Migalhas Consensuais

Remuneração de conciliadores e mediadores judiciais: Grande desafio

Remuneração de conciliadores e mediadores judiciais: Grande desafio.

20/8/2021

O Código de Processo Civil e a Lei de Mediação trazem expressamente a obrigatoriedade de remuneração de conciliadores/mediadores judiciais, e o próprio Conselho Nacional de Justiça, com base em referidas leis, fixou parâmetros de remuneração na resolução CNJ 271/2018.

Entretanto, na prática, pouco se avançou. Pelo contrário, na maioria dos Estados, que trabalhavam com voluntários, houve praticamente o abandono da função pelos terceiros facilitadores, além da desmotivação da própria conciliação/mediação.

Importante destacar, que a falta de remuneração constitui entrave considerável ao bom funcionamento do sistema, pois ela é fundamental para assegurar a qualidade e a continuidade do serviço prestado nos CEJUSCs (Centros Judiciários de Solução Consensual de Conflitos), um dos principais objetivos da Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses, instituída pela Resolução CNJ nº 125/2010, propiciando aos terceiros facilitadores motivação, inclusive, para aprimorar seus conhecimentos.

Em outras palavras, a qualidade do serviço prestado por conciliadores e mediadores, exige, além da formação básica, aperfeiçoamento, com investimento em cursos de reciclagem e especialização, que devem ser disponibilizados pelos tribunais e exigidos pelos juízes coordenadores de CEJUSC, diante do princípio ético da competência, previsto no Código de Ética de Conciliadores e Mediadores Judiciais (Anexo III, da Resolução CNJ nº 125/2010).  

Entretanto, esse aprimoramento está intimamente ligado à adequada remuneração desses terceiros facilitadores, pois não se pode cobrar investimento em cursos voltados a essa formação complementar, se não receberem eles remuneração digna.

Diante dessa constatação, é que a lei especial (lei 13.140/2015), no seu artigo 13, e o Código de Processo Civil, em seu artigo 169, passaram a prever expressamente a necessidade de remuneração de conciliadores e mediadores, que deverá estar prevista em tabela fixada pelo tribunal, conforme parâmetros estabelecidos pelo Conselho Nacional de Justiça; ressalvada a hipótese de conciliadores e mediadores concursados, (167, § 6º, do CPC).

No Estado de São Paulo, a lei 15.804, de 22 de abril de 2015, tentou regulamentar a remuneração de conciliadores e mediadores judiciais, estabelecendo o valor de 02 (duas) UFESPs por hora, para jornadas diárias de 02, 04, 06 e 08 horas, dentro do expediente forense, das 09 às19 horas, limitado ao máximo de 16 horas semanais. Entretanto, quando de sua aprovação, houve o veto pelo governador, exatamente do dispositivo que previa advir o valor dessa remuneração, de dotação orçamentária do governo do estado.

Há ainda, regulamentação em outros estados, prevendo, através de lei própria, sistema para pagamento da remuneração de conciliadores e mediadores, através da criação de fundo específico, o que se mostra uma solução interessante.

Importante salientar, nesse ponto, que o PL 94/2002, primeiro projeto de lei de mediação, já previa uma remuneração através das custas, estabelecendo que, em caso de mediação frutífera, as partes ficariam isentas do pagamento de custas; caso a mediação resultasse infrutífera, ficariam dispensadas do pagamento das custas finais; e apenas naqueles casos com parte beneficiária da assistência judiciária gratuita, o Estado deveria suportar os gastos com a remuneração do mediador, o que causaria pouco impacto, pois nesses casos as partes já são dispensadas do pagamento de custas.

A resolução CNJ 271/2018, por sua vez, tentou solucionar o problema, estabelecendo uma remuneração por níveis (voluntário, básico, intermediário e avançado), de responsabilidade das partes.

De acordo com esse regramento, a alocação em cada nível depende de indicação do próprio conciliador/mediador e a mudança de nível passa pelo crivo do NUPEMEC (Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos), cabendo ao tribunal criar tabela com o valor da remuneração, por hora trabalhada, de acordo com os níveis básico, intermediário e avançado; não recebendo os cadastrados no nível voluntário qualquer remuneração e cabendo àqueles cadastrados no nível extraordinário, a negociação da sua remuneração com as partes.

Entretanto, a forma estabelecida, advinda de modelo existente em câmaras privadas de mediação, não se mostrou adequada para o âmbito judicial, no qual a maioria dos usuários são beneficiários da assistência judiciária gratuita, tendo os conciliadores/mediadores que atuar, na maior parte das vezes, como voluntários, não recebendo qualquer remuneração.

Neste ponto, necessário dizer, que tal Resolução estabeleceu a necessidade de conciliadores/mediadores atenderem gratuitamente 10% (dez por cento) dos casos que atendem com remuneração, percentual esse, que é insuficiente, diante do grande número de beneficiários da assistência judiciária gratuita que recorrem ao Judiciário.

Também não é adequada a negociação do valor da remuneração pelo próprio conciliador/mediador no início da sessão.

E aqui, devemos tecer um paralelo entre a mediação privada, de onde adveio o formato de remuneração previsto na mencionada Resolução, e a mediação pública.

No âmbito privado, é realizada a pré mediação, por profissional diferente daquele que irá conduzir o procedimento propriamente dito, e nela, além de informações sobre o procedimento, é estabelecida a projeção de horas a serem trabalhadas com a negociação da remuneração do mediador, o que se mostra correto.

Entretanto, no âmbito judicial, apesar da previsão contida no §12, do art. 334 que, ao estabelecer o prazo de 20 minutos para a sessão, remete exatamente para a necessidade de realização da pré mediação; na prática, isso dificilmente ocorre, sendo o próprio mediador que irá conduzir o procedimento, portanto, quem negocia sua remuneração no início da sessão, o que impede, muitas vezes, até o prosseguimento da sessão, gerando o desinteresse das partes.

Outra previsão que se tornou inaplicável, na prática, foi a de depósito pelo autor, logo após o recebimento da inicial e encaminhamento do processo para o CEJUSC, do valor correspondente a 5 (cinco) horas de mediação, para as causas até R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), e a 20 (vinte) horas de mediação, para as causas acima desse valor, sujeitos os valores, em ambos os casos, à complementação.

Tal previsão teria razão de ser, mais uma vez, se no âmbito judicial, após o recebimento da inicial, também fosse realizada a pré mediação, pois assim, nessa fase, após as explicações necessárias, inclusive quanto à necessidade de remuneração do conciliador/mediador, e caso ambas as partes optassem por prosseguir com a mediação propriamente dita, o processo seria encaminhado ao CEJUSC, com determinação pelo juiz, no respectivo despacho, do depósito dos valores acima mencionados, de acordo com o valor da causa.

Assim, constata-se que, no âmbito judicial, devido a vários fatores, como sobrecarga de processos, morosidade, falta de compreensão de magistrados e advogados em relação ao disposto no § 12, do art. 334 do CPC, etc., dificilmente é realizada a pré mediação, iniciando-se, de imediato, a mediação propriamente dita.

E, portanto, a exigência de depósito prévio da remuneração do conciliador/mediador, que se daria, logo após o despacho de recebimento da inicial e encaminhamento dos autos ao CEJUSC, acabaria desmotivando as partes a participarem da sessão de conciliação/mediação, levando o autor a, desde logo, na inicial, optar por não participar da sessão, e o réu, da mesma forma, a se manifestar contrário à sua realização, nos dez dias anteriores; motivo pelo qual essa exigência de depósito prévio caiu em desuso e foi totalmente abandonada pela maioria dos magistrados.

Diante desse quadro, melhor seria que a remuneração de conciliadores e mediadores adviesse de um fundo especificamente criado pelos tribunais com tal finalidade, sendo necessária, para tanto, previsão na lei de custas estadual; o que já ocorre em alguns estados como Tocantins, que usa recursos do fundo de modernização do Judiciário, e Amapá, que criou taxa judiciária em valor fixo, independentemente do valor da causa.

E, nada obstante, de forma mais criteriosa, devêssemos diferenciar os conceitos de custas e taxa, fato é que, qualquer que seja a forma de cobrança considerada, importante que ocorresse esse recolhimento obrigatório pelas partes, em qualquer ação, com direcionamento a um fundo específico, através do qual o valor seria distribuído igualmente entre todos os conciliadores e mediadores judiciais, de acordo com o número de horas trabalhadas, conforme tabelas estabelecidas pelos tribunais, a exemplo do que já ocorre com outros auxiliares da justiça, como oficiais de justiça.

E, seguindo esse entendimento, a proposta de lei complementar apresentada pelo Superior Tribunal de Justiça ao Congresso Nacional, com base nos estudos do Grupo de Trabalho do Conselho Nacional de Justiça, coordenado pelo Ministro Villas Bôas Cueva, que estabelece normas gerais para a cobrança de custas dos serviços forenses na União, nos Estados e no Distrito Federal, além de disciplinar o controle de sua arrecadação, traz alguns artigos voltados exatamente à remuneração de conciliadores e mediadores, o que, se aprovado, irá nortear os estados na alteração das respectivas leis de custas, e tende a sanar o problema.

Em linhas gerais, a proposta leva em consideração as peculiaridades de cada ramo da Justiça e de cada tipo de processo, define limites de cobrança de custas e estabelece, ainda – o que é de suma importância - benefícios às partes que buscarem alternativas consensuais para a solução de conflitos, contribuindo, desta forma, para a mudança de mentalidade, que é um dos principais objetivos da Política Judiciária Nacional, instituída pela Resolução CNJ nº 125/2010.

Há nesse sentido, em um de seus artigos, proposta que contém incentivo ao uso dos métodos autocompositivos de solução de conflitos, com o estabelecimento de valores diferenciados, caso o interessado, antes de ajuizar a demanda, busque o CEJUSC ou uma plataforma “online” de resolução de controvérsias; sendo que caso a pessoa tenha algum gasto para acessar esses sistemas, tal valor pode ser abatido das custas processuais.

E há também, sugestão de cobrança de valores diferenciados, mais altos, para demandantes habituais, principalmente, empresas, numa tentativa de desmotivar a judicialização, auxiliando na mudança de mentalidade, com incentivo aos métodos consensuais de solução de conflitos na fase pré processual e no âmbito extrajudicial.

De tudo o que foi dito, pode-se concluir que a formação adequada de conciliadores e mediadores, aliada à sua remuneração digna, são essenciais para a qualidade do serviço prestado nos Centros Judiciários de Solução Consensual de Conflitos e, consequentemente, para a mudança de mentalidade dos cidadãos em relação ao uso dos métodos consensuais de solução de conflitos.

Importante mencionar ainda, que a mediação privada ou extrajudicial também depende diretamente, para se desenvolver, da qualidade da mediação praticada no Judiciário. E isso porque, sendo o Poder Judiciário, até o momento, a principal porta de entrada dos conflitos, a maioria dos cidadãos apenas irá conhecer os métodos consensuais de solução, através dele, sendo que, caso sejam mal atendidos no serviço afeto a esses métodos, não recebendo as informações ou tratamento adequados, dificilmente irão procurar por eles em outro lugar.  

Assim, incentivar a remuneração digna de conciliadores e mediadores judiciais, que tem como consequência direta, sua formação adequada e a qualidade do serviço prestado, da mesma forma que o estímulo ao uso dos métodos consensuais de solução de conflitos, conforme previsto no art. 3º do CPC, é dever de todos: magistrados, advogados, defensores públicos, membros do Ministério Público e cidadãos.

*Valeria Ferioli Lagrasta é juíza de Direito da 2ª Vara da Família e das Sucessões da Comarca de Jundiaí; Pós-graduada em Métodos de Soluções Alternativas de Conflitos Humanos pela Escola Paulista da Magistratura (2009); Mestranda no CEDES – Centro de Estudos de Direito Econômico e Social; Formada em Mediação Judicial ("Mediation and the Judicial System") e Negociação e Mediação Avançadas ("Negociation and Mediation Advanced"), pela Columbia University (2012 e 2013); Instrutora de técnicas autocompositivas e Políticas Públicas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ); Membro fundador da "Confederação Internacional de Mediação por Justiça", com sede em Paris (França); Vencedora do VII  Prêmio "Conciliar é Legal", do Conselho Nacional de Justiça, na categoria Juiz Individual; Formadora da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM; Membro do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos – NUPEMEC do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo; Membro do Comitê Gestor da Conciliação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Diretora Cultural da Apamagis – Associação Paulista de Magistrados. 

Referências bibliográficas

ÁVILA, Henrique de Almeida; LAGRASTA, Valeria Ferioli. (Coords.). Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses. São Paulo: IPAM, 2020.

LAGRASTA, Valeria F.; BACELLAR, Roberto P. (Coords.) Conciliação e Mediação – ensino em construção. São Paulo: IPAM, 2016.

______. Valeria F. Curso de Formação de Instrutores: Negociação, Mediação e Conciliação. ENAPRES/Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2020.

RICHA, Morgana de Almeida; PELUSO, Antonio Cezar (org.). GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (coord. Coleção ADRs). Conciliação e Mediação: Estruturação da Política Judiciária Nacional. Rio de Janeiro: Ed. Gen/Forense, 2011.

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Colunistas

Mariana Freitas de Souza é advogada e mediadora. Presidente do ICFML Brasil. Diretora do CBMA. Membro da Comissão de Mediação do Conselho Federal da OAB. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/RJ. Membro da Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem do IAB. Membro do Global Mediation Panel da ONU. JAMS Weinstein International Fellow. Sócia do PVS Advogados.

Samantha Longo é advogada e professora. Membro do FONAREF – Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências e membro do Comitê Gestor de Conciliação, ambos do CNJ. Conselheira da OAB/RJ. Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pela UniCuritiba. Negotiation and Leadership Program na Harvard University. LLM. em Direito Empresarial pelo IBMEC/RJ. Autora de diversos artigos, coordenadora de obras coletivas, coautora da obra "A Recuperação Empresarial e os Métodos Adequados de Solução de Conflitos" e autora do livro "Direito Empresarial e Cidadania: a responsabilidade da empresa na pacificação dos conflitos".