O mapa da inadimplência no Brasil, consolidado em outubro de 2021 pela SERASA1, identificou cerca de 63,4 milhões de brasileiros inadimplentes com dívidas que somam, aproximadamente, R$ 213 bilhões. Ainda segundo os dados da SERASA, mais da metade dessas pessoas em situação de inadimplência estão na faixa etária de 31 a 50 anos e estão localizadas, principalmente, nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Paraná.
Este quadro de inadimplência somado à publicação da lei 14. 181/21, também conhecida como lei do superendividamento, geram a expectativa de que o Judiciário fique mais sobrecarregado com essas demandas. Em razão disso, os tribunais que ainda não oferecem CEJUSCs - Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania especializados nesta matéria se preparam para cumprir as diretrizes da nova legislação. A tendência é que se baseiem nas boas práticas já implementadas.
A lei 14. 181/21 vai na mesma direção de normativas do CNJ - Conselho Nacional de Justiça que impulsionaram o uso de meios consensuais para a resolução dos conflitos, tais como a resolução 125, que instituiu a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses; a resolução 290, que estabeleceu critérios para aferição da produtividade do CEJUSC como unidade judiciária; a recomendação 58, que incentivou os magistrados responsáveis pelo processamento e julgamento dos processos de recuperação empresarial e falências, de varas especializadas ou não, que promovam, sempre que possível, o uso da mediação; e a recomendação 71, a qual dispôs sobre a criação de CEJUSCs especializados na área empresarial.
A lei do superendividamento corresponde à recuperação de pessoas físicas e, assim, é interessante observar como suas disposições seguiram na mesma trilha da recomendação 71 do CNJ, que orientou pela capacitação específica dos conciliadores e mediadores em matéria empresarial. De forma análoga, a preocupação do legislador se direciona ao tratamento adequado e especializado dos indivíduos em situação crítica de inadimplência.
Antes da publicação desta lei, alguns CEJUSCs já proporcionavam programas de atendimento especializado ao superendividado. O mapeamento dessas práticas se mostra relevante para a construção de um projeto nacional pelo CNJ, que englobe e aperfeiçoe as iniciativas existentes e estabeleça padrões mínimos a serem observados por todos os tribunais do país.
Uma característica marcante dessas iniciativas pioneiras é o fato de que compreendem o superendividamento como um fenômeno amplo, multidisciplinar e com alcance social, jurídico e econômico.
O primeiro projeto piloto de proteção ao consumidor superendividado no Brasil foi inaugurado pelo TJ/RS em 20072. Em 2019, o tribunal criou o CEJUSC do Cidadão On-line, que já se consolida como uma referência. O serviço consiste em uma plataforma de conciliação e mediação. O acesso pode ser feito tanto pelo computador quanto pelo celular. A solicitação de atendimento pode ser feita de forma totalmente remota e ao final, uma data para a sessão será disponibilizada em até 15 dias. Essas sessões são conduzidas por conciliadores e mediadores cadastrados no tribunal.
O PAS - Programa de Apoio ao Superendividado,3 criado em 2012, é desenvolvido no âmbito do maior tribunal do país, o TJ/SP, e reflete uma parceria entre o CEJUSC, a Fundação Procon-SP e o NTS - Núcleo de Tratamento do Superendividamento. O programa tem o escopo de auxiliar, orientar e educar os consumidores para que readquiram o controle financeiro, a fim de garantir a subsistência individual e de suas famílias nos limites do respectivo orçamento.
A inscrição preliminar no PAS pode ser feita no site da Fundação Procon/SP4 ou por telefone, em que são requeridas as informações socioeconômicas de natureza pessoal e familiar do interessado. Após essa fase cadastro, é promovida uma palestra com orientações gerais sobre o programa, recomendações financeiras, planejamento familiar e práticas de mercado que podem contribuir com o endividamento, de maneira a tornar o consumidor mais preparado para as suas compras.
O passo seguinte é a triagem. A partir da documentação entregue pelos consumidores, os especialistas do NTS seguem para uma tentativa de renegociação. Caso necessário, os consumidores também podem ser encaminhados para uma sessão de renegociação coletiva no âmbito do CEJUSC. O PAS é uma iniciativa reconhecida com mais de 31 mil atendimentos realizados até julho de 2021.
Outro caso exitoso é o Programa Superendividados promovido pelo CEJUSC/Super do TJ/DFT desde 20155. Este núcleo atua em duas frentes: prevenção e tratamento de conflitos. A primeira promove palestras gratuitas para instituições públicas e privadas sobre educação financeira. A segunda realiza oficinas de educação financeira, orientação individualizada e atividades psicossociais.
O TJ/BA conta com um Núcleo de Prevenção e Tratamento do Superendividamento, criado pelo decreto Judiciário 2.010/20. O tribunal elaborou um Manual do Cidadão6, que funciona como um guia para a solicitação de atendimento remoto. Este projeto também tem a perspectiva de proporcionar educação financeira, a fim de que as partes possam ter meios de seguir com um planejamento de acordo com as suas condições econômicas. Em 2020, foi firmado um termo de cooperação técnica com o Instituto de Estudos de Protesto de Títulos do Brasil Seção Bahia7.
A resolução 410/18 criou o programa Proendividados do TJ/PE8, vinculado ao NUPEMEC, com a proposta de desenvolver e executar ações que promovam o tratamento, o acompanhamento e a resolução amigável de conflitos de consumidores superendividados. O projeto conta com três vertentes principais: audiências de mediação e conciliação; realização de palestras sobre educação financeira; orientação financeira individual realizada por economistas, oficinas de educação financeira e encaminhamento à assistência psicológica. A inscrição no programa pode ser on-line9 ou pessoalmente, nas unidades do Proendividados em Recife e Caruaru.
O Projeto de Tratamento de Situações de Superendividamento do consumidor foi criado em 2010 no âmbito do TJ/PR10. O NUPEMEC deste tribunal ainda conta com duas outras iniciativas nesta área: o CEJUSC Endividados, especializado em matéria bancária, e o “Equilibrando Contas”, um curso em formato EAD, com explicações simples de noções financeiras para a orientação das famílias.
Neste momento, parece ser adequada a estruturação de uma ação uniformizada de serviços aos superendividados. Esse panorama e os resultados positivos já alcançados por essas boas práticas revelam a importância de uma estrutura educativa, além de orientações individuais sobre planejamento financeiro e serviços de renegociação de dívidas por meio dos métodos adequados de solução de conflitos. Para isso, mostra-se essencial o engajamento colaborativo de profissionais de diversas áreas do conhecimento que incluem, por exemplo, advogados, economistas, administradores e psicólogos.
Um outro enfoque importante da lei 14. 181/21 é o resgate da promoção da cidadania pelos CEJUSCs. A atuação dessas unidades judiciárias vai muito além da realização de sessões de conciliação e mediação. Elas abrangem a orientação e atendimento aos cidadãos, com uma perspectiva de ampliar o acesso à justiça, a tutela dos direitos e de contribuir com a prevenção dos litígios. Entretanto, esses serviços nem sempre são disponibilizados de maneira efetiva. A referida lei busca colocar em prática, de forma definitiva, essas iniciativas.
Sem dúvidas, a implementação da lei do superendividamento gera boas expectativas, na medida em que traz um novo vigor e dinamismo aos CEJUSCs, bem como promete incrementar o trabalho de excelência implementado nessas unidades por juízes, servidores e auxiliares.
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1 SERASA. Mapa da inadimplência da renegociação de dívidas no Brasil. Disponível aqui.
2 SOUSA, Fábio Torres de. O Poder Judiciário e o superendividamento do consumidor: a necessária normatização. Conjur, 27 jan. 2021. Disponível aqui.
3 PROCON-SP. Procon-SP lança Central do Superendividamento. Disponível aqui.
4 Disponível aqui.
5 TJ/DFT. Superendividados. Disponível aqui.
6 TJ/BA. Manual do Cidadão. Guia para a solicitação de atendimento remoto para tratamento e prevenção do superendividamento. Disponível aqui.
7 Superendividamento: PJBA assina termo de cooperação técnica com entidade de classe dos tabeliães de protesto. Disponível aqui.
8 TJPE. Proendividados. Disponível aqui.
9 Disponível aqui.
10 TJ/PR. NUPEMEC. Disponível aqui.