Pode-se dizer que o Ceticismo Filosófico muitas vezes foi marginalizado ou mal compreendido ao longo da história da filosofia ocidental; mas não por sua falta de relevância, e sim por apresentar uma posição crítica em relação ao dogmatismo ou ao pensamento doutrinário.
Diante de um mundo cada vez mais incerto, onde a anomalia grega parece se impor a qualquer tentativa de domar os fenômenos, a inquietação humana diante da incerteza do futuro, do devir, parece necessitar de uma nova perspectiva de análise filosófica, sendo apresentada à sociedade a partir de um modo de vida filosófico cético moderno, quiçá contemporâneo.
O trabalho é árduo. Por quê? O termo “cético” é um daqueles que são apropriados pela linguagem corrente e que não necessariamente apresenta a mesma acepção que no campo filosófico. No caso em questão, o entendimento é muito diferente do que se propõe filosoficamente.
O pensamento está integrado à prática para a filosofia cética - em um exercício cotidiano -, não estando tão ligado, como se propaga, à uma polêmica com as outras correntes filosóficas. O Ceticismo Filosófico nos ensinou ao longo da história a pensar de maneira menos fechada, menos enraizada.
A solução fornecida pelo Ceticismo Filosófico para o problema da diafonia é anterior a esta, ou seja, é evitar a diafonia. Assim, não se daria o conflito entre teorias e propostas de conhecimento uma vez que se admitem outras possibilidades, proporcionando-nos um certo tipo de pluralismo científico.
No entanto, os conflitos entre opiniões e crenças do senso comum permanecem na sociedade; mais do que isso: grassam num ritmo elevado.
Nesse sentido, a função de mediador de conflitos ganha relevância na sociedade. Ela vem ganhando em importância e notoriedade nos Estados Unidos da América, na Europa e também no Brasil.
A mediação de conflitos surge como um dispositivo promissor para a solução ou, como diria Wittgenstein, dissolução desses problemas, aproximando o Ceticismo Filosófico de um modo de vida mediador de conflitos.
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Michel de Montaigne nasceu em 1533 na França. Viveu em uma época de grandes acontecimentos, como a recém-descoberta do “novo mundo” e a Reforma Protestante. A referida descoberta abalou as bases de conhecimento na Europa, uma vez que muito do que se encontrou nas terras depois chamadas americanas não encontrava nenhuma correspondência ou referência nos tratados da época, seja no reino vegetal, seja no reino animal. E, em especial, podemos dizer que o modo de vida encontrado nos nativos estremeceu as supostas verdades da época.
Após alguns anos atuando nos negócios públicos de sua cidade, Montaigne decide retirar-se para uma vida de reflexões em seu castelo, onde escreveria seus Ensaios. E por que esse nome? Como ele mesmo diz em um deles, de acordo com a tradução de Sérgio Milliet, “Se minha alma pudesse fixar-se, eu não seria hesitante; falaria claramente como um homem seguro de si. Mas ela não para e se agita sempre à procura do caminho certo.”
Montaigne é o primeiro grande escritor nesse estilo e, sem dúvida, revolucionou a forma de filosofar. Deixou de lado os sistemas, os tratados, para escrever livremente sobre o tema que lhe vinha à mente e, sempre, colocando no papel tudo que sua alma oferecia naquele instante que redigia.
O ensaísta é visto por muitos pesquisadores como um dos grandes nomes, senão o maior, do Ceticismo Filosófico, em especial o moderno. Devido às suas qualidades pessoais, foi um autêntico mediador de conflitos. Atuou para apaziguar os ânimos nas Guerras de Religião e, muito mais do que isso, diante de um conflito que não permitia uma convivência possível em um Estado que fora alicerçado nas bases da fé, inovou ao apostar no caráter dos costumes a solução adequada para um acordo entre as partes.
Como diz André Scoralick no final de sua Apresentação dos Ensaios, em edição revisada por Sérgio Milliet, “Montaigne, enfim, humaniza a ordem política. Ao fazê-lo, deixa o precioso legado da conciliação e do entendimento, da convivência pacífica com a diferença, do pluralismo e da tolerância – para seus contemporâneos e para todos os tempos em que a tentação do absoluto vier a ameaçar o acordo entre os homens”.
Sendo assim, se o pensamento montaigniano pode ser pesquisado e compreendido por meio de seus “Ensaios”, sua vida prática também não pode ser esquecida.
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O Ceticismo Filosófico, portanto, pode contribuir no trabalho do mediador de conflitos. Concebido como uma skeptiké agogé, o conhecimento do Ceticismo Filosófico como modo de vida, atitude, tendo um sentido prático e uma dimensão ética, pode aumentar as chances da formulação de acordos.
Enxergar o conflito por outro ângulo, por outro viés, tomando distância de realidade, pode ser um exercício, uma prática filosófica que resulta em menos incerteza e sofrimento causados por questões beligerantes sem perspectiva de solução.
Segundo a filósofa Sylvia Giocanti, para tanto, devemos nos proporcionar os meios de habitar o mundo por meio de um trabalho de domesticação do real, das aparências. É esse trabalho conciliador e apaziguador que se pode qualificar de "cético", diferente quanto aos céticos gregos, na medida em que ocorre no nível do discurso - este o lugar de retrabalho de nossa relação com o mundo a partir da remodelação de nossas representações.
Essa visão extraída da obra “Scepticisme et Inquiétude” (“Ceticismo e Inquietação”) da referida filósofa justifica em parte a aposta no Ceticismo Filosófico como uma prática que favorece a mediação de conflitos, na medida em que tanto as partes em conflito como o mediador reorganizam a relação conflituosa que se dá no mundo da vida, apresentando uma nova forma de enxergar os problemas e os “fatos”.
Além disso, a necessidade de uma neutralidade por parte do mediador de conflitos aproxima de maneira muito forte essa posição com a do Ceticismo Filosófico, que não toma partido em favor de uma posição e guarda distância das opiniões e crenças.
Segundo Montaigne, “le monde est une branloire pérenne” (“o mundo é um movimento perene”), em eterno movimento, dentro do qual “nous sommes embarques” (“nós embarcamos”) - como diria Pascal. A crença em uma certeza de um casamento que deveria durar para sempre, de uma sociedade empresarial de sucesso, de uma relação aluno-universidade harmoniosa é, na maioria das vezes, a grande dificultadora de uma solução pacificadora alternativa àquela tradicional, judicializada, em que um poder outorgado define quem está certo e quem está errado. Ainda conforme Montaigne, aqueles que pensam que vivem na certeza não percebem que essa certeza em que se baseiam não é menos incerta e perigosa do que o próprio acaso...
Para Giocanti, o Ceticismo, como atitude filosófica, ousa afirmar a hesitação como legítima, louvável, quando associada ao juízo, ao exame. Os céticos filosóficos, evitando tomar uma posição firme sobre as coisas por si mesmas, são um belo exemplo de postura a ser tomada pelas partes em conflito. A flexibilidade, “la souplesse”, se faz necessário aqui.
O Ceticismo Filosófico, conforme a visão de Giocanti, defende que a alma pode acalmar-se, sem que essa tranquilidade advenha da determinação de uma verdade – que seria responsável pelas diretrizes daquilo que deve ser feito. As partes em conflito tendem a achar que detém a verdade, direcionando-as para uma postura inquebrantável e inarredável que dificulta o acordo consensual. Essa postura vai de encontro àquilo que é próprio do Ceticismo Filosófico.
Montaigne, como bom mediador que era, em sua postura filosófica cética declarava “priver son jugement du droit de faire des arrêts” (“privar o julgamento do direito de fazer julgamentos”). E se assim o fazia, não era para parar de exercitar o pensamento. A mediação de conflitos fundamenta-se precipuamente nesse sentido: o objetivo não é decretar quem está com a razão. Pelo contrário, o mediador deve exercitar seu pensamento na busca pelas possibilidades de acordo.
Portanto, a principal crítica realizada pelo Ceticismo Filosófico é a crença e a opinião como parada do pensamento, ou seja, uma adesão fixa, fechada, a uma ideia, uma tese, uma narrativa. O que, certamente, dificulta em muito a construção de acordos consensuais. Mas, sem parar na crítica, a filósofa Sylvia Giocanti oferece os meios para dissolver essa postura. Aqui se abre um novo mundo para a mediação de conflitos.