Migalha Trabalhista

Quais os pontos de atenção da nova lei do piso salarial da enfermagem?

O piso salarial da enfermagem foi sancionado no último dia 4 de agosto por meio da lei 14.434/22.

19/8/2022

O piso salarial da enfermagem foi sancionado no último dia 4 de agosto por meio da lei 14.434/22. A nova legislação prevê o salário de R$4.750,00 por mês para os enfermeiros; 70% desse valor (R$3.325,00) para técnicos de enfermagem; e 50% (R$ 2.375,00) para os auxiliares e parteiras. 

Ressalta-se que, tão logo sancionada, a CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE, HOSPITAIS E ESTABELECIMENTOS E SERVIÇOS – CNSAÚDE, ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 7.222, perante o Supremo Tribunal Federal (STF), para questionar vários pontos da Lei, de ordem formal (processo legislativo) e ordem material, inclusive com pedido liminar para a suspensão de sua aplicação e produção de efeitos. 

Lado outro, os Conselhos Regionais das respectivas categorias profissionais já se organizaram para mobilizarem as classes a fim de denunciar quaisquer descumprimentos quanto à observância dos novos pisos salariais. 

Dito isso, ante as grandes polêmicas jurídica e política que o debate trouxe em torno dos pisos salariais, certo é que os empregadores da iniciativa privada questionam se já devem adequar os salários das categorias profissionais aos novos pisos, ou, se devem esperar a análise do STF na ADI 7222.

 Inicialmente, cumpre destacar que, desde o dia 5 de agosto de 2022, já vigoram os respectivos pisos salariais, cujos pagamentos deverão ocorrer até o 5º dia útil do mês de setembro de 2022, nos termos do §1º do art. 459 da CLT, para os empregadores da iniciativa privada, incluindo-se os hospitais filantrópicos. 

No entanto, como os empregados são mensalistas, para o pagamento do salário de agosto/2022 deve ser calculada a proporcionalidade entre o salário anterior do dia 1º até o dia 4 e, após, a proporcionalidade do piso do dia 5 até o dia 31.

Nesse prumo, quanto aos valores dos pisos salariais ora estabelecidos pela Lei, não poderão existirem quaisquer alterações. Porém, quanto à validade e à aplicação imediata na nova legislação, a CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE, HOSPITAIS E ESTABELECIMENTOS E SERVIÇOS – CNSAÚDE ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 7.222, perante a Suprema Corte, para questionar vários pontos da Lei, inclusive com pedido liminar para a suspensão de sua aplicação e produção de efeitos, conforme já exposto acima.

Assim, o empregador deverá avaliar os “prós” e “contras” quanto à inaplicabilidade imediata da lei. Isso porque, em caso de NÃO aplicação imediata, as principais consequências são representativas do pagamento retroativo, da fiscalização e autuação pelo Ministério do Trabalho, além de eventuais ações coletivas movidas pelos sindicatos das categorias.

Contudo, em caso de aplicação imediata da lei, se houver qualquer futura suspensão da produção dos seus efeitos, as consequentes retiradas dos pisos das folhas de pagamentos, por exemplo, poderão gerar desgastes com os colaboradores que criaram expectativas de recebimentos dos novos pisos salariais, o que é perfeitamente justificável por ocasião de eventual decisão judicial do E. STF.

Em suma, a aplicação imediata da Lei, ou não, deve ser uma decisão da empresa. 

Importante pontuar, ainda, que a Lei não faz distinção entre enfermeiros assistenciais e/ou enfermeiros administrativos, de modo que, se fizer parte da categoria dos enfermeiros, fará jus ao piso. Frise-se que, em realidade, o que deve ser verificada é a atribuição, e não o nome do cargo propriamente dito.

A título exemplificativo, pode-se citar o caso dos enfermeiros auditores, afinal, a lei 7.498/86 que dispõe sobre a regulamentação do exercício da enfermagem dispõe, em seu art. 11, inciso I, alínea “h”, que são atividades privativas de enfermeiro “consultoria, auditoria e emissão de parecer sobre matéria de enfermagem”. 

Outro ponto de grande polêmica na Lei em análise é saber se os pisos estão vinculados à carga horária, uma vez que restou assim expresso: “O piso salarial previsto na lei 7.498, de 25 de junho de 1986, entrará em vigor imediatamente, assegurada a manutenção das remunerações e dos salários vigentes superiores a ele na data de entrada em vigor desta Lei, independentemente da jornada de trabalho para a qual o profissional ou trabalhador foi admitido ou contratado. 

Entrementes, a melhor interpretação que se extrai é a de que os valores integrais dos pisos se aplicam àqueles profissionais que laboram na jornada máxima prevista na Constituição Federal de 1988, qual seja, 8 horas diárias e 44 horas semanais, uma vez que as categorias não possuem jornadas estipuladas por lei.

O Tribunal Superior do Trabalho (TST), aliás, tem jurisprudência firme neste sentido, conforme se infere da Orientação Jurisprudencial (OJ) 358 da SBDI-1: 

358.  SALÁRIO-MÍNIMO E PISO SALARIAL PROPORCIONAL À JORNADA REDUZIDA. EMPREGADO. SERVIDOR PÚBLICO (redação alterada na sessão do Tribunal Pleno realizada em 16.02.2016) - Res. 202/2016, DEJT divulgado em 19, 22 e 23.02.2016

I - Havendo contratação para cumprimento de jornada reduzida, inferior à previsão constitucional de oito horas diárias ou quarenta e quatro semanais, é lícito o pagamento do piso salarial ou do salário-mínimo proporcional ao tempo trabalhado.

II – Na Administração Pública direta, autárquica e fundacional não é válida remuneração de empregado público inferior ao salário-mínimo, ainda que cumpra jornada de trabalho reduzida. Precedentes do Supremo Tribunal Federal.

Assim, o divisor adotado para as jornadas de 44 horas semanais é o 220.

Dessa forma, para se chegar ao valor proporcional do piso comparada à jornada de trabalho, deve-se pegar o valor do piso (por exemplo, dos enfermeiros - R$4.750,00), dividir por 220 e multiplicar pela carga horária mensal.

Outra dúvida muito comum é se o empregador poderá aumentar a jornada do empregado para 44 horas semanais e, ainda, assim, pagar o respectivo piso. 

Quanto a este ponto, oportuno esclarecer que o art. 468 da CLT dispõe que nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento e, ainda assim, desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia. 

Dessa forma, o aumento da carga horária, ainda que seja com o respectivo aumento salarial, depende de anuência do empregado. Por isso, caso o empregado concorde com o aumento da jornada, sugere-se que seja elaborado o respectivo aditivo e seja ele homologado perante o sindicato da categoria profissional. 

Ademais, não há estipulação de aumento salarial proporcional ao piso. Na lei, o que foi vedada é a redução salarial para adequar ao piso. Logo, caso a empresa não queira alterar o salário dos empregados que já recebem salário superior ao piso, não há naturalmente qualquer ilegalidade a este respeito. 

Em contrapartida, existirão corriqueiras situações nas quais os empregados recebem hoje valores menores do que o piso salarial, porém, maior do que o salário de um subordinado. E aí surge o questionamento do que deverá ser feito neste caso: afinal, o coordenador pode receber o mesmo salário de um subordinado? 

Nesses casos, orienta-se que caso o coordenador esteja enquadrado no exercício do cargo de confiança (não registra ponto, bem como não recebe horas extras, tendo plenos poderes para admitir, demitir, aplicar medidas disciplinares e tomar outras decisões em nome do empregador), que então receba um percentual salarial de 40% maior que o do subordinado, nos termos do art. 62, II, da CLT. Dessa forma, pode-se criar uma gratificação de função, ou até mesmo um aumento salarial. 

No entanto, caso não seja reputado no exercício do cargo de confiança, o aumento salarial do coordenador poderá ser de acordo e proporcional à tabela salarial/plano de carreira do empregador. 

De mais a mais, caso a empresa alegue que não tenha “caixa” para pagamento dos novos pisos salariais já no mês de setembro de 2022, sugere-se que procure os sindicatos das categorias profissionais, de modo a pactuar um acordo coletivo e estabelecer a melhor forma de pagamento e implementação dos pisos. Aliás, é importante destacar que não existe norma legal que determine a quantidade mínima de enfermeiros por cada empregador da área da saúde.

Em verdade, o que existem são apenas Resoluções do COFEN - Conselho Federal de Enfermagem quanto ao dimensionamento da enfermagem, tais como a RESOLUÇÃO COFEN 543/20171, que estabelece alguns parâmetros. Veja-se: 

Art. 3º O referencial mínimo para o quadro de profissionais de enfermagem, para as 24 horas de cada unidade de internação (UI), considera o SCP, as horas de assistência de enfermagem, a distribuição percentual do total de profissionais de enfermagem e a proporção profissional/paciente. Para efeito de cálculo, devem ser consideradas:

I - como horas de enfermagem, por paciente, nas 24 horas:

1) 4 horas de enfermagem, por paciente, no cuidado mínimo;

2) 6 horas de enfermagem, por paciente, no cuidado intermediário;

3) 10 horas de enfermagem, por paciente, no cuidado de alta dependência (2);

4) 10 horas de enfermagem, por paciente, no cuidado semi-intensivo;

5) 18 horas de enfermagem, por paciente, no cuidado intensivo.

A propósito, no período da pandemia da Covid -19, o COFEN editou o Parecer Normativo Nº 002/20202. 

No entanto, tais parâmetros servem apenas como referências para orientar os gestores, gerentes, responsáveis técnicos e os próprios enfermeiros dos serviços de saúde no planejamento do quantitativo de profissionais necessários para execução das ações de enfermagem. 

Dessarte, a imposição da contratação de pessoal fundada em suposto cálculo do montante ideal de profissionais, bem como a impossibilidade de demissão, extrapolam as atribuições conferidas por lei ao COFEN, em evidente excesso no exercício do poder regulamentar. 

Neste sentido, inclusive, é o entendimento jurisprudencial: 

AGRAVO DE INSTRUMENTO. HOSPITAIS E ESTABELECIMENTOS DE SAÚDE. ENFERMAGEM. CÁLCULO DE DIMENSIONAMENTO DE PESSOAL. PARÂMETROS. MERA ORIENTAÇÃO. RESOLUÇÃO COFEN Nº 543/2017. EXCESSO NO EXERCÍCIO DO PODER REGULAMENTAR. A Resolução COFEN nº 543/2017 estabeleceu parâmetros mínimos para dimensionar o quantitativo de profissionais das diferentes categorias de enfermagem para os serviços/locais em que são realizadas atividades de enfermagem, contudo tais parâmetros servem apenas como referências para orientar os gestores e gerentes e enfermeiros dos serviços de saúde no planejamento do quantitativo de profissionais necessários para execução das ações de enfermagem. Não há, na Lei nº 7.498/1986, que dispõe sobre a regulamentação do exercício da Enfermagem e dá outras providências, a fixação de um número mínimo de profissionais enfermeiros para cada estabelecimento. A imposição de contratação de pessoal fundado em suposto cálculo do montante ideal de profissionais transborda as atribuições conferidas por lei ao COFEN, em evidente excesso no exercício do poder regulamentar. Garantido o mínimo essencial para a prestação do serviço de saúde nos termos da legislação (presença do profissional de enfermagem por tempo integral), não cabe ao Poder Judiciário substituir-se ao gestor do estabelecimento de saúde impondo a obrigação de contratar mais profissionais, tão somente com fundamento em critérios estabelecidos pelo Conselho Federal de Enfermagem. (TRF-4 - AG: 50384865320194040000 5038486-53.2019.4.04.0000, Relator: Relatora, Data de Julgamento: 18/02/2020, TERCEIRA TURMA) 

Por todo exposto, fica a reflexão no sentido de que, conquanto seja inegável que os profissionais da saúde mereçam uma remuneração mais digna, é importante destacar que não se pode mudar uma realidade de mercado apenas com um “canetaço” (aprovação de uma Lei), sobretudo sem uma análise prévia de impacto regulatório, como estabeleceu o art. 5º da lei 13.874/20193, bem como sem indicar a fontes orçamentarias para custeio dessa nova despesa orçamentária, cujos reflexos impactarão por certo instituições privadas e também públicas.

__________

1 Disponível aqui.

Disponível aqui.

3 Art. 5º As propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, incluídas as autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico.  

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Colunista

Ricardo Calcini é professor, advogado, parecerista e consultor trabalhista. Estratégica, atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs, TST e STF). Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/SP. Pós-Graduado em Direito Processual Civil (EPM TJ/SP) e em Direito Social (Mackenzie). Professor Convidado de Cursos Jurídicos e de Pós-Graduação (FADI, ESA, IEPREV, Católica de SC, PUC/PR, PUC/RS, Ibmec/RJ, FDV e USP/RP). Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Professor indicado pela Câmara dos Deputados para presidir o grupo de estudos técnicos para a elaboração do PL 5.581/2020 acerca do Teletrabalho. Coordenador Acadêmico do projeto "Migalha Trabalhista" (Migalhas). Palestrante e Instrutor de eventos corporativos pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe. Autor do livro "Prática Trabalhista nos Tribunais: TRT's e TST". Coautor dos livros "Execução Trabalhista na Prática" (2ª Edição) e "Manual de Direito Processual Trabalhista". Organizador das obras coletivas "CLT Comentada: Artigo por Artigo" – Mizuno (2ª Edição), "Estratégias da Advocacia no TST", "ESG – A Referência da Responsabilidade Social Empresarial", "Prática de Processo de Trabalho: Técnica Visual Law", "Reflexões Jurídicas Contemporâneas: Estudos em homenagem ao Ministro Douglas Alencar Rodrigues", "Relações Trabalhista e Sindicais – Teoria e Prática" (2ª Edição), "LGPD e Compliance Trabalhista" e "Reforma Trabalhista na Prática: Anotada e Comentada" (2ª Edição). Coordenador do livro digital "Nova Reforma Trabalhista" (Editora ESA OAB/SP, 2020). Coordenador dos livros "Perguntas e Respostas sobre a Lei da Reforma Trabalhista" (Editora LTr) e "Reforma Trabalhista: Primeiras Impressões" (Editora Eduepb). Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (GETRAB-USP), do GEDTRAB-FDRP/USP e da CIELO LABORAL. Contatos: Instagram ricardo_calcini | Website www.ricardocalcini.com.br