O presente texto se presta a desenvolver a temática acerca do entendimento jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho em relação ao enquadramento sindical do trabalhador rural, especialmente daquele que presta serviços para empresas que exploram mais de um ramo de atividade, a exemplo da agroindústria.
Como ponto de partida para tal análise cabe considerar que a Constituição Federal de 1988, junto ao seu artigo 8º, assegurou à classe dos trabalhadores o direito à livre associação profissional ou sindical.
A liberdade sindical se refere ao direito conferido aos trabalhadores e empregadores de se reunirem e de constituírem, livremente, sem interferência ou intervenção do Poder Público, em suas entidades sindicais representativas das respectivas categorias.
A finalidade dos sindicatos é a defesa dos interesses coletivos e individuais da categoria que representa – profissional (dos trabalhadores) ou econômica (dos empregadores).
Verifica-se, pois, que o modelo de organização sindical adotado pelo ordenamento jurídico pátrio é por categorias.
José Antonio Pancotti, em artigo intitulado “aspectos do enquadramento sindical rural”I, trouxe como definição de categoria profissional o agrupamento de pessoas que exercem a mesma profissão, a mesma atividade laboral, em um determinado ramo do processo produtivo, que se reúnem por força de interesses comuns que se pretende tutelar, defender ou perseguir.
O referido autor assinala que a categoria econômica é caracterizada pelo agrupamento de empregadores ou de empresas de um determinado setor de atividade econômica, seja produtivo de bens ou de serviços.
Registra-se que há, ainda, a categoria profissional diferenciada, prevista no artigo 511, §3º, da CLT, conceituada como aquela formada por pessoas submetidas a estatuto profissional próprio ou que realizem trabalho que as distingue dos outros trabalhadores vinculados à mesma empresa ou empregador.
Ao lado de tal forma de organização das entidades sindicais, por categorias, existe a questão do enquadramento sindical que, para fins de análise do tema ora proposta, se refere à definição da filiação, pelo trabalhador, à determinado sindicato.
A CLT, em seu artigo 581, §2º, dispõe que o enquadramento sindical se relaciona à atividade econômica preponderante do empregador.
De acordo com tal disposição legal, para fins de filiação ao sindicato representativo da categoria profissional, é irrelevante a formação do empregado, tampouco a profissão por ele exerce.
Inclusive, este era o entendimento predominante do TST, conforme se verifica pela ementa abaixo:
"EMBARGOS. ENQUADRAMENTO DAS ATIVIDADES EXERCIDAS PELO EMPREGADO. CARACTERIZAÇÃO DO TRABALHO URBANO OU RURAL. RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO APLICÁVEL. EXTINÇÃO DO CONTRATO ANTERIORMENTE À PUBLICAÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL N° 28/2000. 1. A jurisprudência deste Tribunal Superior consagra tese no sentido de que a atividade preponderante da empresa determina o enquadramento do obreiro como trabalhador rural ou urbano. Irrelevante, portanto, para a caracterização do trabalho rural o exame das peculiaridades da atividade desenvolvida pelo empregado. 2. Uma vez incontroverso que a reclamada dedicava-se precipuamente a atividade econômica rural – Fazenda Santa Fé Ltda. -, afigura-se correto o enquadramento do trabalhador como rurícola, consoante dispõem os artigos 2º e 3º da Lei n.º 5.889/73. (...)" (E-RR-652970-73.2000.5.09.5555, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Lelio Bentes Correa, DEJT 29/05/2009 – g.n.).
Registre-se que o trabalho rural é regulado pela lei 5.889, de 8 de junho de 1973, estando regulamentado pelo decreto 73.626, de 12 de fevereiro de 1974. A legislação especial em comento define quem são os sujeitos da relação de trabalho rural: o empregado e o empregador rural.
Segundo o artigo 2º da lei 5.889/73, empregado rural é “toda pessoa física que, em propriedade rural ou prédio rústico, presta serviços de natureza não eventual a empregador rural, sob a dependência deste e mediante salário.”
Destaca-se que a identificação do empregado rural se condiciona ao preenchimento dos seguintes requisitos: a) prestação de serviços para empregador rural (de modo a se concluir que a identificação do empregado rural se relaciona à definição do empregador rural); e b) prestação de serviços em estabelecimento rural.
Empregador rural, por sua vez, é a “pessoa física ou jurídica, proprietário ou não, que explore atividade agro-econômica, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou através de prepostos e com auxílio de empregados” (artigo 3º, lei 5.889/73).
Note-se que a circunstância determinante da definição do empregador rural é a exploração de atividade agro-econômica.
O artigo 2º, §4º, do decreto 73.626/74, afirma que se enquadra em atividade agro-econômica a exploração industrial em estabelecimento agrário, assim considerada a que compreende o primeiro tratamento dos produtos agrários in natura sem transformá-los em sua natureza, tais como: (I) o beneficiamento, a primeira modificação e o preparo dos produtos agropecuários e hortigranjeiros e das matérias-primas de origem animal ou vegetal para posterior venda ou industrialização; (II) o aproveitamento dos subprodutos oriundos das operações de preparo e modificação dos produtos in natura, referidas no item anterior.
Decorre desse dispositivo legal que são consideradas rurais as empresas agroindustriais, ou seja, que explorem os ramos de atividade agrária e industrial, não transformadoras do produto agrário. Por outro lado, as empresas que desenvolvem atividades relacionadas à transformação da matéria-prima, por meio de algum processo industrial, são tidas como preponderantemente industriais.
Saliente-se que a legislação especial ainda prevê duas outras hipóteses de enquadramento como empregador rural, de acordo com o artigo 3º da lei 5.889/73 – com redação dada pela lei 13.171/15 e com o artigo 4º da lei 5.889/73.
Com efeito, conjugando o disposto no artigo 581, §2º, da CLT, com o fato de que a legislação especial reguladora das relações de trabalho rural condiciona a identificação do trabalhador rural à definição do empregador rural, o TST passou a entender que “é a natureza jurídica das atividades exercidas pelo empregador que qualifica o obreiro em urbano ou rural, e não as funções efetivamente por ele desempenhadas” II, conforme já afirmado linhas acima.
Ou seja, havendo uma empresa que explorasse atividade industrial de forma predominante, embora também contasse com o desenvolvimento de atividade agrícola, o trabalhador vinculado a tal empresa era enquadrado como urbano, inobstante sua função estivesse estritamente ligada ao campo.
Em meados de 2012, nos termos da Orientação Jurisprudencial 419-SBDI-1, o TST consolidou o entendimento de que seria considerado rurícola o empregado que, independentemente da atividade exercida, prestasse serviços a empregador rural, mesmo que este explorasse atividade agroindustrial.III
Tal entendimento, à época de sua sedimentação, tinha como objetivo tratar da caracterização do trabalhador rural para efeito da prescrição. Todavia, o verbete trazia a expressão “enquadramento” gerando determinada confusão, implicando no surgimento de conflitos relativamente à representatividade dos trabalhadores de empresas agroindustriais.
A OJ 419 da SBDI-1 do TST acabou por resultar na alteração do enquadramento sindical de vários trabalhadores da agroindústria, conforme se verifica pela ementa da decisão abaixo transcrita:
"AGRAVO REGIMENTAL. EMBARGOS INTERPOSTOS NA VIGÊNCIA DA LEI 11.496/2007. TRABALHADOR RURAL. ENQUADRAMENTO E PRESCRIÇÃO. DECISÃO DA TURMA COM BASE NAS ORIENTAÇÕES JURISPRUDENCIAIS 417 E 419/TST. DESPACHO QUE NÃO ADMITE O RECURSO DE EMBARGOS. Conforme se depreende do despacho agravado e do acórdão turmário, a controvérsia referente ao enquadramento e à prescrição do trabalhador rural foi dirimida em harmonia com o entendimento das Orientações Jurisprudenciais 419 e 417 da SBDI-1, respectivamente, porquanto indiscutível que o trabalhador exercia a atividade de mecânico para empresa agroindustrial, "cuja atividade preponderante consiste na produção de açúcar e álcool" (fl. 1471) e que a extinção do contrato de trabalho ocorreu em 1º/3/2004, com ajuizamento da ação em 6/5/2005, ou seja, contrato de trabalho vigente na época da promulgação da Emenda Constitucional 28, de 26/05/2000, e ação proposta dentro do prazo de cinco anos da publicação da aludida Emenda Constitucional. Nesse contexto, de correta aplicação de verbetes desta Corte, incide o óbice da parte final do inciso II do artigo 894 da CLT, que dispõe ser incabível o recurso de embargos "se a decisão recorrida está em consonância com súmula ou orientação jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal", sendo despiciendo cogitar-se de especificidade de aresto. Agravo regimental conhecido e desprovido" (AgR-E-ED-RR-70500-10.2005.5.15.0120, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 30/04/2015).
O que o TST fez, com a publicação da OJ em comento, foi considerar todo e qualquer empregado da agroindústria como rural, porém sem analisar as peculiaridades das funções exercidas pelo trabalhador, tampouco a atividade predominante da empresa.
No entanto, como afirmado acima, o precedente não discutia a questão do enquadramento sindical, tanto assim que, em 27/10/2015, o Pleno do TST decidiu por seu cancelamento.
Após tal ocorrência, para fins de enquadramento sindical do trabalhador que presta serviços ao empregador que explora atividade agroindustrial, a Corte Superior Trabalhista passou a considerar todas as circunstâncias fáticas relacionadas ao caso concreto: a atividade preponderante do empregador e as funções exercidas pelo trabalhador.
Neste sentido, inclusive, vale trasladar ementa de recente decisão da SBDI-I, do TST, in verbis:
"RECURSO DE EMBARGOS EM EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO PUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI 13.467/2017. USINA DE CANA-DE-AÇÚCAR. EMPRESA AGROINDUSTRIAL. ENQUADRAMENTO DO TRABALHADOR COMO URBANO OU RURAL. ANÁLISE DA ATIVIDADE EXERCIDA PELO EMPREGADOR OU PELO EMPREGADO . CANCELAMENTO DA ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL Nº 419 DA SBDI-1 DO TST. Cinge-se a controvérsia a definir o critério de enquadramento do reclamante, que desenvolve suas atividades em empresa agroindustrial, na condição de trabalhador urbano ou rural. A c. Turma, partindo da premissa de que o reclamante laborava em empresa que desenvolvia atividade agroindustrial, aplicou a jurisprudência do TST no sentido de que " o enquadramento sindical é definido com base na atividade preponderante da empresa (art. 570 da CLT), excepcionada a situação dos empregados vinculados às categorias diferenciadas ", considerando, assim, despicienda a análise da questão pelo prisma da atividade do empregado. A Orientação Jurisprudencial 419 da SBDI-1 do TST espelhava a diretriz de que " Considera-se rurícola, a despeito da atividade exercida, empregado que presta serviços a empregador agroindustrial (art. 3º, § 1º, da Lei nº 5.889, de 08.06.1973), visto que, neste caso, é a atividade preponderante da empresa que determina o enquadramento ". Tal verbete, no entanto, foi cancelado pela Res. 200/2015, DEJT divulgado em 29.10.2015 e 03 e 04.11.2015. Com o cancelamento da OJ nº 419 da SBDI-1, esta Corte superior vem firmando entendimento de que relevante a análise das funções exercidas pelo trabalhador, ainda que prestadas à empresa rural, que desenvolve atividade agroindustrial, para definição do enquadramento do contrato de trabalho como rural ou urbano, não invalidado o critério da atividade preponderante do empregador para o referido enquadramento, analisando-se a circunstância caso a caso. Precedentes. Na hipótese, o reclamante exercia as atribuições de ajudante geral e soldador, enquadrando-se como trabalhador urbano. Recurso de embargos conhecido e provido" (E-ED-RR-69800-34.2005.5.15.0120, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Breno Medeiros, DEJT 16/04/2021 – g.n.).
Inegável que as considerações feitas no presente trabalho demonstram que houve uma evolução do entendimento adotado pelo TST sobre o enquadramento sindical do trabalhador rural, em especial daqueles que prestam serviços para empresas que exploram mais de um ramo de atividade.
É fato que uma empresa pode desenvolver mais de uma atividade, a exemplo das empresas agroindustriais, que têm atividades ligadas à área agrícola e industrial. E, ainda, é fato que uma agroindústria pode não explorar atividade relativa à transformação do produto.
Logo, para o fim de se concluir pelo enquadramento sindical do trabalhador de uma agroindústria, parece mais assertivo o entendimento que conjuga a análise do ramo de atividade preponderantemente explorado pela empresa às reais atribuições exercidas pelo trabalhador, haja vista traduzir o respeito e a observância ao princípio da realidadeIV, como também ao modelo de organização sindical por categorias adotado pela Justiça do Trabalho.
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I Disponível aqui.
II RR-35700-32.1996.5.09.0671, 2ª turma, Relator Ministro Renato de Lacerda Paiva, DEJT 08/04/2011.
III OJ 419 da SBDI-I/TST (CANCELADA). Considera-se rurícola empregado que, a despeito da atividade exercida, presta serviços a empregador agroindustrial (art. 3º, § 1º, da lei 5.889, de 08/06/1973), visto que, neste caso, é a atividade preponderante da empresa que determina o enquadramento.
IV NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 19. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 349