Migalha Trabalhista

A decisão do STF na RCL 48.643 e o trabalho do médico terceirizado

Larissa Drumond Moreira aborda a decisão do STF na RCL 48.643 e o trabalho do médico terceirizado.

16/6/2022

Há muito vem-se discutindo sobre o fato de que o trabalho humano não se dá exclusivamente sob a forma da relação empregatícia, ou seja, nos moldes regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.

Dessa forma, a livre iniciativa vem se efetivando como um direito dos trabalhadores, tanto que o STF ao julgar procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 324/DF, de relatoria do ministro Roberto Barroso, fixou a seguinte tese:

É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada. 2. Na terceirização, compete à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993. 8. ADPF julgada procedente para assentar a licitude da terceirização de atividade-fim ou meio.

Outrossim, em 30.8.2018, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 958.252-RG - Tema 725 da Repercussão Geral, relator o ministro Luiz Fux, o Supremo Tribunal fixou também a seguinte tese de repercussão geral:

“É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante” (DJe 13.9.2019).

No entanto, mesmo depois do julgamento do STF reconhecendo a licitude da terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, bem como reconhecendo como lícita a terceirização de toda ou qualquer forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, ainda se observa uma insegurança jurídica grande, pois muitos Tribunais Regionais do Trabalho se recusam a enquadrar o tema “pejotização” dentro da Tese 725 firmada pela Supre Corte.

Ocorre que, a Tese fixada no Tema 725 foi expressa ao considerar lícita a terceirização de toda e qualquer forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, motivo pela qual enquadra-se, s.m.j, o tema “pejotização”.

Ressalta-se que este foi exatamente o caso do recente julgado da 1ª Turma do STF na AG.REG. NA RECLAMAÇÃO 47.843 BAHIA, cujo acórdão foi disponibilizado em 07.04.2022, e assim ementado: 

CONSTITUCIONAL, TRABALHISTA E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NA RECLAMAÇÃO. OFENSA AO QUE DECIDIDO POR ESTE TRIBUNAL NO JULGAMENTO DA ADPF 324 E DO TEMA 725 DA REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO PROVIDO.

1. A controvérsia, nestes autos, é comum tanto ao decidido no julgamento da ADPF 324 (Rel. Min. ROBERTO BARROSO), quanto ao objeto de análise do Tema 725 (RE 958.252, Rel. Min. LUIZ FUX), em que esta CORTE fixou tese no sentido de que: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante” .

2. A Primeira Turma já decidiu, em caso análogo, ser lícita a terceirização por “pejotização”, não havendo falar em irregularidade na contratação de pessoa jurídica formada por profissionais liberais para prestar serviços terceirizados na atividade-fim da contratante (Rcl 39.351 AgR; Rel. Min. ROSA WEBER, Red. p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 11/5/2020).

3. Recurso de Agravo ao qual se dá provimento.1

No caso em análise, destaca-se o trecho do voto divergente do ministro Barroso, que analisou o aspecto tributário e vantajoso da prestação de serviços, a licitude da terceirização, bem como o reconhecimento de que nem todos os trabalhadores podem ser considerados hipossuficientes. Veja-se: 

“...Presidente, vou pedir, igualmente, todas as vênias a Vossa Excelência para reiterar o entendimento que tenho adotado, inclusive tendo sido o Relator da ADPF que admitiu a terceirização inclusive de atividade-fim.

Até faria aqui uma distinção sutil, mas de alguma relevância, entre terceirização, propriamente dita, e pejotização, que é o caso, a meu ver – caracteriza-se aqui mais do que como uma terceirização típica –, o que também já validamos em julgados anteriores.

Chamo a atenção para o fato de que esta não é uma ação civil pública propriamente com preocupações trabalhistas de tutela dos direitos dos trabalhadores, porque inclusive nenhum dos médicos foi sequer ouvido.

Tenho dúvida de se, aqui, o Ministério Público do Trabalho está atuando verdadeiramente em favor dos trabalhadores ou com preocupações de natureza tributária ou fiscal, talvez – teria dúvida até da extensão de sua legitimação ativa.

O que ocorre no Brasil, Presidente e eminentes Colegas, é que temos um sistema tributário regressivo, injusto e, de certa forma, incompreensível, que faz com que os sócios de empresa recebam mediante distribuição de lucros e de distribuição de dividendos – isentos, como estabelece a legislação –, enquanto os trabalhadores pagam, se forem bem pagos, 27,5% de imposto de renda.

Esse é o país que criamos com o sistema tributário que temos. Fui advogado trinta anos, a partir de meados dos anos 1990 com sociedade profissional – os sócios são remunerados por distribuição de lucros ou de dividendos e os empregados são pagos por contrato de trabalho. O que acontecia, na prática, trágico e triste como possa parecer, é que eu pagava menos imposto de renda do que minha secretária. Este é o Brasil.

As elites extrativistas brasileiras conceberam um sistema tributário em que o patrão paga menos imposto de renda que um empregado. Esse processo levou a uma progressiva pejotização, ou seja, muitas vezes empregados constituem pessoas jurídicas para escaparem dessa dualidade perversa, regressiva e que não se sustenta do ponto de nenhuma lógica de justiça distributiva.

 Aqui, não acho que estejamos diante de uma questão de proteção de direitos trabalhistas propriamente, inclusive porque não estamos lidando com hipossuficientes que precisam ser substituídos ou representados pelo Ministério Público do Trabalho. Estamos lidando com médicos que, inclusive, e com muita frequência, têm diversos trabalhos e, portanto, não têm uma subordinação direta a um único empregador, a um único hospital ou a uma única empresa de saúde. Constituem empresas para ter um regime tributário melhor – uma decisão tomada por pessoas informadas e esclarecidas, e não hipossuficientes.

Embora, aqui, talvez, pudesse existir, em alguma medida, um interesse tributário da União, não vejo interesse trabalhista dos médicos tutelados pelo Ministério Público do Trabalho, com todas as vênias dos entendimentos contrários.

Tanto a terceirização da atividade-fim, genericamente, quanto a própria chamada pejotização, no caso particular, são toleradas pela legislação brasileira.  Há aqui a essência da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em dois casos já reiteradamente citados.

O meu entendimento também é o de que se deva dar provimento ao agravo para reconhecer-se a procedência da reclamação, na linha da divergência aberta pelo Ministro Alexandre de Moraes que, em minha visão, concretiza, neste caso, a posição do Plenário do Supremo Tribunal Federal.

Repito que, se estivéssemos diante de trabalhadores hipossuficientes, em que a contratação como pessoa jurídica fosse uma forma, por exemplo, de frustrar o recebimento do fundo de garantia por tempo de serviço ou alguma outra verba, aí acho que uma tutela protetiva do Estado poderia justificar-se. Gostaria de lembrar que não são só médicos, hoje em dia – que não são hipossuficientes –, que fazem uma escolha esclarecida por esse modelo de contratação. Professores, artistas, locutores são frequentemente contratados assim, e não são hipossuficientes. São opções permitidas pela legislação (...)” - destaquei

Assim, a 1ª Turma do STF, por maioria, deu provimento ao agravo para julgar procedente a reclamação e determinar que o Tribunal de Origem observe o que foi decidido no Tema 725 da Repercussão Geral e na ADPF 324.

Dessa forma, coaduna-se com o exposto pelo ministro Barroso, no sentido de que os médicos, bem como outros profissionais liberais, muitas vezes não podem ser tidos como hipossuficientes.

Neste ponto, cumpre destacar que a Lei 13.467/2017, denominada Reforma Trabalhista, regulou a figura do trabalhador hipersuficiente, que é aquele que recebe salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo do Regime de Previdência Social e tenha diploma de nível superior. Vejamos:

 Art. 444 - As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.

Parágrafo único.  A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. 

Ademais, no processo acima citado, os próprios médicos haviam manifestado o desinteresse no reconhecimento do vínculo empregatício, ao passo que o acórdão proferido pelo Tribunal Regional do Trabalho consignou que tais documentos não produziam qualquer efeito jurídico.

No caso do específico do profissional médico, ressalta-se que o próprio sindicato da categoria desses profissionais não é contrário ao trabalho do médico terceirizado, desde que não estejam presentes os elementos da relação empregatícia.

À título exemplificativo, citamos o precursor Acordo Coletivo de Trabalho pactuado entre a Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte e o Sindicato dos Médicos de Minas Gerais, que compatibilizando os princípios da livre iniciativa e do valor social do trabalho, estipularam normas no sentido de organizar o trabalho médico terceirizado e o trabalho médico celetista dentro da instituição2.

Por todo o exposto, tem-se que a recente decisão do STF, no sentido de reconhecer a validade do trabalho médico prestados por pessoa jurídica, traz ares de esperança, na busca da preservação da segurança jurídica, da liberdade de iniciativa e da capacidade de autodeterminação de diversos trabalhadores.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

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Colunista

Ricardo Calcini é advogado, Parecerista e Consultor Trabalhista. Sócio Fundador de Calcini Advogados. Atuação Especializada e Estratégica (TRTs, TST e STF). Professor M. Sc. Direito do Trabalho (PUC/SP). Docente vinculado ao programa de pós-graduação de Direito do Trabalho do INSPER/SP. Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Colunista nos portais JOTA, Migalhas e ConJur. Autor de obras e de artigos jurídicos em revistas especializadas. Membro e Pesquisador: GETRAB-USP, GEDTRAB-FDRP/USP e CIELO Laboral. Membro do Comitê Executivo da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Professor Visitante: USP/RP, PUC/RS, PUC/PR, FDV/ES, IBMEC/RJ, FADI/SP e ESA/OAB.