A crise sanitária provocada pela pandemia de Covid-19 atingiu, significativamente, inúmeras empresas e causou o aumento dos pedidos de recuperação empresarial e falência. Os dados do Boa Vista SCPC1 mostram que os pedidos de recuperação empresarial, entre os meses de maio a agosto de 2020 (auge das medidas de isolamento social), registraram um crescimento próximo a 30% em relação ao mesmo período no ano anterior. A projeção sinalizada por algumas consultorias para 2021 é um aumento de cerca de 50% deste tipo de demanda2.
O Judiciário, ciente deste quadro, tem proposto uma série de iniciativas tendo em vista a necessidade do estímulo da solução consensual desses casos pelas próprias partes envolvidas, com destaque para o encaminhamento à mediação de conflitos. Para além das previsões da Lei de Mediação e do CPC de 2015, a mediação realmente passou a protagonizar uma saída viável e segura para os processos envolvendo empresas em situação de crise3, seja na perspectiva de credores, seja na perspectiva da empresa devedora.
Nesse sentido, diversos tribunais se adiantaram na criação de suas próprias iniciativas, a esteira do próprio posicionamento do Conselho Nacional de Justiça em recomendações e resoluções. Assim, por exemplo, o TJSP criou um projeto piloto de conciliação e mediação pré processuais para disputas empresariais decorrentes dos efeitos do Covid-19 por meio do Provimento CG no 11 de 20204. O TJPR implementou um CEJUSC empresarial de forma experimental na comarca de Francisco Beltrão/PR5. Nessa mesma linha, o TJRJ dispôs sobre o RER – Regime especial de tratamento de conflitos relativos à renegociação prévia, à recuperação empresarial nas vias judicial e extrajudicial, e à falência das empresas atingidas pelo impacto da pandemia por meio do ato normativo no. 17/20206.
Como mencionado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deu um passo importante nesse sentido com a publicação da Recomendação no 71 de 20207, a qual estimulou a criação de Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania especializados na área empresarial (CEJUSCs)8. Esta Recomendação parece seguir a tendência internacional e fomenta a formação contínua dos profissionais que conduzem procedimentos consensuais de solução de controvérsias. Além disso, sugeriu que os CEJUSCs providenciem a realização de um cadastro específico de mediadores com capacitação neste tema e prevejam a remuneração desses profissionais.
De fato, o uso da mediação tem contribuído significativamente para a superação de cenários de dificuldade financeira com os credores e para a continuidade da atividade empresarial e dos empregos, de modo a concretizar, efetivamente, a ideia de segunda chance e de preservação da função social da empresa.
O tratamento desses conflitos com abordagem consensual permite uma compreensão mais detalhada da condição da empresa pelos seus credores e a construção de soluções realmente factíveis e adaptadas a cada grupo de credor, situação do processo ou valor do crédito, por exemplo. Em não raras vezes, a mediação é um excelente instrumento para a promoção do entendimento de aspectos relacionados a uma área muito especializada do Direito, tal qual a insolvência empresarial. Os encontros tendem a ter um impacto importante na qualidade da tomada de decisão e no conhecimento das questões envolvidas (e de suas possíveis soluções). Além disso, as reuniões também têm o importante papel de alinhar as expectativas dos credores e seus patronos em relação ao deslinde e tempo dos processos.
Em que pese a relevância do impacto provocado pelo uso da mediação na esfera judicial9, cabe frisar que essas políticas judiciárias em prol da consensualidade tem um escopo mais abrangente de provocar a busca por soluções negociadas, particularmente através da mediação, antes da judicialização da demanda, em uma perspectiva preventiva. Inclusive, alguns autores10 concebem a mediação pré-processual ou a mediação extrajudicial como uma nova via de encaminhamento das negociações entre credores e devedores.
No âmbito da FGV Mediação, esta atitude já vem sendo percebida por parte de algumas organizações que procuram o caminho consensual para o tratamento de controvérsias empresariais, o que inclui a recuperação de empresas em dificuldade financeira. O quanto antes a empresa procura pela mediação, maiores são as chances de melhorar o relacionamento com seus clientes e fornecedores e construir, de forma conjunta, alternativas para a superação de situações de conflito ou crise.
Os ganhos com a diminuição de deslocamentos (particularmente afetados pela pandemia), a redução de custos e a maior facilidade na conciliação de agendas colaboram para o engajamento das partes, ao mesmo tempo em que ajudam a despertar um maior interesse das empresas pela mediação e, precisamente, pela mediação online. O mercado também sinaliza a demanda de algumas organizações pela construção de sistemas de gestão adequada de conflitos adaptados às suas circunstâncias. Isso inclui uma análise, por exemplo, do tipo de controvérsia, da quantidade de partes envolvidas, da disposição geográfica e perfil dessas pessoas, dos recursos financeiros a serem mobilizados e da acessibilidade, uma preocupação fundamental quando se trata do uso de tecnologia no sistema de justiça11.
Esta demanda das empresas alia o uso de tecnologias com a criação de estratégias jurídicas para fomentar as chances de composição com os clientes. Assim, o sistema é elaborado “sob medida” e envolve profissionais de áreas multidisciplinares como Gestão12, Economia e Direito13.
Este tipo de sistema pode oferecer um ou mais métodos de solução adequada de conflitos, em particular, a negociação e a mediação em formato eletrônico, conforme se alinhe a estratégia da empresa com os indivíduos com quem deseja alcançar um acordo. Na hipótese de o programa ser desenvolvido em parceria com alguma atuação institucional de tribunais, os padrões e necessidades dos órgãos jurisdicionais também devem ser contemplados. A orquestra de atores e interesses no sistema se desenvolve com transparência, efetividade e bases cooperativas e colaborativas, um novo e essencial aprendizado na realização da Justiça brasileira.
Um divisor de águas na implementação de desenho de sistemas de resolução online de disputas na América Latina foi o caso da empresa de telefonia OI, em dificuldade financeira e no início do processo recuperacional à época. Em 2017, a OI contou com o apoio da FGV e suporte institucional tanto do judiciário quanto do Ministério Público para o desenvolvimento de um projeto para viabilizar a solução negociada de créditos por meio de vias consensuais, sobretudo da mediação. O montante da dívida foi estimado, à época, em 64 bilhões de reais e o processo tramitava junto à 7ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Rio de Janeiro14.
A iniciativa propiciou já nos primeiros meses uma experiência de escala inédita15 com abrangência de mais de 61.000 credores espalhados pela América Latina e Portugal. Aproximadamente 200 mediadores remunerados conduziram as tratativas consensuais entre as partes. Tanto esses facilitadores quanto a equipe da OI foram treinados previamente na utilização da plataforma. Também havia pontos de contato com função pedagógica e de suporte a advogados e credores.
No momento, o projeto está na 5ª versão do sistema com mais de 1.500 sessões de mediação online realizadas e mais de 42.000 acordos firmados. O fluxo deste sistema englobava algumas etapas. A primeira consistiu no cadastramento dos credores na plataforma. Os credores habilitados, bem como os respectivos advogados, passavam a ter acesso a uma proposta automatizada e personalizada pelo próprio sistema gerada a partir de uma base de dados com informações fornecidas pela empresa, pelos advogados, pelo Ministério Público e pelo próprio Judiciário.
O credor tinha a opção de aceitar ou rejeitar a proposta. Na hipótese de proposta insatisfatória, o credor tinha a possibilidade de requerer uma sessão de mediação online e conseguia se conectar remotamente ou, caso desejasse, presencialmente em algum dos mais de 40 postos de atendimentos espalhados pelo Brasil e outros países.
Em caso de acordo, a própria plataforma minutava automaticamente o termo da sessão e, com a aprovação das partes, os ajustes eram encaminhados à homologação pelo juízo competente. O pagamento dos valores acertados também era processado via a plataforma.
Sem dúvida, o sucesso deste projeto deve-se ao envolvimento de vários atores do sistema de Justiça que incluíram o próprio Judiciário, o Ministério Público e os Departamentos Jurídicos da empresa que apostaram nesta concepção inovadora para propiciar soluções da forma mais eficiente possível, ainda que em um contexto de dificuldade financeira. Além disso, o envolvimento dos profissionais de TI também foi importante para a criação de um sistema que garantisse a acessibilidade. Assim, os mediadores e facilitadores atenderam as partes tanto de forma remota, quanto presencial, em postos de atendimento previamente definidos.
Os resultados deste projeto foram percebidos por vários especialistas16 em recuperação de empresas que, inclusive, motivam a implementação de programas pilotos semelhantes em outros casos e também por outros tribunais do país. As decisões de primeira e segunda instância, assim como os precedentes do STJ17 tornaram-se fundamentais no respaldo desse tipo de iniciativa.
É interessante verificar também o otimismo que o programa da OI produziu para o uso de plataformas de solução de conflitos em outros tipos de disputas, de modo que esses casos também pudessem ser resolvidos com maior celeridade, mas ao mesmo tempo, em uma estrutura segura, transparente e propícia ao acordo entre as partes.
A mobilização deste projeto se refletiu na satisfação dos credores, em um alto volume de acordos e na continuidade das atividades da OI. Este cenário motivou outras empresas a procurarem por soluções customizadas para tratar de demandas específicas e a atual conjuntura é bastante propícia para o emprego ainda maior da mediação e dos outros métodos adequados de solução de conflitos com tratativas presenciais, e particularmente, em ambiente virtual18.
Inclusive, a lei 14.112 de 2020 aprimorou o regime de insolvência empresarial brasileiro19 e previu, expressamente, a possibilidade das partes se dirigirem à mediação antes e durante o processo de recuperação judicial e falência, a qualquer tempo (artigos 20-A a 20-D). A nova legislação também admite que as sessões sejam realizadas de forma virtual.
Assim, a tendência para empresas que lidam com um número significativo de casos que contenham alguma particularidade indica que o caminho da construção de plataformas customizadas para a resolução consensual de conflitos será bastante utilizado. Este quadro é particularmente favorável à mediação online com o uso da tecnologia20 em prol da otimização e maior acesso à uma proclamada ordem jurídica justa.
*Juliana Loss é pesquisadora e Coordenadora Executiva do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV. Doutora pela Université Paris I Panthéon Sorbonne.
**Fernanda Bragança é pesquisadora do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV. Doutora pela Universidade Federal Fluminense e pesquisadora visitante na Université Paris I Panthéon Sorbonne.
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1 BOA VISTA SCPC. Indicadores de Falências e Recuperações Judiciais. Disponível aqui, acesso em 5 de junho de 2021.
2 Cf. Pedidos de recuperação judicial devem subir 53% este ano, a 1,8 mil, prevê consultoria. Estadão, economia, 27 de janeiro de 2021. Disponível aqui, acesso em 31 de maio de 2021.
3 Cf. BASÍLIO, Ana Tereza. Na Covid-19, é importante renovar o debate sobre a mediação prévia. Consultor Jurídico, opinião, 17 de julho de 2020. Disponível aqui, acesso em 7 de junho de 2021.
4 TJSP. Provimento CG no. 11 de 2020. Dispõe sobre a criação de projeto-piloto de conciliação e mediação pré- processuais para disputas empresariais decorrentes dos efeitos da Covid- 19. Disponível aqui, acesso em 22 de outubro de 2020.
5 TJPR. "CEJUSC Recuperação Empresarial" é implantado na comarca de Francisco Beltrão, 4 de maio de 2020. Disponível aqui, acesso em 22 de outubro de 2020.
6 TJRJ. Ato normativo no. 17/2020. Dispõe sobre a implantação de projeto de Regime Especial de Tratamento de Conflitos relativos à renegociação prévia, à recuperação empresarial, judicial e extrajudicial, e à falência das empresas atingidas pelo impacto da pandemia COVID-19. Disponível aqui, acesso em 22 de outubro de 2020.
7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução no. 71 de 5 de agosto de 2020. Dispõe sobre a criação do Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania – Cejusc Empresarial e fomenta o uso de métodos adequados de tratamento de conflitos de natureza empresarial. Disponível aqui, acesso em 21 de outubro de 2020.
8 Cf. BRAGANÇA, Fernanda; ANDRADE, Juliana Loss; BRAGA, Renata. A tendência de especialização na mediação: o mediador nos processos de recuperação e falência de empresas. In: Actas IV Congreso Internacional de Globalización, Ética y Derecho. Madrid, Univerversidad Complutense de Madrid; Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2020, pp. 320-331.
9 Cf. CADIET, Loic; CLAY, Thomas. Les modes alternatifs de règlement des conflits. Paris: Dalloz, 2019.
10 SCHMIDT, Gustavo da Rocha; BUMACHAR, Juliana. Como a mediação pode ajudar a recuperação de empresas em dificuldade. Migalhas, migalhas de peso, 20 de maio de 2021. Disponível aqui, acesso em 7 de junho de 2021.
11 Cf. ANDRADE, Juliana Loss; BRAGANÇA, Fernanda; DYMA, Maria Fernanda. Mediação online: evolução, tecnologia e desafios de acessibilidade. In: VIEIRA, Amanda de Lima et al (Coords.). Coletânea Estudos sobre Mediação no Brasil e no exterior, v. 3. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2020, pp. 163 -174.
12 Cf. COSTA, Daniel Carnio. Novas teorias sobre processos de insolvência e gestão democrática de processos. In: COSTA, Daniel Carnio (Coord.) Comentários completos à lei de recuperação de empresas e falências. Curitiba: Juruá, 2015.
13 Cf. CAVALLI, Cássio. Empresa, Direito e Economia, 1a edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2013.
14 Caso Oi: mediação extrajudicial com cerca de 20 mil credores começa nessa sexta-feira no Rio. Disponível aqui, acesso em 5 de junho de 2021.
15 SANTOS, Paulo Penalva. A maior recuperação judicial do país. Migalhas, Migalhas de peso, 28 de setembro de 2020. Disponível aqui, acesso em 7 de junho de 2021.
16 Cf. LONGO, Samantha Mendes. TJ-RJ incentiva acordos com mediação online. Estadão, Política, 27 de março de 2019. Disponível aqui, acesso em 5 de junho de 2021.
17 SALOMÃO, Luis Felipe; SANTOS, Paulo Penalva. Recuperação judicial, extrajudicial e falência: Teoria e Prática. – 4. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.
18 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. A mediação on line e as novas tendências em tempos de virtualização por força da pandemia de Covid-19. Disponível aqui, acesso em 7 de junho de 2021.
19 SALOMÃO, Luis Felipe; COSTA, Daniel Carnio. Revolução na insolvência empresarial. Estado de São Paulo, Opinião, 4 de dezembro de 2020. Disponível aqui, acesso em 7 de junho de 2021.
20 Cf. BARONA VILAR, Silvia. Justicia Civil Post-Coronavirus, de la crisis a algunas de las reformas que se avizoran. Actualidad Jurídica Iberoamericana Nº 12 bis, pp. 776-787, maio 2020.