Migalha Trabalhista

Terceirização da atividade-fim e o futuro da contratação direta

Terceirização da atividade-fim e o futuro da contratação direta

5/2/2021

Quando a terceirização surgiu a ideia era de que os tomadores pudessem contratar serviços específicos, ou seja, alguém terceirizaria uma atividade que não era de sua expertise. Porém, com o passar do tempo, a contratação por intermediário ganhou novos contornos, e assim acabou por surgir o conceito de terceirização predatória (aquela que se dá com o objetivo direto de redução de encargos e destinação dos lucros).

A terceirização nas relações de trabalho sempre foi um tema que dividiu opiniões e gerou debates calorosos. Se, de um lado, há quem entenda ser interessante privilegiar a eficiência do processo produtivo de acordo com a demanda, flexibilizando assim a espécie de contratação, de outro, defende-se que a terceirização tem o cunho de afastar o empregado da tutela jurídica que lhe busca conferir o Direito do Trabalho.

De acordo com o Professor Sergio Pinto Martins:

[...] a terceirização deriva do latim tertius, que seria o estranho a uma relação entre duas pessoas. Terceiro é o intermediário, o interveniente. No caso, a relação entre duas pessoas poderia ser entendida como a realização entre o terceirizante e o seu cliente, sendo que o terceirizado ficaria fora dessa relação, daí, portanto, ser terceiro.1

Ainda sobre o tema, o autor e ministro do TST Maurício Godinho Delgado descreveu:

[...] Para o Direito do Trabalho terceirização é o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de relação justrabalhista que lhe seria correspondente. Por tal fenômeno insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a este os laços justrabalhista, que se preservam fixados com uma entidade interveniente [...].2

Logo, resta evidente, que o fenômeno da terceirização contraria o clássico modelo bilateral, em que a relação empregatícia se estabelece entre o trabalhador e o tomador.

Em relação ao arcabouço legal, convém destacar que não existe uma lei específica acerca de terceirização, como às vezes se faz crer na prática, o que se tem é uma legislação (lei 6.019/74) que trata de trabalho temporário, e que, na referida norma, foram inclusas algumas disposições sobre a terceirização em si. Mas pode-se firmar a tese de que a lei 6.019/74 não é capaz de regular e trazer segurança jurídica a todas as situações e percalços que podem ocorrer no outsourcing.

Por falta de amparo legal específico, a Súmula 331 do TST funcionou por muito tempo praticamente como fonte isolada de consulta quando o assunto era terceirização. Mais tarde, a lei 13.429/17 (que alterou a lei 6.019/74) foi a primeira a trazer informações excepcionais daquilo que era encontrado na Súmula 331 do TST, e, principalmente, foi a legislação que trouxe a primeira mensagem sobre a possibilidade da terceirização da atividade-fim.

A redação da lei 13.429/17 acabou sendo muito contestada, pois acarretava dúvidas sobre a possibilidade ou não de terceirizar a atividade-fim (para muitos ela não tinha uma redação muito clara). Porém, com a chegada da reforma trabalhista, o legislador acabou por deixar a redação mais explícita e direta. A lei 13.467/17 alterou as redações dos artigos 4º-A e 5º-A da lei 6.019/74, e, a partir deste momento, ficou evidente a possibilidade da terceirização de quaisquer atividades, inclusive a principal, pois pelo que pareceu a intenção do legislador foi justamente espancar qualquer dúvida da redação da lei anterior.

Mesmo com uma redação mais objetiva e cristalina, a lei 13.467/17 ainda merecia alguns questionamentos: seria constitucional a terceirização de quaisquer atividades das empresas? Ou seja, como aplicar o novo regramento previsto na lei 6.019/74 diante do que preconiza a Carta da República?

Para reflexão acerca de alegada violação à Constituição Federal, vale a pena a transcrição dos dizeres de Gabriela Neves Delgado e Helber Santos Amorim (Precarização e Terceirização faces da mesma realidade, página 139):

[...] A Constituição da República não deixa ao legislador infraconstitucional margem de ação para instituição ou autorização da terceirização na atividade fim das empresas, seja em face da alta densidade de conteúdo das regras dos arts. 7º a 11 do Texto Constitucional, que conferem uma proteção constitucional específica ao trabalhador, dotada de integração à empresa e de pretensão de continuidade do vínculo de trabalho, seja em face dos princípios constitucionais que asseguram os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como fundamento da República (Constituição, art. 1º, IV), a função social da propriedade e da empresa como fundamento da ordem econômica (art. 170, III) e o primado do trabalho como base de toda ordem social (art. 193).               

A permissão constitucional à terceirização na atividade-meio das empresas, assim como ocorre no âmbito da Administração Pública, tem por pressuposto viabilizar que o empreendedor dedique seus recursos à realização de sua atividade finalística, seu core business, a fim de racionalizar o aproveitamento do tempo e das energias institucionais com máxima eficiência administrativa.

Nesse espaço da atividade-fim, a Constituição reserva à empresa a função social de promover emprego direto com o trabalhador, com máxima proteção social, tendo em conta a dupla qualidade protetiva desse regime de emprego: uma proteção temporal, que remete à pretensão de máxima continuidade do vínculo de trabalho, e uma proteção espacial, de garantia de integração do trabalhador à vida da empresa [...].

Diante das violações e questionamentos surgidos, o tema acabou sendo levado ao STF que, no dia 30 de agosto de 2018, no julgamento da ADPF 324 e do RE 958.252, decidiu pela licitude da terceirização em todas as etapas do processo produtivo, ou seja, permitiu que a terceirização ocorresse em qualquer tipo de atividade da empresa, chancelando assim o previsto na lei 6.014/74.

Por mais que a Suprema Corte tenha entabulado seu entendimento sobre a possibilidade da terceirização da atividade-fim, é interessante destacar que a jurisprudência não acatou de forma imediata e absoluta tal posicionamento.

Em nível de ilustração e para dimensionar o tamanho da discussão, a ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) organizou uma série de estudos sobre o tema e acabou por editar alguns enunciados contrários ao entendimento previsto na lei 6.019/74. Em um dos muitos enunciados elaborados, vale a pena a citação o de número 80 (COMISSÃO 6) da 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, e ainda na mesma Jornada, porém em outra comissão (COMISSÃO 3), dois enunciados (32 e 33) merecem especial atenção.3 

A realidade é que, mesmo com a presença de controvérsias e contestações, o permissivo legal e jurisprudencial para a contratação de quaisquer atividades acabou por consolidado. E, o alavancar exponencial do processo de terceirização parece um caminho sem volta, ainda mais se enxergado como uma possibilidade para a contratação "mais barata" e de maior lucratividade.

Com isso, toma conta de muitos a sensação de que dificilmente no futuro o empregador vai desejar contratar os empregados diretamente. Em outras palavras, certamente ocorrerá a prevalência de contratações indiretas.

Não se acredita que a contratação indireta "rasgue" direitos ou até mesmo a CLT, mas faz sim que cada vez menos haja preocupação com a figura do empregado, que cada vez menos haja interesse em um trabalho mais direto, mais qualificado e acompanhado de "cuidados" próximos do empregador.

Logo, a questão que fica é: será que o empregado contratado diretamente pelo empregador de hoje será o terceirizado de amanhã? A resposta parece ser objetiva e um tanto óbvia. Ora, se terceirizar vai representar uma contratação mais barata e livre de menos ônus para o empregador, se terceirizar pode representar maior lucratividade, se a terceirização agora pode ocorrer em atividade-fim com aval do legislador e do STF, parece cristalina a ideia de que ao invés de contratar um empregado diretamente a empresa possa optar por contratar uma empresa, para esta fornecer os serviços. Isto fará (em uma previsão realista) com que o número de empregados contratados diretamente pelo empregador diminua e o número de terceirizações cresça. Indubitável que em situações futuras o empregado de hoje vire o terceirizado de amanhã.

A ideia do presente texto não foi demonstrar que o número de empregos em nível geral vai diminuir, pelo menos não por força da possibilidade de terceirizar atividade-fim, mas sim deixar evidenciada a tese de que a contratação direta fatalmente vai reduzir, dando cada vez mais espaço ao trabalho terceirizado, que por razões já expostas no texto é questionável e violador de princípios, preceitos e valores constitucionais.

Referências bibliográficas

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 4ª edição ver. e ampl. – São Paulo: LTr, 2008.

DELGADO. Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 11 ed. São Paulo: LTr, 2012.

LEITE. Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito do Trabalho. 5. ed. Saraiva. 2014.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012

PINTO MARTINS, Sérgio. Direito do Trabalho. 30ª ed. São Paulo: Atlas, 2013.

Disponível aqui, acesso: 31/01/2021. Site do Planalto.

Disponível aqui, acesso: 31/01/2021. Site do Planalto.

Disponível aqui, acesso em 31/01/2021.

Disponível aqui, acesso em 31/01/2021.

Disponível aqui, acesso em 31/01/2021.

*Leandro Antunes de Oliveira é sócio fundador do Antunes & Mota Mendonça Advogados. Doutorando em Direito PPGD/UVA. Mestre em Direito pela Universidade Cândido Mendes. Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordenador técnico e professor da pós-graduação em Direito e Processo do Trabalho do Ibmec/RJ. Professor universitário e de diversos cursos de atualização jurídica e OAB. Professor da pós-graduação Lato Sensu do CEPED/UERJ. Presidente da Comissão de Estudos de Direito Material e Processual do Trabalho da OAB/RJ. Membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB.

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1 MARTINS, Sergio Pinto. Terceirização no direito do trabalho – 15 ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 27.

2 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16 Ed. São Paulo: LTr, 2017, p. 503.

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Colunista

Ricardo Calcini é advogado, Parecerista e Consultor Trabalhista. Sócio Fundador de Calcini Advogados. Atuação Especializada e Estratégica (TRTs, TST e STF). Professor M. Sc. Direito do Trabalho (PUC/SP). Docente vinculado ao programa de pós-graduação de Direito do Trabalho do INSPER/SP. Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Colunista nos portais JOTA, Migalhas e ConJur. Autor de obras e de artigos jurídicos em revistas especializadas. Membro e Pesquisador: GETRAB-USP, GEDTRAB-FDRP/USP e CIELO Laboral. Membro do Comitê Executivo da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Professor Visitante: USP/RP, PUC/RS, PUC/PR, FDV/ES, IBMEC/RJ, FADI/SP e ESA/OAB.