Migalha Trabalhista

O credor e a prova diabólica: uma leitura crítica do IAC 12 do STJ

O texto aborda a questão jurídica da penhora de valores em contas bancárias conjuntas no contexto da jurisdição executiva, com foco específico na execução trabalhista.

26/7/2024

A conta bancária conjunta solidária é um tipo de contrato bancário que possui mais de um titular na instituição financeira mantenedora, permitindo, com isso, que os contratantes, individualmente, isto é, sem autorização do cotitular, realizem a movimentação do numerário disponível na conta, incluindo saques, transferências, depósitos, pagamentos com débitos em conta, entre outras operações financeiras.

Por envolver gestão de patrimônio financeiro em comum, este tipo de conta bancária é geralmente aberta por pessoas casadas, em regime de união estável ou por familiares próximos (como descendentes e genitores).

No âmbito da pesquisa patrimonial na jurisdição executiva, a conta conjunta é alvo frequente das ordens de bloqueio judicial por meio da ferramenta eletrônica SISBAJUD - Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário. Assim, o sistema realiza a constrição do saldo depositado em conta bancária conjunta mantida pelo devedor em regime de cotitularidade, indistintamente.

Em razão da própria característica da conta conjunta, entendemos que se trata de hipótese de confusão patrimonial entre os correntistas, haja vista que os cotitulares realizam a movimentação e a gestão financeira dos ativos financeiros depositados na conta, sem haver a segregação do numerário que cabe a cada um dos titulares. Qualquer um dos titulares pode livremente dispor do saldo disponível, sendo impossível, pois, distinguir o que pertence, efetivamente, a cada dos correntistas.

É bem de ver que a dinâmica da conta conjunta solidária gera a presunção de que os cotitulares pactuaram a ausência de exclusividade, desaguando na responsabilidade solidária entre os correntistas em relação ao saldo disponível nesse tipo de conta bancária, decorrente da vontade de seus titulares (art. 265 do CC),  tornando possível a penhora integral dos valores depositados na conta conjunta para a satisfação do crédito exequendo.

Assim sendo – independentemente de serem os cotitulares casados (ou não) e ou de qual regime de bens foi adotado – as pessoas que optam por abrir conta bancária conjunta assumem o risco de ver o saldo comum ser penhorado, ainda que um deles não figure no polo passivo da execução, razão pela qual não há irregularidade da constrição do valor integral da dívida da conta conjunta, sendo certo que, no caso de cotitulares casados, não se cogita a limitação ao valor da meação, pois a solidariedade resultou do ato de vontade manifestado no ato de abertura da conta.

Nesse sentido, de longa data, o c. TST vem decidindo que a conta conjunta é uma conta solidária: “A conta conjunta é uma conta solidária, pois, independentemente do valor ali existente ter sido oriundo de depósitos realizados por apenas um dos titulares, ou de ser originário de crédito relativo a somente um deles, a importância na conta pertence a ambos e pode ser bloqueada para satisfação de dívidas de responsabilidade de qualquer um dos titulares. [...]”. (TST - RO 11693-07.2015.5.01.0000 - 2ª Turma - Relatora Ministra Delaide Alves Miranda Arantes - DEJT 25/06/2021)

Esse é o panorama atual sedimentado no âmbito da jurisdição executiva trabalhista, que pode ser sintetizado na seguinte premissa: todo o saldo disponível na conta conjunta pode ser objeto de constrição judicial em execução trabalhista movida contra um dos cotitulares, sem que haja necessidade de reserva de valores ao outro correntista que não figura no polo passivo da execução.

Ainda que de forma incipiente, esse cenário traçado na jurisdição trabalhista tem começado a sofrer influxos da tese firmada pelo STJ no Incidente de Assunção de Competência (IAC) nº 12, a qual iremos explorar agora.

A tese firmada no mencionado IAC é fruto da divergência jurisprudencial instaurada entre as Turmas de Direito Privado e de Direito Público do STJ, cuja matéria em discussão foi avocada pela Corte Especial para julgamento do REsp 1610844/BA, submetido ao rito do artigo 947 do CPC, para pacificar a seguinte controvérsia: “possibilidade ou não de penhora integral de valores depositados em conta bancária conjunta, na hipótese de apenas um dos titulares ser sujeito passivo de processo executivo”.

Em 2022, a Corte Especial do STJ fixou a seguinte tese: “a) É presumido, em regra, o rateio em partes iguais do numerário mantido em conta corrente conjunta solidária quando inexistente previsão legal ou contratual de responsabilidade solidária dos correntistas pelo pagamento de dívida imputada a um deles. b) Não será possível a penhora da integralidade do saldo existente em conta conjunta solidária no âmbito de execução movida por pessoa (física ou jurídica) distinta da instituição financeira mantenedora, sendo franqueada aos cotitulares e ao exequente a oportunidade de demonstrar os valores que integram o patrimônio de cada um, a fim de afastar a presunção relativa de rateio”.

Embora a tese firmada no IAC 12 não constitua um precedente de observância obrigatória na Justiça do Trabalho, possui evidente efeito persuasivo1, motivo pelo qual se faz necessária uma análise crítica, para fins de adequada aplicação no caso concreto.

Diante da tese firmada pelo STJ, no âmbito das jurisdições executiva civil e fiscal, ao lidar com a penhora de valores em conta conjunta e para evitar o indevido desbloqueio parcial da constrição de ativos financeiros nesta conta, de antemão, é necessário observar se se trata de conta conjunta mantida com cônjuge casado no regime de comunhão universal de bens, pois, nessa hipótese, por expressa previsão legal (art. 1.667 do CC), todo o ativo patrimonial do casal e suas dívidas se comunicam. Logo, haverá presunção legal de solidariedade e confusão patrimonial entre os cônjuges, incidindo a ressalva do item “a” da tese firmada no IAC 12, que afasta a presunção de rateio do numerário mantido em conta corrente conjunta solidária quando há previsão legal de responsabilidade solidária dos correntistas pelo pagamento de dívida imputada a um deles. Nessa mesma linha de raciocínio, destacamos importante precedente do TRT da 6ª Região:

EMENTA: AGRAVO DE PETIÇÃO EM EMBARGOS DE TERCEIROS. PENHORA DE CONTA CONJUNTA. A conta conjunta, por si só, não autoriza concluir pela responsabilidade solidária de seus correntistas quando apenas um deles figura como devedor do título que se executa. Pela dicção do artigo 265 do CC, solidariedade não se presume. Nesse sentido, aliás, a tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Incidente de Assunção de Competência (IAC) 12, [...]. No caso, a solidariedade decorre da certidão de casamento juntada, porque assinala como regime a comunhão universal de bens. Na comunhão universal há comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas (artigo 1.667 do CC). Existem exceções (artigo 1.668 do CC), mas, nenhuma delas se ajusta a hipótese dos autos. Recurso improvido, no particular. (TRT6 - AP 0000247-11.2023.5.06.0251 – 3ª Turma - Relator Desembargador Ruy Salathiel de Albuquerque e Mello Ventura - Data de julgamento: 26/09/2023) (grifamos)

Nessa senda, deparando-se com o pedido de liberação de valores do cotitular nos autos da execução judicial ou na ação de embargos de terceiro, no caso de cônjuge cotitular (situação mais corriqueira de conta conjunta), deve o juiz determinar a juntada da certidão de casamento para aferição do regime de bens, antes de decidir eventual pedido liminar, assim como poderá requisitar tal documento por meio dos convênios CRC-Jud ou Serp-Jud. Igual providência deverá ser requerida pelo credor-embargado, quando intimado a se manifestar sobre o requerimento, caso tal providência já não tenha sido adotada pelo juízo.

Na análise da tese firmada no IAC 12, consideramos o item “b” como o ponto mais crítico, exigindo maior cautela do operador do Direito em sua interpretação, diante do risco de incorrer na “prova diabólica”, que explicaremos mais adiante, uma vez que a tese veda a penhora da integralidade do saldo existente na conta conjunta, estabelecendo uma “presunção relativa de rateio” e, em razão disso, deixa entrever que cabe ao exequente demonstrar que o devedor é titular de montante superior ao quantum presumido.

Como pontapé inicial do processo hermenêutico em torno do adequada compreensão do item “b”, devemos recorrer ao item 5 da ementa do acórdão proferido no REsp 1610844/BA, no qual restou assentado que “[...] por força da presunção do rateio igualitário do saldo constante da ‘conta coletiva solidária’, caberá ao ‘cotitular não devedor’ comprovar que o montante que integra o seu patrimônio exclusivo ultrapassa o quantum presumido. De outro lado, poderá o exequente demonstrar que o devedor executado é quem detém a propriedade exclusiva - ou em maior proporção - dos valores depositados na conta conjunta”.

Conforme decidido pelo STJ, nos demais casos de conta conjunta com cônjuge casado no regime de comunhão parcial de bens ou de união estável ou com outras pessoas (normalmente familiares próximos, a exemplo de conta conjunta entre pais e filhos), é facultado ao exequente demonstrar que os valores penhorados são de propriedade exclusiva do devedor ou em maior proporção dos valores depositados na conta conjunta.

Nesse cenário, na prática, o exequente precisa demonstrar que os aportes em conta conjunta decorrem diretamente da atividade empresarial ou profissional do executado (análise da movimentação bancária) ou que seu cotitular – cônjuge ou descendente, por exemplo – não exerce atividade remunerada capaz de contribuir para a composição do saldo em conta conjunta (por ex., mediante estudo da declaração de imposto de renda – DIRPF para verificar eventual fonte de renda e que o saldo da conta bancária foi declarado como de sua titularidade).

Contudo, é inegável que o exequente não possui acesso à movimentação bancária do devedor, tampouco à declaração de imposto de renda (DIRPF) do cotitular, os quais constituem elementos probatórios decisivos para elucidar a origem dos valores depositados na conta bancária.

A excessiva dificuldade probatória do exequente não foi abordada no voto da relatoria no IAC 12, que se limitou a deixar a porta aberta para que o exequente demonstre, em juízo, que não deve prevalecer, no caso concreto, a presunção de rateio. Portanto, há evidente lacuna hermenêutica, não fornecendo a tese firmada uma clara orientação para resolver os obstáculos probatórios no caso concreto.

Assim sendo, para fins de correta aplicação da tese firmada no IAC 12, considerando a impossibilidade de o credor desincumbir do seu encargo probatório e a notória facilidade da parte adversa na obtenção da prova, em respeito aos direitos fundamentais à ampla produção probatória para tutela do direito (art. 5º, LV, da CF/88) e à paridade de armas (art. 7º do CPC), deve ser adotado, pelo princípio da aptidão da prova, o sistema do ônus dinâmico da prova (arts. 373, §1º, do CPC, e 818, §1º, da CLT), atribuindo-se àquele que tem maior facilidade de produzir a prova o ônus correspondente.

Imputar ao credor que não tem acesso à movimentação bancária dos cotitulares o ônus de provar que os valores existentes na conta são originados exclusivamente de recursos do executado, afigura-se como “prova diabólica”, expressão consagrada na doutrina e jurisprudência para expressar a prova impossível ou excessivamente difícil de ser produzida pela parte, e reconhecida nos arts. 373, §1º, do CPC, e 818, §1º, da CLT. Vale destacar que, no particular, o cotitular terá muito mais facilidade de provar a origem dos recursos bloqueados, emoldurando-se perfeitamente as hipóteses de atribuição do ônus dinâmico da prova: impossibilidade ou extrema dificuldade de produção por uma das partes e maior facilidade à outra parte para produção de tal prova.

Para agravar, ainda mais, o cenário de “prova diabólica” traçado, não se pode descartar a possibilidade de haver indeferimento de eventual pedido de quebra do sigilo bancário pelo exequente, para provar a origem dos valores, sob o fundamento de que não se enquadra nas hipóteses do art. 1º, §4º, da LC nº 105/2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras.

Portanto, resta evidente que a leitura do IAC 12 precisa ser harmonizada com a sistemática do direito probatório, sob pena de violação ao direito fundamental do credor de pleno e efetivo acesso ao Poder Judiciário. Com propriedade, afirmam Marinoni, Arenhart e Mitidiero que “evidentemente, não se pode imaginar que se chegará a uma solução justa atribuindo-se a produção de prova diabólica a uma das partes, ainda mais quando a outra parte, dadas as contingências do caso, teria melhores condições de provar. Tal ocorrendo, não pode incidir o art. 373, caput, CPC, podendo então ser aplicado o art. 373, § 1.º, CPC”2.

Nesse sentido, ao dar processamento ao requerimento do devedor (ou do cotitular da conta bancária) para liberação de 50% do saldo constrito lastreado na tese firmada no IAC 12, tem o juiz o poder-dever de imputar ao devedor e/ou cotitular da conta o ônus de provar a origem dos valores bloqueados, assinalando-lhes prazo razoável para que apresentem em juízo os extratos bancários de determinado período, a ser fixado conforme a circunstâncias do caso concreto, declarações de imposto de renda (do devedor e do cotitular) e outros documentos que comprovem a origem dos recursos financeiros, a fim de verificar como se deu a composição do saldo que foi alvo de bloqueio por meio do SISBAJUD, com a cominação prevista no art. 400 do CPC, isto é, caso o devedor ou cotitular não apresentem os extratos bancários, declarações do imposto de renda e comprovação da origem dos valores depositados, será admitido que os valores bloqueados integram exclusivamente o patrimônio do executado, eliminando, com isso, condutas evasivas para cumprimento de ordem judicial. Não o fazendo o juiz, caberá ao credor requerer em juízo que atribua ao devedor/cotitular, pela regra do §1º do art. 818 da CLT, o ônus de provar a origem dos recursos, ou, subsidiariamente, que sejam requisitadas as DIRPFs do devedor e do cotitular diretamente no sistema INFOJUD.

Por fim, outra possível estratégia de atuação frente ao IAC 12 consiste na inclusão do cônjuge na execução (art. 790, IV, CPC), quando esse for o cotitular da conta bancária, mediante instauração de incidente de corresponsabilização, mediante aplicação analógica das regras do IDPJ, por parte do exequente (e não apenas mero redirecionamento, para evitar alegações de nulidade procedimental), com pedido de tutela provisória de natureza cautelar, para manutenção do bloqueio integral do valor da conta, até que seja resolvida, em definitivo, a inclusão do cônjuge, na qualidade de corresponsável patrimonial nos regimes matrimoniais de comunhão parcial ou total de bens, inclusive na hipótese de união estável3.

__________

1 Neste sentido: TRT15 - AP 0010072-48.2022.5.15.0029 – 11ª Câmara – Relator Desembargador João Batista Martins César - Data de Publicação: 15/02/2023.

2 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 9ª ed. São Paulo: RT, 2023 (E-book), cit. CPC 373, coment. 6.

3 Abordamos a responsabilidade patrimonial do cônjuge em nossa obra: Execução trabalhista na prática. 3ª ed. Leme-SP: Mizuno: 2024, p. 591/604.

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Colunista

Ricardo Calcini é advogado, Parecerista e Consultor Trabalhista. Sócio Fundador de Calcini Advogados. Atuação Especializada e Estratégica (TRTs, TST e STF). Professor M. Sc. Direito do Trabalho (PUC/SP). Docente vinculado ao programa de pós-graduação de Direito do Trabalho do INSPER/SP. Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Colunista nos portais JOTA, Migalhas e ConJur. Autor de obras e de artigos jurídicos em revistas especializadas. Membro e Pesquisador: GETRAB-USP, GEDTRAB-FDRP/USP e CIELO Laboral. Membro do Comitê Executivo da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Professor Visitante: USP/RP, PUC/RS, PUC/PR, FDV/ES, IBMEC/RJ, FADI/SP e ESA/OAB.