O sistema nacional de startups e fintechs e a dinâmica atual da economia, em especial no setor tecnológico, trazem a reboque uma modalidade de operação societária relativamente nova no mundo e ainda incipiente no Brasil: aquisição de empresas com foco no capital humano nelas existentes.
Tal operação societária é denominada de acqui-hire (em tradução livre “aquisição para contratação de pessoas”), consistindo numa transação onde uma empresa é adquirida com foco nos profissionais e talentos nela existentes, e não só por seus produtos, serviços, ativos e/ou posição de mercado. Ou seja, a principal motivação da operação são as pessoas e o que elas por si só podem agregar de valor à companhia-adquirente, sendo certo que esses talentos pessoais devem ser encontrados, conquistados e retidos.
Os autores John F. Coyle e Gregg D. Polsky publicaram, ainda no ano de 2013, no Duke Law Journal1, extenso e analítico artigo científico intitulado ACQUI-HIRING, cuja crítica meramente introdutória nos chamou bastante à atenção: “esse fenômeno não atraiu a atenção da academia e dos doutrinadores jurídicos”2 3.
Com efeito, passados quase dez anos, ainda é possível transpor a mesma provocação dos autores norte-americanos para o universo trabalhista brasileiro, onde o tema foi praticamente ignorado, apesar de sua relevância teórica e prática, por envolver elementos de direito societário, do trabalho, recursos humanos, inovação e tecnologia.
E é justamente no setor de tecnologia que as operações de acqui-hiring ganham cada vez mais espaço no Brasil e no mundo, impulsionadas por gigantes como Facebook, Google, Microsoft dentre outras.
De mais a mais, em razão da tecnologia, o Brasil assiste ao surgimento exponencial de startups, cujos investimentos cresceram quase 200% em 2021. As startups do Sul do Brasil, por exemplo, captaram 351% mais investimentos em 2021 do que no ano anterior; startups do Sudeste levantaram US$ 8,7 bilhões em 2021, o que equivale a 87% do total do país, e as startups do Nordeste tiveram o maior percentual de crescimento, tudo conforme números do InvestSP4.
Não por acaso, em 18 de junho de 2021, foi sancionada a Lei Complementar nº 182, que instituiu o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador no Brasil. Essa Lei, dentre diversos outros temas, tratou das medidas de fomento ao ambiente de negócios e do aumento da oferta de capital para investimento em empreendedorismo inovador, em que pese muito antes do referido marco legal o cenário das startups e do empreendedorismo no Brasil já estivesse bastante aquecido (2,7 bilhões de dólares em 2019 e 3,5 bilhões de dólares em 2020, por exemplo)5.
O setor de inovação e tecnologia, sem dúvida, vive um bom momento, pois numa sociedade conectada, problemática e veloz, a demanda por serviços e produtos cresce numa escala colossal, impondo às empresas líderes soluções criativas e ágeis na área de tecnologia e inovação digital, daí porque as grandes empresas passaram a buscar nas startups a solução para problemas internos, consoante bem percebido por John F. Coyle e Gregg D. Polsky6, ainda no ano de 2013: "O Facebook, o Google e outras empresas tecnológicas líderes no Vale do Silício têm comprado empresas em ritmo acelerado."7.
As startups, nos termos do art. 4º da LC 182/21, são empresas nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se justamente pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou serviços ofertados, notadamente na área de tecnologia.
Vale destacar que essas empresas detectam oportunidades e soluções, indo ao mercado buscar financiamento para implementar o negócio, tendo em seu time profissionais altamente qualificados que, por si só, já seriam cobiçados para trabalhar em qualquer grande empresa.
Ocorre que esses profissionais, por estarem engajados com o sucesso da empresa nascente, na qualidade de sócios, empregados ou prestadores de serviços autônomos com alguma espécie de participação financeira no desenvolvimento do negócio (ações, quotas, bônus, comissões etc.), ficam indisponíveis para preencher, individualmente, as vagas do mercado de trabalho, apesar da demanda, preferindo integrar empresas embrionárias, ao invés de grandes companhias, conforme analisado por John F. Coyle e Gregg D. Polsky8:
"... essa preferência por participar de uma startup de tecnologia ao invés do emprego em uma grande empresa, foi motivada por três motivos interrelacionados. Primeiro, o custo de lançar uma startup caiu vertiginosamente, pois o aumento da computação em nuvem trouxe uma redução drástica no custo da infraestrutura de tecnologia da informação. Em segundo lugar, novas fontes de financiamento, incubadoras de empresas, investidores anjo e "braços" anjo de empresas de capital de risco tornaram-se disponíveis para startups no Vale do Silício. Em terceiro lugar, em parte devido à economia de custos da computação em nuvem e à abundância de financiamento, as startups agora podem oferecer salários e bônus mais competitivos em relação aos oferecidos por grandes empresas de tecnologia.” 9
Pelo fato desses profissionais altamente capacitados estarem engajados com o sucesso das startups e, consequentemente, indisponíveis para preencherem, individualmente, as vagas do mercado de trabalho, grandes companhias passaram a buscar não mais os profissionais isoladamente, mas sim as próprias startups. Ou seja, ao invés de captarem mão de obra singular, as companhias adquirem a empresa como um todo, visando, na verdade, não o negócio em si, mas os profissionais que ali estão e, consequentemente, a solução para o seu negócio.
Neste caso, o foco da operação está no talento das pessoas, sejam sócios, empregados ou prestadores de serviços que compõem a empresa alvo.
O Nubank, por exemplo, quando fez a primeira aquisição de sua história, em 2020, o fez através de uma operação de acqui-hiring:
“Anunciamos hoje o acordo – conhecido no exterior como “acqui-hire” – para contratar a equipe de projetos da consultoria PlataformaTec, formada por times de engenharia de software e especialistas em metodologias ágeis.”10
E por que adquirir uma empresa, com tudo o que isso atrai, ao invés de simplesmente arregimentar mão de obra?
A resposta não é simples.
Dentre alguns fundamentos, objetivamente destacam-se dois:
Primeiro, um fundamento não jurídico, qual seja, a noção de que contratar um time inteiro, de uma só vez, pode ser mais simples do que negociar caso a caso com cada trabalhador. Segundo, pelo fato de que o Código Civil veda, em alguns casos, a arregimentação de mão de obra, nos seguintes termos:
Art. 608. Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos.
Neste rumo, as operações de acqui-hiring visam, também, evitar litígio futuro com a empresa-alvo onde os trabalhadores prestam serviços.
Assim, sob esses fundamentos, ora resumidos, as operações de acqui-hiring se mostram bastante úteis.
E o que isso tem a ver com o Direito do Trabalho?
Operações de fusão11, aquisição ou incorporação12 de empresas, geralmente demandam atuação de múltiplos profissionais do direito, cada um em sua área, o que inclui a área trabalhista.
A atuação do advogado trabalhista nessas operações geralmente se inicia com uma auditoria legal (due dilligence) na empresa que se pretende adquirir, para análise do eventual passivo trabalhista, o que poderá ter impacto no valor da operação, nas garantias da transação, riscos, e, até mesmo, na viabilidade do negócio13.
Além disso, após esse raio-x inicial, uma vez consolidada a operação, podem surgir questionamentos quanto à formação de grupo econômico trabalhista14, sucessão de empregadores15, disparidade nos benefícios concedidos aos empregados da adquirente e adquirida etc.
Mas não é só.
É preciso lembrar, conforme já mencionado, que essas operações ocorrem na medida em que as compradoras buscam não o negócio em si, mas o time da startup que desenvolve o negócio. Ou seja, o foco da operação está no talento das pessoas, sejam sócios, empregados ou prestadores de serviços autônomos que compõem o núcleo profissional da empresa adquirida.
Quanto aos sócios e prestadores de serviços autônomos da adquirida, compete ao direito empresarial e cível, respectivamente, dar as respostas jurídicas necessárias à retenção desses talentos após à operação, bem como dirimir outras controvérsias. Ao direito do trabalho, por outro lado, compete manter os empregados na empresa após a operação. E aqui reside um dos nós a serem desatados.
Lembre-se que esses empregados que possuem alto grau de especialização, preferiram integrar empresas embrionárias ou recentes, ao invés de grandes companhias, podendo haver certa frustração de objetivos neste tipo de operação, o que poderia levar à ruptura dos contratos de trabalho, antes, durante ou após a conclusão do negócio, o que frustraria, inclusive, a razão de ser da operação de acqui-hiring.
Visando evitar a frustração dos interesses da empresa adquirente e dos empregados da adquirida, é indispensável, antes da conclusão do negócio, a utilização de instrumentos jurídicos que possam minorar as chances de perda dessa cobiçada mão de obra, abrindo-se espaço para a implementação, por exemplo, do denominado retention bonus, ou bônus de retenção.
O bônus de retenção, assim como o bônus de admissão ou contratação, é muito comum em setores de trabalho altamente competitivos, como o setor de tecnologia, servindo para evitar ou diminuir trocas constantes de emprego e perda de profissionais, principalmente no caso de empregados altamente especializados, com conhecimentos valiosos para o mercado.
O bônus de retenção, assim, se traduz em mais um atrativo para que o profissional permaneça na empresa, diminuindo com isso uma eventual rotatividade de mão de obra.
No caso das operações de acqui-hiring, o bônus de retenção é indispensável, antes mesmo da conclusão do negócio, sob pena de frustração da operação pelo risco de perda do seu principal ativo: pessoas talentosas que complementarão as atividades da empresa adquirente.
O bônus de retenção, parcela que não se encontra expressamente tipificada na legislação trabalhista brasileira, pode ser conceituado como “... um valor oferecido pelo empregador para recompensar o empregado que se compromete a permanecer no emprego por determinado período, portanto, trata-se de um pagamento condicionado.”16.
Diverge a doutrina e a jurisprudência (exclusivamente no âmbito dos Tribunais Regionais) quanto à natureza jurídica da parcela paga à título de bônus de retenção, se salarial ou indenizatória, valendo ressaltar que essa distinção não é meramente acadêmica, pois, a depender da natureza jurídica, os efeitos pecuniários serão distintos, com reflexos trabalhistas e tributários.
Salário17 é a contraprestação devida ao empregado pela prestação de serviços, paga uma única vez ou periodicamente pelo empregador, em pecúnia ou utilidades com natureza salarial (vide art. 458 da CLT)18, em decorrência da existência do contrato de trabalho. O salário não se confunde com a remuneração19, que é soma do salário com outras parcelas, que podem ser pagas pelo empregador ou não, tais como gorjetas pagas pelos clientes. Portanto, remuneração é gênero e o salário é espécie.
A natureza indenizatória, por outra lado, visa compensar o empregado de alguma perda ou lesão, seja material ou mesmo moral (imaterial).
No caso do bônus de retenção, o pagamento tem nítida natureza contraprestativa e, portanto, salarial, consoante, inclusive, posição majoritária do Tribunal Superior do Trabalho - TST20.
Ante sua natureza salarial, a parcela paga poderá gerar reflexos, por exemplo, nos recolhimentos do FGTS, férias, gratificação natalina, observado, em cada caso, a aplicação analógica da Súmula 253 do TST21, sempre a depender da periodicidade do pagamento do bônus (uma única vez, mensal, trimestral etc.).
O bônus também poderá sofrer tributação (IR e INSS)22.
Enfim, o bônus de retenção é um instrumento valioso nas operações de acqui-hiring.
Evidentemente, existem outros instrumentos trabalhistas não menos importantes nessas operações, tais como planos de stock options, benefícios diversos, adoção de modelos de trabalho mais flexíveis, como, por exemplo, o teletrabalho, inclusive internacional, recentemente regulado no Brasil:
Art. 75 – B, § 8º da CLT: Ao contrato de trabalho do empregado admitido no Brasil que optar pela realização de teletrabalho fora do território nacional, aplica-se a legislação brasileira, excetuadas as disposições constantes na çei 7.064, de 6 de dezembro 1982, salvo disposição em contrário estipulada entre as partes. (Incluído pela Medida Provisória 1.108, de 2022)
É inegável, portanto, que numa operação societária em que o alvo primordial e final sejam pessoas com alto grau de capacitação, haja a incidência de instrumentos trabalhistas para o aperfeiçoamento do fim pretendido e, portanto, o sucesso da operação.
Em suma, é possível imaginar que as operações de acqui-hiring ganharão cada vez mais espaço no Brasil, principalmente com o marco legal das startups, de 2021, e o arrefecimento da pandemia, o que demandará, sem dúvida, que o advogado trabalhista esteja cada vez mais familiarizado com esse tipo de operação para que, dentro de sua área, possa antever e solucionar questionamentos jurídicos que surgirão.
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1 Duke Law Journal, volume 63, novembro de 2013, nº 2, disponível em https://dlj.law.duke.edu/
2 “the acqui-hire has attracted no attention in the academic or professional legal literature.”
3 Duke Law Journal, volume 63, novembro de 2013, nº 2, p. 1, disponível em https://dlj.law.duke.edu/
4 Disponível aqui. Acessado em 1 de abril de 2022.
5 Disponível aqui. acessado em 29 de março de 2022.
6 Duke Law Journal, volume 63, novembro de 2013, nº 2, p. 3, disponível em https://dlj.law.duke.edu/
7 “Facebook, Google, and other leading technology companies in Silicon Valley have been buying start-up companies at a brisk pace.”
8 Duke Law Journal, volume 63, novembro de 2013, nº 2, p. 13, disponível aqui;
9 “this preference for participating in a technology startup over employment at a large technology company has been bolstered by three interrelated developments. First, the cost of launching a startup has fallen precipitously, as the rise of cloud computing has brought about a dramatic reduction in the cost of information technology infrastructure. Second, new sources of seed funding from business incubators, angel investors, and angel “arms” of venture-capital firms have become available to startups in Silicon Valley. Third, in part because of the cost savings of cloud computing and the abundance of seed funding, startups are now able to offer salaries and bonuses that are more competitive with those offered by larger technology companies.”
10 Disponível aqui;
11 Art. 1.119 do Código Civil: A fusão determina a extinção das sociedades que se unem, para formar sociedade nova, que a elas sucederá nos direitos e obrigações.
12 Art. 1.116 do Código Civil: Na incorporação, uma ou várias sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações, devendo todas aprová-la, na forma estabelecida para os respectivos tipos.
13 Há diversos vídeos gratuitos sobre fusões e aquisições no canal CM&A – Center for M&A Studies (USP/PUC Rio), no Youtube.
14 Art. 2º, parágrafo 2º da CLT.
15 Art. 10 e 448 da CLT.
16 Hirata, Carolina, Bonus de Retenção, disponível em blog.grancursosonline.com.br, acessado em 31 de março de 2022.
17 art. 457 - Compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber.
18 Art. 458 - Além do pagamento em dinheiro, compreende-se no salário, para todos os efeitos legais, a alimentação, habitação, vestuário ou outras prestações "in natura" que a empresa, por força do contrato ou do costume, fornecer habitualmente ao empregado. Em caso algum será permitido o pagamento com bebidas alcoólicas ou drogas nocivas.
19 art. 457 - Compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber.
20 RECURSO DE REVISTA. GRATIFICAÇÃO DE RETENÇÃO. NATUREZA JURÍDICA. A matéria diz respeito à natureza jurídica da “gratificação de retenção” paga em duas parcelas ao reclamante, com o objetivo de manter o contrato de trabalho por 24 meses, de “01.01.2011 a 31.12.2012”. Diversamente do que entendeu o eg. Colegiado a quo, não há como atribuir natureza indenizatória à parcela, uma vez que seu pagamento não visa ressarcir nenhuma perda do empregado, mas sim manter sua permanência na empresa em face de seu valor profissional. Ainda que seu pagamento não seja habitual, podendo ser feito de forma única ou parcelado, sua natureza é contraprestativa, se assemelhando às luvas pagas ao atleta profissional, prevista no art. 12 da Lei 6.354/76 (revogada pela Lei 12.395/2001) e no art. 31, § 1º, da Lei 9.615/98. Não obstante o reconhecimento da natureza salarial da parcela, seus reflexos devem ser limitados, uma vez que paga somente em duas parcelas na forma contratualmente prevista. Precedentes da Corte. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá parcial provimento. (RR-10926-64.2015.5.15.0004, Relatora Desembargadora Convocada: Cilene Ferreira Amaro Santos, Data de Julgamento: 21/11/2018, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 23/11/2018) (grifamos).
21 GRATIFICAÇÃO SEMESTRAL. REPERCUSSÕES (nova redação) - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003 A gratificação semestral não repercute no cálculo das horas extras, das férias e do aviso prévio, ainda que indenizados. Repercute, contudo, pelo seu duodécimo na indenização por antiguidade e na gratificação natalina.
22 “CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS PREVIDENCIÁRIAS. Período de apuração: 01/01/2010 a 31/12/2010. CONTRIBUIÇÕES DEVIDAS À SEGURIDADE SOCIAL. BÔNUS DE RETENÇÃO. PROCEDÊNCIA DO LANÇAMENTO. O pagamento de bônus de retenção ou gratificação de permanência vinculado e abatido posteriormente com o pagamento de sua remuneração representa um ganho fornecido como resultante de uma contraprestação e se encontra dentro do conceito do salário de contribuição.” Julgado do CARF citado por Hirata, Carolina, Bonus de Retenção, disponível em blog.grancursosonline.com.br, acessado em 31 de março de 2022.