Migalha Trabalhista

Seguro garantia judicial no processo do trabalho

Seguro garantia judicial no processo do trabalho.

2/10/2020

No presente artigo*, vamos abordar os requisitos e limitações do seguro garantia judicial no processo do trabalho. A partir da interpretação lógico-sistemática da legislação em vigor, demonstraremos que não há direito subjetivo do devedor trabalhista no uso indiscriminado do seguro garantia judicial, estando sujeito a uma série de condicionantes impostas não só pela legislação processual, mas também pelo Ato Conjunto 01/2019 do CSJT e TST.

O atual CPC de 2015 trouxe uma novidade nas execuções, permitindo a substituição da penhora em dinheiro por fiança bancária ou seguro garantia, conforme previsão do §2º do artigo 835 do CPC: "para fins de substituição da penhora, equiparam-se a dinheiro a fiança bancária e o seguro garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de trinta por cento".

O seguro garantia judicial é o contrato pelo qual a seguradora presta a garantia de adimplemento da obrigação de pagar do devedor no processo judicial, nos limites da apólice. Esta espécie securitária equipara-se a dinheiro para fins de garantia do juízo da execução, assegurando ao devedor não ter seus bens expropriados sem uma decisão terminativa da fase executória, tratando-se, em tese, de meio menos oneroso, porquanto permite ao devedor manter o valor da execução em capital de giro enquanto discute questões da execução, notadamente eventual impugnação à sentença de liquidação (art. 884, §3º, CLT).

Todavia, em que pese a possível vantagem ao devedor, não se pode olvidar que tal procedimento acarreta-lhe maior custo, na medida em que não lhe retira a obrigação de pagar a dívida, tendo ainda o custo adicional de contratação da fiança ou do seguro garantia.

Conforme advertem Nelson Nery Jr e Rosa Maria de Andrade Nery, "a jurisprudência do STJ tem sido hostil à substituição por fiança, tendo em vista que conduziria a execução em sentido contrário ao da sua finalidade natural de entregar dinheiro ao exequente. Por outro lado, se prestada a garantia por banco, ela equivale a dinheiro. No caso do seguro, o juiz deve avaliar a prova da garantia produzida pelo devedor juntamente com o requerimento [...]"1.

Neste sentido, conforme entendimento do STJ, "a substituição da garantia em dinheiro por outro bem ou carta de fiança somente deve ser admitida em hipóteses excepcionais e desde que não ocasione prejuízo ao exequente, sem que isso enseje afronta ao princípio da menor onerosidade da execução para o devedor". (REsp 1090864 RS - 4ª Turma - Relator Ministro Massami Uyeda - Data de julgamento: 10.05.2011).

É bem de ver que, no âmbito processual civil, a excepcionalidade da substituição da penhora em dinheiro é o vetor de aplicação do §2º do artigo 835 do CPC.

No âmbito da Lei de Execução Fiscal (lei 6.830/80), o art. 9º, inciso II, com a alteração dada pela lei 13.043/2014, prevê a possibilidade de o executado oferecer fiança bancária em valor correspondente ao montante do débito, com os acréscimos legais, a título de garantia do juízo da execução.

Debruçando-se sobre esta norma dos executivos fiscais, a jurisprudência consolidada do STJ2 estabeleceu as seguintes balizas, as quais podem servir de referencial para o ramo jurisdicional trabalhista especializado:

(1) a substituição da penhora de dinheiro por fiança bancária, por iniciativa do devedor, só pode ser feita apenas quando este demonstrar, com provas concretas, a sua necessidade imperiosa;

(2) não existe o princípio da maior conveniência em favor do devedor;

(3) a garantia da execução fiscal por fiança bancária ou seguro garantia não pode ser feita exclusivamente por conveniência do devedor, o que só poderá ser admitido se a parte devedora, concreta e especificamente, demonstrar a necessidade de aplicação do princípio da menor onerosidade.

Portanto, segundo a firme jurisprudência do STJ, a partir de uma análise lógico-sistemática do ordenamento jurídico, sempre em atenção à efetividade da execução e ao princípio do favor creditoris inerente à finalidade da execução patrimonial, o devedor não possui direito potestativo de substituição de dinheiro por fiança bancária ou seguro garantia, devendo sempre serem observadas as circunstâncias do caso concreto devidamente justificadas, sob pena de se conferir proeminência à execução menos onerosa para o executado em franco prejuízo da satisfação integral e rápida do crédito exequendo.

Em suma, não há, em abstrato, preponderância do princípio da menor onerosidade para o devedor sobre o da efetividade da tutela executiva, uma vez que o princípio do meio menos gravoso ao executado deve sempre se compatibilizar com o princípio da primazia do credor, pelo qual a execução se faz no interesse do credor (art. 797 do CPC).

Na seara processual trabalhista, a lei 13.467/2017 permitiu a substituição do depósito recursal por fiança bancária ou seguro garantia (art. 899, §11, CLT), assim como passou a permitir a garantia do juízo em execução por tal modalidade (art. 882 da CLT).

Cabe ressaltar que as duas normas celetistas mencionadas apenas preveem uma possibilidade de se garantir o juízo da execução com seguro garantia sem adentrar em maior detalhamento, cuja redação aproxima-se da Lei dos Executivos Fiscais. Abre-se espaço, assim, para a aplicação das balizas jurisprudenciais fixadas pelo STJ no âmbito da execução trabalhista, mormente diante da regra de subsidiariedade do art. 889 da CLT e da máxima de hermenêutica jurídica de aplicação lógico-sistemática do ordenamento jurídico, e não apenas da incidência isolada de certa norma legal no caso concreto.

Essa alteração legislativa trouxe vários questionamentos no âmbito recursal trabalhista, haja vista que muitos julgados deixaram de conhecer de recursos em razão da juntada de apólices de seguro garantia com prazo determinado ou que não continham especificamente o número do processo (o que autorizava, em tese, a utilização de uma mesma apólice em vários processos), inviabilizando a efetiva garantia do juízo, não cumprindo a finalidade do instituto do depósito recursal.

Diante das divergências, o CSJT e o TST editaram o Ato Conjunto nº 01 de 16/10/2019, regulamentando o seguro garantia e fiança bancária em substituição ao depósito recursal e para garantia da execução.

Apesar do necessário rigor para permitir a substituição da penhora em dinheiro por fiança ou seguro garantia, tal como se exige na execução fiscal, a jurisprudência do TST tem admitido como se fosse um direito potestativo do réu, assim como a regulamentação do instituto no âmbito da Justiça do Trabalho foi mais branda, em franco detrimento e enfraquecimento da jurisdição executiva trabalhista, permitindo a adoção de tais meios de garantia dispensando a comprovação da necessidade imperiosa da substituição como meio menos oneroso.

Com efeito, o TST possui entendimento de que "a carta de fiança bancária e o seguro garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito em execução, acrescido de trinta por cento, equivalem a dinheiro para efeito da gradação dos bens penhoráveis, estabelecida no art. 835 do CPC de 2015" (OJ nº 59 da SDI-2).

O Ato Conjunto nº 01/2019, de natureza infralegal, visa apenas regulamentar as condições formalísticas de aceitação da apólice do seguro garantia, o que não tolhe a atividade jurisdicional do magistrado de cotejar, no caso concreto, os princípios da efetividade da execução e da menor onerosidade para o executado, com vistas a admitir, ou não, o seguro garantia, tendo sempre em vista que não há direito subjetivo abstrato do devedor, nos moldes da jurisprudência consolidada do STJ acima destacada.

Em síntese, em conformidade com o artigo 3º do Ato Conjunto 01/2019, se a parte pretende se utilizar do mecanismo do seguro garantia ou da fiança bancária, deverá contratar seguradora idônea, constando da apólice o valor total corrigido com acréscimo de 30%, com cláusula de manutenção da garantia mesmo que o segurado não tenha efetuado o pagamento de parcelas do prêmio previsto no contrato respectivo. Ademais, devem estar presentes o número do processo a que se refere a garantia, a vigência mínima de três anos, com cláusula de renovação automática, identificação das situações caracterizadoras do sinistro (previstas no art. 10 do Ato Conjunto 01/2019) e endereço atualizado da seguradora.

É importante destacar que a apólice não pode conter cláusulas de desobrigação da seguradora de pagar o prêmio (excludente de responsabilidade), tampouco previsão de rescisão, ainda que de forma bilateral, sob pena de impactar negativamente na solvabilidade da garantia do juízo.

Nos termos do artigo 4º do Ato Conjunto 01/2019, "as apólices apresentadas permanecerão válidas independentemente do pedido de renovação da empresa tomadora, enquanto houver o risco e/ou não for substituída por outra garantia aceita pelo juízo", isto é, enquanto não houver a substituição da fiança ou seguro garantia por dinheiro no processo, a apólice permanecerá vigente como decorrência da renovação automática.

O §1º do artigo 5º do Ato Conjunto 01/2019 estabelece que a idoneidade da seguradora será presumida mediante a apresentação da certidão de regularidade da sociedade seguradora perante a SUSEP. Ocorre que a presunção a que alude o referido dispositivo é relativa (juris tantum), podendo ser elidida por prova em sentido contrário, cabendo ao autor demonstrar em juízo - em contrarrazões (em se tratando de depósito recursal), na contraminuta dos embargos à execução (em caso de garantia do juízo) ou, ainda, no decorrer da execução -  quando o devedor, por simples petição, requerer a substituição do depósito recursal pelo seguro, que a seguradora não tem idoneidade, tratando-se de empresa de “fachada”, o que pode ser apurado de diversas formas:

a) capital social de baixo valor, isto é, manifestamente incompatível com a atividade econômica;

b) integralização do capital social;

c) sede da empresa seguradora ou endereço residencial dos sócios em localidades suspeitas, ou, ainda, em endereço de escritórios de contabilidade ou de consultoria.

A razão de ser da análise da liquidez da seguradora e de sua idoneidade financeira reside justamente na compreensão de que ela assume a posição de fiadora na garantia do débito no processo executivo, estando, sujeita, inclusive, ao avanço em seu patrimônio da tutela executiva.

No mesmo diapasão, em recente julgado, o TST assinalou que "a admissão do seguro garantia judicial não é automática, devendo sua regularidade e idoneidade ser avaliadas pelo juiz, a fim de se evitar a ocorrência de fraude, bem como a existência de cláusulas que possibilitem a frustração do adimplemento do título executivo judicial" (AIRR 101040320155010057 - 3ª Turma - Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado - Data de publicação: 5/6/2020).

Se a fiança bancária ou o seguro garantia não atenderem os requisitos do Ato Conjunto, será tido como inexistente o depósito recursal ou a garantia do juízo, sendo denegado seguimento ao recurso no juízo de origem, ou não conhecido, se estiver na instância ad quem, ou, ainda, em sendo caso de garantia à execução, prosseguirão os atos executivos de penhora visando a garantia do juízo (art. 6º do Ato Conjunto 01/2019).

A apresentação da fiança ou o seguro garantia deve vir acompanhada do extrato de validação da apólice correspondente, que é obtido através do sítio eletrônico da SUSEP3, sem prejuízo de o juízo conferir sua validade, na forma do §2º do artigo 4º do Ato Conjunto 01/2019. Esta certidão deve ser juntada no prazo do recurso ou dos embargos à execução, sob pena de não processamento, nos termos da Súmula 245 TST.

A utilização de uma mesma apólice em mais de um processo, ou a apresentação de apólice falsa ou adulterada, além da deserção do recurso e da não garantia do juízo, caracterizará litigância de má-fé e ato atentatório à dignidade da jurisdição, sem prejuízo da correspondente representação criminal para apuração da possível prática de delito (art. 6º, parágrafo único, do Ato Conjunto 01/2019).

Os artigos 7º e 8º do Ato Conjunto 01/2019 vedavam a substituição do depósito recursal ou da garantia do juízo por meio da utilização do seguro garantia, isto é, após a realização do depósito ou da constrição.

Contudo, o CNJ no julgamento do PCA-0009820-09.2019.2.00.0000, em 27 de março de 2020, declarou a nulidade dos referidos dispositivos, o que culminou na edição de novo Ato Conjunto do TST e CSJT em 29/05/2020, conferindo nova redação aos referidos dispositivos admitindo a substituição.

Deste modo, a rejeição de seguro garantia ou fiança bancária, como depósito recursal ou garantia do juízo, ocorrerá se não observados os requisitos do Ato Conjunto 01/2019, mormente dos artigos 3º a 5º, que contemplam uma vasta gama de peculiaridades, nem sempre observadas no cotidiano forense, sem prejuízo da análise do juízo da efetiva necessidade do réu de substituição.

Ainda, não se pode olvidar que não deve ser admitida a substituição quando já julgado o recurso garantido por depósito recursal ou cumprida a finalidade da garantia do juízo. Logo, encerrada a fase de conhecimento não é possível a substituição do depósito recursal por seguro garantia.

No mesmo diapasão, transitada em julgado a decisão dos embargos à execução, é incabível a substituição da garantia do juízo por fiança ou seguro garantia, porquanto é o momento processual em que deve ocorrer a satisfação do crédito exequendo, coincidindo com o momento em que se deflagra o sinistro, nos termos do artigo 10 do Ato Conjunto 01/2019.

Da mesma forma, havendo delimitação no agravo de petição da parte executada da quantia incontroversa sobre a qual deve prosseguir a execução, nos moldes do § 1º do artigo 897 da CLT, deve-se intimar o executado para efetuar o pagamento desta parte incontrovertida ao exequente, sob pena de caracterizar o sinistro e acionar a seguradora no processo executivo. A execução da quantia incontroversa processar-se-á nos mesmos autos, remetendo-se à instância superior os autos suplementares para julgamento do agravo de petição, ou, ainda, mediante extração de carta de sentença.

Transitada em julgado a decisão sobre os embargos à execução, ou o recurso cujo depósito recursal foi substituído por seguro garantia, o devedor será intimado para efetuar o depósito da quantia no prazo legal (art. 880 da CLT).

Não havendo cumprimento da ordem judicial, o juízo oficiará a seguradora para que proceda ao pagamento em quinze dias, informando que o devedor não o fez, o que caracteriza o sinistro, sob pena de contra ela prosseguir a execução nos próprios autos, sem prejuízo de eventuais sanções administrativas ou penais pelo descumprimento da ordem judicial, nos termos dos artigos 10 e 11 do Ato Conjunto 01/2019.

Por fim, cabe destacar que a seguradora, já incluída na execução na condição de responsável patrimonial no cumprimento da obrigação trabalhista exequenda garantida pela apólice, não poderá veicular questões afetas ao contrato de seguro entre empresa tomadora (devedora) e a seguradora no curso da execução trabalhista, porquanto está-se diante da responsabilidade objetiva, e muito menos ofertar qualquer espécie de defesa em relação ao objeto do processo, por não ser parte legitimada. A lide que se seguir entre segurado e segurador deverá ter sua tramitação no juízo competente, não cabendo à Justiça do Trabalho adentrar no exame do contrato de seguro entre empresa tomadora (devedora) e a seguradora.

*Rafael Guimarães é juiz do Trabalho. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Professor convidado de cursos jurídicos.

**Richard Wilson Jamberg é juiz do Trabalho. Professor de Direito Processual do Trabalho na Unisuz. Especialista em Direitos Sociais e em Direito Processual do Trabalho.

__________

*Excerto da obra conjunta dos autores do artigo, Execução Trabalhista na Prática, Editora Mizuno, com e-book de degustação disponível para download.

1  NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado, 4ª ed. São Paulo: RT, 2019 (E-book), cit. CPC 835, coment. 6.

2 STJ - AREsp 1547429 SP 2019/0213144-6 - 2ª Turma - Relator Ministro Herman Benjamin - Data de publicação: 25/5/2020.

3 Susep. Acesso em 25/9/2020.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

Ricardo Calcini é advogado, Parecerista e Consultor Trabalhista. Sócio Fundador de Calcini Advogados. Atuação Especializada e Estratégica (TRTs, TST e STF). Professor M. Sc. Direito do Trabalho (PUC/SP). Docente vinculado ao programa de pós-graduação de Direito do Trabalho do INSPER/SP. Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Colunista nos portais JOTA, Migalhas e ConJur. Autor de obras e de artigos jurídicos em revistas especializadas. Membro e Pesquisador: GETRAB-USP, GEDTRAB-FDRP/USP e CIELO Laboral. Membro do Comitê Executivo da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Professor Visitante: USP/RP, PUC/RS, PUC/PR, FDV/ES, IBMEC/RJ, FADI/SP e ESA/OAB.