Migalha Trabalhista

A lei da isonomia salarial e as interseccionalidades invisíveis

Celebra-se a atual tentativa do legislador de promover uma transformação sociocultural concreta e efetiva na visão androcêntrica do mundo do trabalho acerca das pessoas trabalhadoras, das suas competências e habilidades.

25/8/2023

O ano era 1943. Entrava em vigor o decreto-lei 5.452, a Consolidação das Leis do Trabalho. Em sua redação original, o art. 5º do diploma legal dispunha “a todo trabalho de igual valor corresponderá salário igual, sem distinção de sexo”. Oitenta anos e alguns outros dispositivos normativos separam esse artigo da CLT, ainda em vigor, da festejada lei 14.611, de 03 de julho de 2023, a qual dispõe sobre igualdade salarial e critérios remuneratórios entre mulheres e homens.

Celebra-se a atual tentativa do legislador de promover uma transformação sociocultural concreta e efetiva na visão androcêntrica do mundo do trabalho acerca das pessoas trabalhadoras, das suas competências e habilidades. Uma nova roupagem de enfrentamento a um antigo problema que a sociedade brasileira, a despeito da legislação trabalhista, da Constituição Federal de 1988 e das normas internacionais de Direitos Humanos ainda não deu conta de resolver. Portanto, a efetividade normativa que tanto se  almeja decorrerá do compromisso do legislador com a visibilidade das dinâmicas de trabalho das mulheres a partir das lentes da perspectiva de gênero, pensando o Direito do Trabalho a partir das teorias feministas e considerando que a casa, a família e o trabalho doméstico não são estranhos ao mundo do trabalho produtivo, mas sim a sua base1 .

Não há como tratar de isonomia salarial no mundo do trabalho sem destacar, ainda que de forma sucinta, três aspectos: 1) os impactos dos estereótipos de gênero na inserção feminina no mundo do trabalho, os quais reforçam a posição de centralidade dos homens na sociedade, desprestigiando características e habilidade entendidas socialmente como femininas e valorizando características e comportamentos tidos como masculinos2; 2) a divisão sexual do trabalho, conceito formulado por teóricas feministas fundado em dois princípios, quais sejam, o da separação - através do qual se interpreta que existem trabalhos que devem ser exercidos por homens e outros que se atribui às mulheres; e o hierárquico – através do qual se observa que o trabalho do homem é mais valorizado social e economicamente que o trabalho da mulher3 e, 3) o caráter sexuado da precarização4 marcado pelo crescimento da participação de mulheres, em especial de mulheres que acumulam atravessamentos interseccionais de gênero e raça, em trabalhos precários, vulneráveis ou informais, onde os desníveis salariais em relação aos homens são ainda mais acentuados.

A divisão sexual do trabalho, associada à manutenção no Brasil do familismo como modelo vigente na prática do cuidado, tendo as unidades familiares como principais responsáveis pelo bem-estar de seus membros, sexualiza de maneira naturalizada o trabalho doméstico não remunerado, voltado para o cuidado da família, cabendo às mulheres exercê-lo, ainda que estejam inseridas no mundo produtivo de trabalho5.

Tais considerações preliminares se fazem essenciais para formular uma análise crítica da lei 14.611/2023. O legislador claramente não se ateve a elas, ao estabelecer genericamente a vedação à discriminação salarial, buscando garanti-la, seja através do endurecimento das consequências pecuniárias pela não observância do comando legal, seja pela ampliação de possibilidades de fiscalização do seu cumprimento, ou ainda, pela previsão de condutas para estímulo da participação feminina no mundo do trabalho.

A lei em seu art. 3º promove alteração do art. 461 da CLT, conferindo nova redação ao §6º e acrescendo o §7º, deixando expressa a possibilidade da empregada que sofreu discriminação salarial pleitear cumulativamente o direito ao pagamento das diferenças salariais, indenização por danos morais e multa em montante correspondente a 10 (dez) vezes o novo salário, podendo ser elevada ao dobro em caso de reincidência. A alteração legislativa tem implicações positivas, por estabelecer sanções pecuniárias mais claras e rígidas às empresas que persistirem na prática salarial discriminatória entre homens e mulheres. Entretanto, o legislador perdeu a oportunidade de revisar integralmente o art. 461 da CLT, conferindo-lhe redação efetivamente capaz de eliminar discriminações salariais por motivo de sexo, raça, etnia, origem ou idade, estabelecendo a perspectiva de gênero na análise do critério igual produtividade, eliminando os critérios cumulativos de tempo de serviço e tempo na função, bem como revogando a necessidade de prestação de serviço no mesmo estabelecimento empresarial.

Prosseguiu o legislador estabelecendo medidas para tentar garantir a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens (art. 4º), quais sejam: I – estabelecimento de mecanismos de transparência salarial e de critérios remuneratórios; II – incremento da fiscalização contra a discriminação salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens; III – disponibilização de canais específicos para denúncias de discriminação salarial; IV – promoção e implementação de programas de diversidade e inclusão no ambiente de trabalho que abranjam a capacitação de gestores, de lideranças e de empregados a respeito do tema da equidade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, com aferição de resultados; e V – fomento à capacitação e à formação de mulheres para o ingresso, a permanência e a ascensão no mercado de trabalho em igualdade de condições com os homens.

Embora diante de um cenário patriarcal de desenvolvimento produtivo e laboral, onde frequentemente, as situações de desigualdade de gênero se apresentem como naturalmente constituídas, sabe-se que a existência e permanência destas, são determinadas culturalmente. E partindo desse pressuposto é que chama a atenção dessas autoras o potencial transformador desses dois últimos incisos do art. 4 º do diploma legal em estudo. 

O inciso IV do referido dispositivo ao prever a implantação de programas de diversidade e inclusão, com a capacitação específica de gestores em equidade de gênero, possibilita a sensibilização do mundo corporativo às particularidades da inserção produtiva feminina, sendo a mulher responsável por conciliar o trabalho produtivo, cumprindo metas, participando de treinamentos e qualificações, com as atividades de cuidado não remunerado com a família, resultando na conhecida “dupla jornada” feminina, que acarreta a pobreza de tempo, que pode ser conceituada como a ausência de tempo para atividades essenciais ou necessárias6. Assim, se levada à concretude cotidiana, tais  medidas previstas pelo legislador têm potencial para enfrentar não apenas as discriminações salariais em razão de gênero, mas também outras graves situações que permeiam a inserção das mulheres no mercado trabalho, em especial, aquelas que são mães e muitas vezes “arrimos de família”.

Em 2021 o IBGE divulgou o relatório denominado “Estatísticas de Gênero – Indicadores Sociais das mulheres no Brasil (2ª edição)”7, o qual aponta que no ano de 2019, a taxa de participação das mulheres com 15 anos ou mais de idade foi de 54,5%, enquanto entre os homens esta medida chegou a 73,7%, diferença que se acentua nos lares em que existem mulheres de 25 a 49 anos vivendo com crianças de até 3 anos de idade, onde o nível de ocupação foi de 54,6%, enquanto o dos homens, na mesma situação, foi de 89,2%. A mesma pesquisa também comprovou que, em relação a cuidados de pessoas ou afazeres domésticos, as mulheres dedicaram quase o dobro de tempo que os homens: 21,4 horas contra 11 horas semanais. O relatório evidencia, ainda, que em 2019 no Brasil, 62,6% dos cargos gerenciais eram ocupados por homens e 37,4% pelas mulheres, apesar de apontar que as mulheres possuíam maior índice de escolaridade que os homens, demonstrando a baixa ascensão funcional feminina, fenômeno conhecido como teto de vidro (glass ceiling).

Essa divisão não harmônica dos afazeres domésticos e de cuidado que persiste como obstáculo à emancipação das mulheres, à conquista e à permanência plena do mercado de trabalho ganha dramaticidade quando se observa a realidade das mulheres chefes de família, número que cresceu, também segundo IBGE, entre 2012 e 2019 de 37% para 48%, sendo que esses fatores limitantes para uma melhora na massa salarial afetarão diferentemente as mães-solo conforme as diferentes classes sociais.

Para mulheres que possuem maior escolaridade e melhor potencial de renda, mas que compõem famílias monoparentais e que muitas vezes não podem contar com apoio na dinâmica das tarefas de cuidado, em especial do cuidado com os filhos, buscar ou aceitar cargo de direção ou alta gestão por exemplo, se torna bastante difícil, haja vista a necessidade de conciliar a estabilidade no emprego e a possibilidade de operacionalizar a já comentada dupla-jornada laboral. 

Já quando se analisa os desafios da organização familiar monoparental feminina intersectada pelos marcadores de raça e classe a disparidade relativa à massa salarial se intensifica ainda mais e é somada ao fenômeno da exclusão do mercado de trabalho formal. Cerca de 22% dos lares chefiados por mulheres negras sofrem com a fome e esse percentual é quase o dobro comparativamente às famílias chefiadas por mulheres brancas.

É a partir desse panorama estatístico que se interpreta então, o art. 5º da lei, o qual determina a publicação semestral de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios pelas pessoas jurídicas de direito privado com 100 (cem) ou mais empregados, contendo dados anonimizados e informações que permitam a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por mulheres e homens, acompanhados de informações que possam fornecer dados estatísticos sobre outras possíveis desigualdades decorrentes de raça, etnia, nacionalidade e idade. Tais relatórios além de facilitarem a fiscalização do cumprimento da norma, reavivam um relevante debate no processo do trabalho, acerca da utilização e valoração de provas estatísticas em ações que tratam das discriminações sociais estruturais presentes no mundo do trabalho, que produzem e reproduzem um sistema de exclusões e opressões intergeracionais.

Contudo, após uma primeira leitura da norma em comento, uma pergunta gerou inquietação nestas autoras: quem são as mulheres por ela abrangidas?

Ao refletirmos sobre o perfil das mulheres brasileiras que podem atualmente estar inseridas em grandes empresas (acima de 100 empregados), considerando as permanências históricas coloniais, onde vivenciamos uma estrutura social marcada pela desigualdade racial sobrepostas às assimetrias de gênero, projetamos que a legislação tende a proteger as mulheres que compõem a classe média, predominantemente branca, com maior nível de escolaridade e inserção produtiva em trabalhos com maior remuneração, as quais transferem a execução do trabalho doméstico e de cuidado a uma outra mulher, que passa a executá-lo de maneira remunerada, configurando o denominado modelo de delegação8, mas seguindo como principal responsável pela gestão das atividades familiares, gerando uma carga mental a partir da gestão entre tempo, tarefas e serviços9.

Percebe-se assim que, para o legislador, grande parte das mulheres trabalhadoras seguem invisibilizadas, cabendo a estas a inserção no mundo do trabalho de maneira precarizada, mal remunerada, vulnerabilizada e desvalorizada socialmente. São em regra mulheres negras, trabalhadoras que compõem as camadas mais pobres, que registram tempo maior de trabalho de cuidado não remunerado - 22,0 horas semanais em 2019, em contraponto a 20,7 horas gastas por mulheres brancas, conforme o citado relatório do IBGE e que sofrem mais diretamente a ausência de políticas públicas de atenção e planejamento de cuidado com a infância, a exemplo de creches com horários mais flexíveis e estendidos.

Festejemos sim os avanços em matéria de equidade de gênero no mundo do trabalho capazes de serem alcançados a partir da vigência da lei 14.611/2023, mas não nos esqueçamos que o acesso ao mercado de trabalho no Brasil impacta as mulheres de diferentes formas, a partir da confluência de outros marcadores sociais, como raça e classe, existindo desigualdades sobrepostas que não podem mais seguir à margem da atenção social e legislativa, sendo necessário um amplo debate sobre a criação e conformação de políticas públicas capazes de promover efetivas alterações quantitativas e qualitativas na inserção das mulheres no mundo do trabalho.

Ademais, não podemos olvidar o fato de termos em processo de ratificação outro instrumento jurídico, a Convenção 156 da OIT10, que se propõe a reparar injustiças de gênero a partir da construção e ampliação de estratégias políticas, educacionais, culturais e antidiscriminatórias para as pessoas trabalhadoras, como visto aqui, majoritariamente mulheres negras e mães-solo, que acabam por sofrer limitações em diversos momentos, que vão desde o ingresso na atividade econômica até sua permanência e progressão nas carreiras escolhidas.

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1 FEDERICI, Silvia. O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019.

2 SILVA, Adriana Manta; RODRIGUES, Joana Rêgo Silva. A perspectiva de gênero como ferramenta à serviço da efetivação da igualdade no âmbito da atuação jurisdicional. In Direito antidiscriminatório do trabalho: aspectos Materiais e processuais. Organizadoras: Maíra Guimarães De La Cruz, Manuela Hermes e Silvia Teixeira do Vale. Salvador: Escola Judicial TRT-5, 2021.

3 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de pesquisa, v. 37, p. 595-609, 2007.

4 TEODORO, Maria Cecília Máximo. A distopia da proteção do mercado de trabalho da mulher e a reprodução do desequilíbrio entre os gêneros. Feminismo, trabalho e literatura: reflexões sobre o papel da mulher na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Editora Fi, p. 103-143, 2020.

5 SILVA, Adriana Manta. Eu cuido. Tu cuidas. E eles? - Breves Reflexões Sobre Gênero, Parentalidade e Trabalho. In Direito antidiscriminatório do trabalho: Volume II. Organizadores: Edilton Meireles...[et al]. - 1.ed. – Curitiba: Editorial Casa, 2023.  

6 FERRITO, Bárbara. Direito e desigualdades: uma análise da discriminação das mulheres no mercado de trabalho a partir do uso dos tempos. São Paulo: LTr, 2021.

7 IBGE. Estatísticas de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil. 2ª Edição. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, 2021. Disponível aqui. Acessado em 05 out 2022.

8 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de pesquisa, v. 37, p. 595-609, 2007.

9 ZANELLO, Valeska et al. Maternidade e cuidado na pandemia entre brasileiras de classe média e média alta. Revista Estudos Feministas, v. 30, 2022.

10 Convenção 156 da OIT (1981) - Sobre a Igualdade de Oportunidades e de Tratamento para Homens e Mulheres Trabalhadores: Trabalhadores com Encargos de Família. Disponível aqui. Acessado em 07 Ago 2023.

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Colunista

Ricardo Calcini é advogado, Parecerista e Consultor Trabalhista. Sócio Fundador de Calcini Advogados. Atuação Especializada e Estratégica (TRTs, TST e STF). Professor M. Sc. Direito do Trabalho (PUC/SP). Docente vinculado ao programa de pós-graduação de Direito do Trabalho do INSPER/SP. Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Colunista nos portais JOTA, Migalhas e ConJur. Autor de obras e de artigos jurídicos em revistas especializadas. Membro e Pesquisador: GETRAB-USP, GEDTRAB-FDRP/USP e CIELO Laboral. Membro do Comitê Executivo da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Professor Visitante: USP/RP, PUC/RS, PUC/PR, FDV/ES, IBMEC/RJ, FADI/SP e ESA/OAB.