Migalha Trabalhista

A penhorabilidade de salários e aposentadorias do devedor trabalhista: uma realidade estabelecida, mas o percentual de 50% é adequado?

Ainda há debate sobre a penhorabilidade de salários e aposentadorias para créditos trabalhistas. O §2º do art. 833 do CPC pode não se aplicar a créditos trabalhistas, com TRTs interpretando a impenhorabilidade de forma restritiva, enquanto o TST defende a proteção total desses rendimentos para garantir a dignidade do devedor e sua família.

9/8/2024

Há quem ainda defenda que a exceção prevista no §2º do art. 833 do CPC não se estende aos créditos trabalhistas de natureza alimentar. Em outras palavras, a impenhorabilidade estabelecida no caput do referido dispositivo não se aplica nos casos de pagamento de prestação alimentícia de natureza cível, sendo a penhora permitida apenas em situações de responsabilidade por acidente ou doença.1

Embora a matéria esteja aparentemente pacificada no TST, os TRTs, por alguns julgados, ainda afirmam que os limites previstos pelo art. 833 do CPC são definidos e não permitem qualquer ampliação a critério do julgador, assegurando a impenhorabilidade do salário e da aposentadoria recebidos pelo devedor trabalhista (IV).

Nesse sentido, vale destacar que o entendimento consolidado pela justiça do trabalho era de que, mesmo sob a vigência do novo CPC/15, os créditos trabalhistas deferidos não se enquadram no conceito de prestação alimentícia. Consequentemente, a norma deveria ser interpretada em conformidade com os princípios da solidariedade humana e da assistência social, o que justificava a vedação à penhora de proventos de aposentadoria e salário destinados ao sustento do devedor e de sua família.2-3

Aliás, subsiste a controvérsia sobre se a mera natureza trabalhista do crédito justifica a penhora de salários e aposentadorias dos devedores trabalhistas, principalmente no âmbito dos TRTs, dada a ausência de exceção legal à regra de impenhorabilidade, uma vez que o inciso IV e §2º do art. 833 do CPC mantém, de certa forma – não em sua essência –, a mesma restrição estabelecida no diploma processual anterior (art. 649, IV, §2º, do CPC/73), não admitindo uma interpretação ampliativa que excepcione os créditos trabalhistas dessa vedação.

Em decisão do TST, em voto de relatoria do então ministro Alberto Bresciani, a 3ª Turma asseverou que “o legislador, ao fixar a impenhorabilidade absoluta, enaltece a proteção ao ser humano, seja em atenção à sobrevivência digna e com saúde do devedor e de sua família, seja sob o foco da segurança e da liberdade no conviver social dos homens” (TST-RR-110808820165150120, relator: Alberto Luiz Bresciani De Fontan Pereira, data de julgamento: 5/5/21, 3ª Turma, data de publicação: 7/5/21).

A questão também é debatida sob outra perspectiva, envolvendo a distinção entre "prestação alimentícia" e "crédito de natureza alimentícia", pois enquanto a primeira refere-se à obrigação regulada pela lei 5.478/68 e pelos arts. 911 e 913 do CPC, a segunda diz respeito à quantia destinada à subsistência do alimentando em razão do parentesco.4

Assim, há entendimentos recentes que sustentam que os créditos deferidos em reclamações trabalhistas não se encaixam na definição de prestação alimentícia strictu senso, não sendo, portanto, admissível a penhora do salário ou aposentadoria destinados ao sustento do devedor, à luz dos princípios de solidariedade humana e assistência social.5

No entanto, a jurisprudência da justiça do trabalho vem se consolidando em sentido oposto, reconhecendo a penhorabilidade de salários e aposentadorias como uma realidade. O artigo 833, IV, do CPC de 2015, aplicado subsidiariamente ao processo do trabalho, de fato estabelece a impenhorabilidade dos proventos de aposentadoria:

Art. 833. São impenhoráveis:

(...)

IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios; bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º.

Essa regra é excepcionada pelo § 2º, que dispõe que:

§ 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º, e no art. 529, § 3º.

Diante desse pretexto, a Corte Superior Trabalhista revisou seu entendimento à luz das premissas estabelecidas pelo novo CPC, pela lei da reforma trabalhista e pela jurisprudência civil, passando a reconhecer a natureza alimentar do crédito trabalhista e, portanto, a sua abrangência pela exceção legal, permitindo a penhora parcial dos salários e benefícios previdenciários, conforme o disposto no § 3º do artigo 529 do CPC.

É relevante observar que essa foi a compreensão do Tribunal Pleno do TST ao revisar, em setembro de 2017, a redação da OJ 153 da SBDI-2, para adequar a diretriz ao CPC de 2015, preservando, contudo, a regulamentação dos fatos ainda regidos pela legislação anterior, o que resultou em uma certa ambiguidade na sua interpretação:

153. MANDADO DE SEGURANÇA. EXECUÇÃO. ORDEM DE PENHORA SOBRE VALORES EXISTENTES EM CONTA SALÁRIO. ART. 649, IV, DO CPC DE 1973. ILEGALIDADE. (atualizada em decorrência do CPC de 2015) - Res. 220/17, DEJT divulgado em 21, 22 e 25/9/17

Ofende direito líquido e certo decisão que determina o bloqueio de numerário existente em conta salário, para satisfação de crédito trabalhista, ainda que seja limitado a determinado percentual dos valores recebidos ou a valor revertido para fundo de aplicação ou poupança, visto que o art. 649, IV, do CPC de 1973 contém norma imperativa que não admite interpretação ampliativa, sendo a exceção prevista no art. 649, § 2º, do CPC de 1973 espécie e não gênero de crédito de natureza alimentícia, não englobando o crédito trabalhista. 

Assim, a Corte passou a reconhecer que o crédito trabalhista, por sua natureza, configura uma espécie de prestação alimentícia, uma vez que está diretamente relacionado à subsistência do trabalhador e de sua família.6 Ainda assim, é relevante observar que, ao adotar essa posição, o Tribunal destacou que a penhora não deve ultrapassar 50% dos ganhos líquidos do executado, com base no art. 529, § 3º do CPC. Ou seja, o TST autorizou que as penhoras sejam realizadas dentro do limite de até 50% dos proventos dos devedores.7

Para equilibrar o direito do exequente de satisfazer seu crédito com a necessidade de garantir a subsistência do executado, a penhora foi limitada a 50% do rendimento líquido do devedor, assegurando-lhe o recebimento de pelo menos um salário mínimo, em respeito à dignidade da pessoa humana e ao mínimo existencial (art. 1º, III, da CRFB).8

Nesse contexto, aliás, descabe aplicar, por analogia ao processo do trabalho, o decreto 11.567/23, que estabelece o valor de R$ 600,00 como mínimo existencial para casos de superendividamento e situações de endividamento resultante de acúmulo de execuções. Essa interpretação foi inicialmente adotada, v.g., pela 21ª Vara do Trabalho de São Paulo permitindo que, em um determinado caso concreto, o devedor trabalhista vivesse com cerca de metade de um salário-mínimo na época em vigor. No entanto, tal decisão foi acertadamente reformada pelo TRT da 2ª região, inclusive por ausência de amparo legal.

Embora a relatividade da penhora de proventos seja aplicável a diversas áreas do direito, o problema que subsiste é a ausência de critérios claros sobre como essa flexibilização deve ser implementada, o que vem resultando em uma miríade de entendimentos, tanto que o STJ afetou os REps 1.894.973, 2.071.335 e 2.071.382 (Tema 1.230), de relatoria do ministro Raul Araújo, para definir “?o alcance da exceção da regra da impenhorabilidade de salário para efeito de pagamento de dívidas não alimentares, inclusive quando a renda do devedor for inferior a 50 salários mínimos”, levantando dúvidas quanto ao impacto de seu resultado sobre a jurisprudência da justiça especializada.

Ao contrário do que ocorre na esfera cível, onde o parâmetro de 30% é amplamente adotado para descontos de empréstimos consignados (em observância da lei 10.820/03)9, no âmbito trabalhista a limitação de 50% dos salários ou proventos de aposentadoria não tem sido estabelecida com base em um critério mais objetivo. Isso porque, mesmo em casos em que os devedores recebem menos de 40% do teto previdenciário (R$ 3.114,40 para 2024), por regra são pessoas idosas e que demonstram custos básicos elevados, cuja experiência tem demonstrado que a penhora de até 50% tem sido mantida em diversos julgados. Essa prática frequentemente se justifica com base nos princípios da razoabilidade, dignidade e efetividade da execução.

Não se questiona aqui a justiça da penhora das verbas alimentares dos devedores trabalhistas, reconhecendo-se que o histórico de frustração na execução devido à falta de pagamento pode ter realmente demandado uma atualização normativa para assegurar a efetividade das decisões judiciais. Apesar disso, ao analisar as inovações pela sua relativização, nota-se que o legislador buscou equilibrar a proteção dos direitos do credor com a manutenção da dignidade do devedor enquanto ele quita a dívida.

A questão permite examinar que, ao determinar que salários até 40% do teto do RGPS não são adequados para cobrir despesas processuais sem comprometer o sustento do devedor, o legislador estabeleceu um critério que é, portanto, razoável para definir o valor mínimo necessário à subsistência do devedor e os limites da penhora, uma vez que não se mostra adequado manter uma penhora de 50% dos proventos líquidos sem uma análise detalhada dos demais fatores relacionados ao custo de vida da pessoa e à própria insuficiência econômica, que comprometeria a manutenção das despesas básicas mensais do devedor.

À luz dessas premissas, salvo entendimento diverso, não há ilegalidade na decisão que, sob o CPC de 2015, permite a penhora de até 50% dos salários ou proventos da parte executada. Porém, diversas situações, especialmente quando o devedor demonstra incapacidade financeira para subsistir ou enfrenta múltiplas penhoras, como ocorre frequentemente com pequenos empresários em falência ou em descontinuidade do negócio, exigem uma análise casuística.

Portanto, embora se defenda pela via jurisprudencial a relativização da impenhorabilidade do salário e da aposentadoria, é essencial considerar a origem da renda do devedor, de modo que, quando essa renda for inferior a 40% do teto máximo dos benefícios do RGPS, a penhora, mesmo reduzida, respeite os limites que garantem uma subsistência digna. Isso não representa  equiparar, por regra, ao limite de um salário-mínimo, mas sim de um valor partindo dele para garantir a manutenção das despesas básicas mensais – por vezes superiores ao salário mínimo.

Menciona-se, para a hipótese, a teoria do estatuto jurídico do patrimônio mínimo (ministro Edson Fachin), afirmando que o ordenamento jurídico deve garantir ao indivíduo um patrimônio mínimo, assegurando-se, pois, o mínimo existencial e o respeito à dignidade da pessoa humana.

O STJ também adota essa abordagem ao afirmar que "é necessário harmonizar duas vertentes do princípio da dignidade da pessoa: O direito ao mínimo existencial e o direito à satisfação executiva, o que deve ser feito in concreto" (REsp 1658069).10

Por evidente que os interesses antagônicos, existentes no processo judicial, devem ser equilibrados de modo a preservar a dignidade da pessoa humana de ambas as partes. No entanto, dependendo das circunstâncias específicas do caso concreto, a dignidade do devedor trabalhista pode prevalecer. Exemplificando a questão, o TST já se posicionou nesse sentido, prevalecendo os interesses do devedor em observância da sua dignidade, ao dispor que "está evidente que o veículo especial do executado não pode ser penhorado, quer pelo princípio da proteção da pessoa com deficiência, quer em face do dever estatal de promoção de inclusão e de acessibilidade plena ao portador de deficiência" (ROT-1000902-22.2021.5.02.0000, SbDI-2, relator ministro Evandro Pereira Valadão Lopes, DEJT 25/11/22).

Por isso que efetivar bloqueios de verbas de natureza alimentar, independentemente do percentual, mas sobretudo acima daquele geralmente praticado (30%), sem observar as circunstâncias limitadoras do caso concreto, podem comprometer gravemente direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), os direitos sociais à moradia, alimentação e saúde (art. 6º) e o direito à renda mínima (art. 7º, IV e X). Tais medidas podem ainda resultar em violações dos direitos sociais do empreendedor, que frequentemente enfrenta outras dívidas devido ao fracasso em seus negócios, descabendo equiparar pessoas físicas que tentam empreender em pequenos negócios a grandes conglomerados empresariais - embora se reconheça que, em ambos os casos, não se deve comprometer os direitos trabalhistas, pois quem empreende assume os riscos associados ao seu empreendimento.

Em derradeiro, por reflexão, dado que o legislador determinou que salários até 40% do teto do RGPS não permitem arcar com despesas processuais sem comprometer o sustento, parece ser razoável usar esse critério para definir o mínimo necessário à subsistência do devedor e os limites da penhora, evitando, em especial, uma penhora de 50% ou de outro patamar qualquer que desconsidere os custos de vida e a insuficiência econômica para despesas básicas.

_______

1 TRT-2 10003159420215020292 SP, Relator: RILMA APARECIDA HEMETERIO, 18ª Turma - Cadeira 1, Data de Publicação: 22/07 /2021.

2 TST-RO: 0010390-47.2016.5.18.0000, Relator: Alberto Luiz Bresciani De Fontan Pereira, Data de Julgamento: 07/02/2017, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: 10/02/2017.

3 TST-RO: 380320165190000, Relator: Maria Helena Mallmann, Data de Julgamento: 06/12/2016, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT 19/12/2016.

4 TRT-17 - MSCiv: 0000146-47.2020.5.17.0000, Relator: JOSE LUIZ SERAFINI, Pleno - OJ de Análise de Recurso.

5 TRT-2-AP: 10022109320165020089 SP, Relator: RILMA APARECIDA HEMETERIO, 18ª Turma, Data de Publicação: 20/04/2022.

6 TST-RR: 10021151620165020040, Relator: Delaide Alves Miranda Arantes, Data de Julgamento: 22/03/2023, 8ª Turma, Data de Publicação: 27/03/2023.

7 TST-RR: 0001400-83.2004.5.03.0104, Relator: Ives Gandra Da Silva Martins Filho, Data de Julgamento: 02/04/2024, 4ª Turma, Data de Publicação: 05/04/2024.

8 Disponível aqui. ROT-10121-83.2020.5.03.0000, relator ministro: Evandro Pereira Valadão Lopes, Data de Julgamento: 14/02/2023, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT 17/02/2023.

9 Disponível aqui. Acesso em 8.8.2024.

10 STJ-REsp: 1658069 GO 2016/0015806-6, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 14/11/2017, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/11/2017.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

Ricardo Calcini é advogado, Parecerista e Consultor Trabalhista. Sócio Fundador de Calcini Advogados. Atuação Especializada e Estratégica (TRTs, TST e STF). Professor M. Sc. Direito do Trabalho (PUC/SP). Docente vinculado ao programa de pós-graduação de Direito do Trabalho do INSPER/SP. Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Colunista nos portais JOTA, Migalhas e ConJur. Autor de obras e de artigos jurídicos em revistas especializadas. Membro e Pesquisador: GETRAB-USP, GEDTRAB-FDRP/USP e CIELO Laboral. Membro do Comitê Executivo da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Professor Visitante: USP/RP, PUC/RS, PUC/PR, FDV/ES, IBMEC/RJ, FADI/SP e ESA/OAB.