Migalhas Consensuais

A mediação extrajudicial e as entidades da sociedade civil: Solução para o equilíbrio entre o direito fundamental à saúde e o orçamento público dos entes federados

Lizandra Colossi Oliveira

Lizandra Colossi Oliveira fala da mediação extrajudicial e as entidades da sociedade civil: Solução para o equilíbrio entre o direito fundamental à saúde e o orçamento público dos entes federados.

23/6/2022

A judicialização da saúde vem chamando a atenção há algum tempo. Dados do CNJ apontam um acréscimo de 130% nessa seara, nos últimos 10 anos. Juízes veem-se na delicadíssima condição de concederem ou não medidas efetivas àqueles que batem à porta do judiciário para terem, efetivado e garantido, o direito à saúde. Processualmente falando, há um embate entre a necessidade individual à prestação, por parte do Estado, para efetivar o direito à saúde versus políticas públicas que visam atender o maior número de pessoas.

Logo nos primeiros anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, os juízes deferiam as demandas na saúde sem maiores preocupações, obrigando os entes federados ao cumprimento do seu dever prestacional para com os cidadãos; contudo, as repercussões ao orçamento público da União, dos Estados e dos Municípios passaram a ser consideradas, limitando a concretização da saúde do indivíduo, em prol do atendimento universal à saúde.

Aquele que necessita de atendimento médico, de remédios, ou de tratamento resta, individualmente, desassistido e, com isso, sua dignidade acaba atingida pela falta de suporte pelo Estado; por outro lado, os entes federados, muitas vezes, não comportam destinar recursos para atender àquela pessoa singularmente considerada sem desabrigar os demais governados. Diante disso, tem-se choque entre direitos fundamentais que pode não ser atendido, pela via judicial, ante o posicionamento atual dos Tribunais.

De fato, após o ativismo judicial destinar recursos a pessoas necessitadas, passou-se a questionar a intervenção do poder judiciário nas contas públicas, e iniciou-se um movimento, coordenado pelo CNJ, em oferecer parâmetros aos julgadores para, em nome do interesse individual, não sacrificassem o interesse coletivo, desviando recursos de políticas públicas estruturadas por Estados e Municípios destinadas à saúde de todos.

Sendo um debate constitucional, o Supremo Tribunal Federal realizou a Audiência Pública número 4, em 2009, tratar da judicialização da saúde, no intuito de ouvir os entes federados, e sociedade civil, resultando em parâmetros para os juízes concederem ou não medicamentos e tratamentos quando provocados de forma individual, limitando as decisões que, antes, eram focadas nos indivíduos postulantes de seu direito à saúde.

Dessa sorte, foram criados critérios para deferimento das medidas sanitárias pelo Supremo Tribunal Federal, como o pertencimento ou não do medicamento postulado à lista de medicamentos padronizados pelo Ministério da Saúde em oferta no SUS – dentre outras limitações, seguidas que foram pelo Superior Tribunal de Justiça em julgados da mesma matéria. O CNJ convocou Jornadas da Saúde, fixando balizas para os juízes se pautarem na hora da ponderação de direitos fundamentais em choque.

Muito se tem escrito sobre o tema sob a perspectiva da interferência do Judiciário no orçamento dos entes federados, em razão das decisões favoráveis na área de saúde que acabam por comprometer valores significativos, e já previstos em lei orçamentária para consecução de políticas públicas; contudo, há uma carência de informação, e desenvolvimento de alternativas pela via da autocomposição. Vale dizer: pouco se fala ou escreve sobre mediação na saúde, e a possibilidade do auxílio deste método para efetivar o direito à saúde.

Assim, procurou-se trazer uma via alternativa para aquele cidadão que, inobstante precisar do auxílio governamental, já tem ciência de que não o obterá via judicial, haja vista as limitações e balizas definidas. Assim, no intuito de oferecer uma saída viável, e em sintonia com o Novo Código de Processo Civil, e a Lei de Mediação, desenvolve-se a pesquisa a seguir, inovando nos atores que serão chamados a compor a mesa de negociação: entidades privadas capazes de promoverem, em lugar do Estado, a necessidade do jurisdicionado.

MEDIAÇÃO: MEIO ADEQUADO DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS

A Mediação de Conflitos é um método relativamente jovem no Brasil, por assim dizer, como via importante de solução de controvérsias em que as próprias partes decidem os rumos do conflito instaurado entre elas. Prevista, no ordenamento jurídico brasileiro, pelo Código de Processo Civil de 2015, pela Lei de Mediação, sem contar a Resolução 125 do CNJ, a Mediação de Conflitos se distingue dos outros meios consensuais de solução, como a Conciliação1 e a Negociação Jurídica, por desenvolver o diálogo de forma mais ampla, mais completa, acolhendo as informações e as perspectivas das pessoas envolvidas de forma mais integral.

Dentre os princípios orientadores da Mediação, elencados no artigo 2º. da lei 13.140/052, destacam-se, para fins deste artigo, a imparcialidade do mediador, e a autonomia da vontade das partes. Baseada no tripé processo, participantes e mediador3, a Mediação é viva por assim dizer, como é vivo também o diálogo entre as pessoas. Com a habilidade do mediador, terceiro neutro à questão controversa, e que se mantém imparcial no decorrer da sessão, pois a imparcialidade é um exercício dinâmico de não se escolherem lados, nem vencedores ou vencidos, o mediador, com as técnicas de comunicação, vai auxiliar nesse diálogo. De forma gradual, as pessoas vão se restabelecendo de autoconfiança (empoderamento, para os americanos4), e deixando as posições iniciais para se abrirem a novas possibilidades surgidas a partir da conversa.

“A Mediação se propõe a refletir sobre a complexidade da controvérsia entre os que dela participam. Não busca resgatar os lações eventualmente perdidos, mas sim o vivenciar de novos elementos de mudanças”5. Apesar de parecer algo simples em sua conceituação, é complexo por administrar diferentes pontos de vista, pretensões a priori antagônicas, e ânimos muitas vezes alterados. Contudo, a presença do mediador ameniza as tensões iniciais, pois as partes confiam em quem escolheram, e desejam sua intervenção, sem interferência.

A MEDIAÇÃO EXTRAJUDICIAL E AS DEMANDAS ENVOLVENDO O DIREITO À SAÚDE: ECONOMIA PARA OS COFRES PÚBLICOS PELO CONVITE ÀS ENTIDADES DA SOCIEDADE CIVIL

A Mediação Extrajudicial de Conflitos acontece de forma privada, seja por meio de mediadores ad hoc, que a realizam nos escritórios de advocacia por exemplo6, seja por meio de Câmaras de Mediação. Nesses ambientes, sem o peso (por assim dizer) de um processo judicial em curso, as partes envolvidas (mediandos) sentem-se mais à vontade para negociarem e transigirem, auxiliados pelo mediador, terceiro neutro que se mantém imparcial ante o desenrolar da conversa.

Nos conflitos envolvendo o direito à saúde, e o orçamento público dos entes federados, a Mediação pode ser a ponte para que soluções sejam prospectadas, equilibrando os interesses contrapostos. Nessa dinâmica, ao invés da tradicional propositura de ação judicial, aquele(s) que necessita de prestação na área da saúde buscaria a Mediação de Conflitos em um Centro ou Câmara destinado à Saúde, promovido e guarnecido por um consórcio entre Estado e Município, por exemplo.

Além disso, neste artigo, propõe-se que, ao lado do ente federado, esteja um representante da sociedade civil que, em razão de sua capacidade financeira ou tecnológica, de influência nos setores sociais ou mesmo cuja missão seja dirigida à consecução da saúde, possibilite auxílio e solução àquele que tem o direito à saúde violado ou ameaçado. Pode-se pensar em convidar para a Mediação Organizações Sociais7, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP’s)8, laboratórios, planos de saúde, dentre outros que, tendo vista sua responsabilidade social, venham a compor essa mesa de negociação, com vistas à realização do direito à saúde de um ou mais cidadãos, em colaboração com o Estado para a efetividade da dignidade humana, valor máximo do nosso ordenamento jurídico, e do Estado Democrático de Direito, como dito anteriormente.

Processualmente falando, tais entidades, que não poderiam compor o polo passivo de uma  demanda judicial, por não integrarem a administração pública e, assim, não estarem diretamente vinculados ao dever prestacional que deriva do direito fundamental à saúde, podem perfeitamente comporem a mesa de Mediação se aceitarem o convite, por aplicação dos princípios informativos da autonomia da vontade das partes e busca do consenso, admitindo pessoas, físicas ou jurídicas, que possam solucionar a questão – basta que aceitem o convite endereçado pelo mediador a cada uma delas.

O que se propõe aqui é disruptivo, mas factível: representantes da sociedade civil podem dar a sua contribuição, e colaborar na solução do conflito que aflige a pessoa, ou o conjunto de pessoas. Organizações Sociais e OSCIP’s9, laboratórios, hospitais, clínicas, planos de saúde e mesmo médicos podem ser convidados a participarem de uma Mediação para prospectarem, juntamente com aquele cujo direito à saúde está ameaçado ou violado, soluções viáveis e que não pesem ao erário público. Para isso, evidentemente, antes será necessário por parte do ente público garantir vantagens, ainda que simbólicas, a tais entidades, como um selo de qualidade ou de reconhecimento social do empenho daquela instituição aceitante do convite e comprometida com a solução.

As vantagens ou benesses a esses atores sociais podem ser variadas, inúmeras, seja em termos de redução de alíquota tributária (evidentemente com lei específica para tal), de selo de qualidade, de promoção na mídia, dentre tantas outras que se pode pensar. O fato é que tais instituições estarão cumprindo uma função social, trabalhando em colaboração com o Estado, para a consecução dos objetivos da Constituição Federal de 1988, perante a qual estamos todos obrigados, como cidadãos.

BRAGA NETO, Adolfo. A Mediação e a Administração Pública. 2020. Dissertação. (mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Disponível aqui. Acesso em 10 nov 2021.

BRASIL. Conselho Federal da OAB. Provimento 196, de 20 de março de 2020. Disponível aqui. Acesso: 15 Nov 2021.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. “Pós-pandemia: mediação pode prevenir judicialização na Saúde”. Disponível aqui. Acesso em 14 nov 2021

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação n.100, de 16 de junho de 2021. Recomenda o uso de métodos consensuais de solução de conflitos em demandas que versem sobre o direito à saúde. Disponível aqui. Acesso em: 15 nov 2021.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº125, de 29 de novembro de 2010. Dispõe sobre a Política Judiciária de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em 15 nov 2021.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso em 15 nov 2021.

BRASIL. Lei 9.637, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências.Disponível aqui. Acesso em 15 Nov de 2021.

BRASIL. Lei 9.790, 23 de março de 1999. Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em 15 Nov de 2021.   

BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível aqui. Acesso em 13 nov 2021.

BRASIL. Lei 13.140, de 26 de junho de 2015. Lei de Mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Disponível aqui. Acesso em 13 nov 2021.

BUSH, Robert A. Baruch, e FOLGER, Joseph P. The Promise of Mediation: The Transformativ Approach to Conflict. Nova Yorke: Jossey-Bass, 2005.

___________

1 A Mediação “também difere da conciliação, que se constitui em uma tentativa de acordo com o auxílio de um terceiro imparcial”, que sugere, busca resolver com e pelas partes muitas vezes. BRAGA NETO, Adolfo. BRAGA NETO, Adolfo. A Mediação e a Administração Pública. 2020. Dissertação. (mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p.61. Disponível aqui. Acesso em 10 nov 2021.

2 Art. 2º A mediação será orientada pelos seguintes princípios: I - imparcialidade do mediador; II - isonomia entre as partes; III - oralidade; IV - informalidade; V - autonomia da vontade das partes; VI - busca do consenso; VII - confidencialidade; VIII - boa-fé.

3 BRAGA NETO, Adolfo. A Mediação e a Administração Pública. 2020. Dissertação. (mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p.51. Disponível aqui. Acesso em 10 nov 2021.

4 Sobre os participantes: “Eles se movem da fragilidade, tornando-se mais calmos, esclarecidos, confiantes, articulados e, o mais decisivo – em geral, trocam a fragilidade pela força” – em outras palavras da fraqueza para o empoderamento.” BUSH, Robert A. Baruch, e FOLGER, Joseph P. The Promise of Mediation: The Transformativ Approach to Conflict. Nova Yorke: Jossey-Bass, 2005, p.55.

5 BRAGA NETO, Adolfo. A Mediação e a Administração Pública. 2020. Dissertação. (mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p.59. Disponível aqui. Acesso em 10 nov 2021.

6 Art. 1º Constitui atividade advocatícia, para todos os fins, a atuação de advogados como conciliadores ou mediadores, nos termos da Lei n. 13.140/2015, ou árbitros, nos moldes preconizados pela Lei n. 9.307/1996. BRASIL. Conselho Federal da OAB. Provimento 196, de 20 de março de 2020. Disponível aqui. Acesso: 15 Nov 2021.

7 Art. 1o O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta Lei. BRASIL. Lei 9.637, de 15 de maio de 1998.
Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências.Disponível aqui. Acesso em 15 Nov de 2021.

8 Art. 1o Podem qualificar-se como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público as pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos que tenham sido constituídas e se encontrem em funcionamento regular há, no mínimo, 3 (três) anos, desde que os respectivos objetivos sociais e normas estatutárias atendam aos requisitos instituídos por esta Lei. BRASIL. Lei 9.790, 23 de março de 1999. Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em 15 Nov de 2021.   

10 “As ‘organizações sociais’ e as ‘organizações da sociedade civil de interesse público’, ressalte-se, não são pessoas da Administração indireta, pois, como além se esclarece, são organizações particulares alheias à estrutura governamental, mas com as quais o Poder Público (que as concebeu normativamente) se dispõe a manter ‘parcerias’ – para usar uma expressão em voga – com a finalidade de desenvolver atividades valiosas para a coletividade e que são livres à atuação da iniciativa privada, conquanto algumas delas, quando exercidas pelo Estado, se constituam em serviços públicos.” MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo, Ed. Malheiros, 29ª.Ed., p.227.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Mariana Freitas de Souza é advogada e mediadora. Presidente do ICFML Brasil. Diretora do CBMA. Membro da Comissão de Mediação do Conselho Federal da OAB. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/RJ. Membro da Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem do IAB. Membro do Global Mediation Panel da ONU. JAMS Weinstein International Fellow. Sócia do PVS Advogados.

Samantha Longo é advogada e professora. Membro do FONAREF – Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências e membro do Comitê Gestor de Conciliação, ambos do CNJ. Conselheira da OAB/RJ. Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pela UniCuritiba. Negotiation and Leadership Program na Harvard University. LLM. em Direito Empresarial pelo IBMEC/RJ. Autora de diversos artigos, coordenadora de obras coletivas, coautora da obra "A Recuperação Empresarial e os Métodos Adequados de Solução de Conflitos" e autora do livro "Direito Empresarial e Cidadania: a responsabilidade da empresa na pacificação dos conflitos".