizações, impactando diretamente na sua estratégia, reputação e valor econômico de longo prazo. 

Como exemplo, no caso de companhias abertas, na esteira da tendência mundial de preocupação com os aspectos ASG (Ambiental, Social e Governança), a Comissão de Valores Mobiliários – CVM editou, em dezembro de 2021, a Resolução 59, que traz a exigência de prestação de informações sobre esses aspectos no Formulário de Referência. A Resolução 59/2021 entrará em vigor em janeiro de 2023, mas muitas companhias já vêm divulgando informações ASG há algum tempo, dada a relevância que vem sendo dada a essas matérias. 

Com a ampliação das partes impactadas pelas atividades da sociedade, nas mais diversas naturezas (ambiental, social, econômica, trabalhista, comercial etc.), novas controvérsias podem surgir. Para se preparar para isso, a sociedade deve adotar políticas claras, bem como mecanismos de resolução de conflitos específicos, sendo a mediação uma alternativa bastante adequada na maior parte dos casos. 

Principais causas de mortalidade das sociedades e como evitá-las 

Conforme pesquisa realizada pelo Sebrae4, as principais causas de mortalidade das organizações nos primeiros 5 anos são: ausência de planejamento prévio (incluindo plano de negócios), gestão empresarial desqualificada, inexperiente (sem conhecimento do mercado), ineficiente ou desconectada dos avanços tecnológicos e ausência de comportamento empreendedor (englobando capacidade de estabelecer metas, criar vínculos, acompanhar mudanças de mercado e compreender a fundo seu negócio, ou seja, ter visão do negócio). 

Outras causas apontadas são: descontrole financeiro, desconhecimento de mercado (ambos podendo ser incorporados na primeira causa apontada acima, de falta de planejamento) e, claro, divergências entre sócios. 

Como antes mencionado, a governança pode evitar disputas entre sócios, da mesma forma que faz parte do tão relevante planejamento estratégico. 

Conclusões 

Encontrar a medida exata de governança, de modo a equilibrar custos e benefícios envolvidos, considerando os diferentes perfis e estágios de desenvolvimento das sociedades, pode até parecer um desafio, mas é fundamental. 

A definição de regras básicas de convivência entre sócios e administradores, a criação de órgãos societários eficazes e de mecanismos de controle básicos geram valor, dão credibilidade, diminuem as incertezas, aumentam a liquidez e reduzem as chances de conflitos e até mesmo de mortalidade da sociedade.

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1 No Brasil, traduzido frequentemente como “partes interessadas”. O termo se refere a todos os que impactam ou são impactados pela organização, abrangendo, dentre outros, sócios, administradores, empregados, clientes, fornecedores, prestadores de serviço, comunidades próximas que possam ser afetadas pelo objeto social.

2 Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), 5ª Edição/2015.

3 Cartilha Governança Corporativa para Startups & Scale-ups do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), 2019.

4 Pesquisa realizada entre 2007 e 2011. Visita ao site em 24 de outubro de 2022, 13:00.

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Colunistas

Mariana Freitas de Souza é advogada e mediadora. Presidente do ICFML Brasil. Diretora do CBMA. Membro da Comissão de Mediação do Conselho Federal da OAB. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/RJ. Membro da Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem do IAB. Membro do Global Mediation Panel da ONU. JAMS Weinstein International Fellow. Sócia do PVS Advogados.

Samantha Longo é advogada e professora. Membro do FONAREF – Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências e membro do Comitê Gestor de Conciliação, ambos do CNJ. Conselheira da OAB/RJ. Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pela UniCuritiba. Negotiation and Leadership Program na Harvard University. LLM. em Direito Empresarial pelo IBMEC/RJ. Autora de diversos artigos, coordenadora de obras coletivas, coautora da obra "A Recuperação Empresarial e os Métodos Adequados de Solução de Conflitos" e autora do livro "Direito Empresarial e Cidadania: a responsabilidade da empresa na pacificação dos conflitos".