Migalha Trabalhista

Consequências trabalhistas com o fim da MP 927

Consequências trabalhistas com o fim da MP 927.

24/7/2020

Texto de autoria de Janaína Gameiro

A Medida Provisória 927/20, editada no dia 22 de março deste ano pelo Governo Federal, perdeu a sua vigência no último domingo, 19 de julho, ou, em outras palavras, "caducou".

A MP dispôs sobre uma série de medidas trabalhistas propostas pelo Presidente da República para enfrentamento dos efeitos da crise econômica e do estado de calamidade pública decorrentes da pandemia causada pelo coronavírus (Covid-19).

Embora o estado de calamidade pública esteja previsto para subsistir até o dia 31 de dezembro, nos termos do decreto legislativo 6/20, as empresas não poderão mais flexibilizar, doravante, as regras trabalhistas até então inseridas na medida provisória para manutenção dos postos de trabalho.

Com a perda da vigência da MP 927, as empresas terão que voltar a observar os termos da legislação trabalhista vigente, especialmente em relação aos temas nela previstos, dentre os quais se destacam: o teletrabalho, as férias individuais e coletivas, a prestação de serviço em dias considerados como feriados, o banco de horas negativo, as exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho, além dos prazos para recolhimento do FGTS e de vigência das convenções e acordos coletivos de trabalho.

Importante observar que todas as medidas adotas durante a vigência da MP serão reputadas válidas, com a produção dos efeitos nela previstos. Todavia, a partir do dia 20/7, ante a caducidade da MP, voltam a viger as regras anteriormente previstas para os temas acima e os demais atinentes às relações de trabalho e emprego.

Mas a grande dúvida que fica aos trabalhadores e empresário é a seguinte: e agora, como ficam as questões tratadas pela MP tendo em vista o término de sua vigência? Quais as consequências jurídicas daí advindas?

Passaremos a tratar dos principais temas abordados pela MP e as implicações oriundas da perda de vigência da medida, sem, contudo, ter a pretensão de esgotar a discussão que, embora profícua, somente será dirimida quando do seu enfretamento pelo Judiciário Trabalhista.

Partiremos, inicialmente, do teletrabalho. Embora a MP 927 não tenha criado tal modalidade de prestação de serviços, na medida em que a CLT já contemplava as regras para a sua adoção, muitas empresas implementaram o trabalho a distância, fora das dependências do empregador, no qual se inclui o "home office".

Nos termos da MP, para que o empregador pudesse alterar o regime de presencial para o de teletrabalho, bastaria a comunicação ao empregado com uma antecedência de 48 horas, por escrito ou por meio eletrônico, sem a feitura de acordo individual ou coletivo ou aditamento ao contrato de trabalho. Ainda nos termos da MP, os aprendizes e os estagiários poderiam prestar serviços na modalidade em questão.

Agora, para que o empregador possa adotar ou manter a prestação de serviços em "home office", é necessária a anuência do empregado e a elaboração de termo aditivo contemplando a alteração do regime presencial para o teletrabalho.

E, mais, embora a CLT determine a observância do prazo de 15 dias para retorno do empregado do regime de teletrabalho para o presencial, é possível firmar o entendimento no sentido de que, se o empregado que já está prestando o trabalho a distância entender que necessita de tempo inferior, prazo menor poderá ser estipulado.

Destaque-se, por oportuno, que muitas discussões poderão ocorrer em relação às horas extras prestadas à distância e a cargo de quem ficarão as despesas decorrentes da prestação de serviços fora das dependências do empregador.

Em relação às horas extras, a CLT já contemplava previsão a respeito, enfatizando que somente não seriam devidas as horas suplementares no caso de haver a impossibilidade de o empregador fiscalizar e controlar a jornada de trabalho.

No que diz respeito ao pagamento das despesas oriundas da prestação de serviços em teletrabalho, a CLT também já previa que as regras deveriam ser previstas em contrato escrito quanto à responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária à prestação de serviços na referida modalidade.

Em que pesem tais considerações, no tocante às despesas, os tribunais trabalhistas já têm entendido que a responsabilidade é da empresa, detentora dos riscos da atividade econômica.

Apesar de a CLT contemplar regras sobre a responsabilidade das despesas e quanto ao sobrelabor na prestação de serviços na modalidade de teletrabalho, não previu a possibilidade de os aprendizes e os estagiários exercerem as suas atividades de tal maneira, o que também implica dizer que não há vedação expressa nesse sentido.

Dessa maneira, podemos defender que, se o estagiário e o aprendiz contarem com supervisão técnica enquanto trabalharem à distância, poderão continuar a prestar serviços na referida modalidade, devendo a empresa reunir provas de que a referida supervisão, de fato, ocorria.

Num segundo ponto, em relação às férias, tem-se que elas não mais poderão ser concedidas se o trabalhador não tiver completado o período aquisitivo de 12 meses, devendo haver a comunicação acerca da concessão no prazo de, no mínimo de 30 dias, e não mais de 48 horas como permitido pela MP.

Quanto às férias coletivas, também volta a valer o quanto disposto na CLT e, em especial, nas negociações coletivas.

Mas e nos casos em que o aviso de férias foi dado pelo empregador enquanto a MP estava vigente, com início da fruição para o período posterior, a partir do dia 20/7? Entendemos que haveria a necessidade de o gozo das férias ter se iniciado até o dia 19/7, ainda que o encerramento do descanso anual ocorresse após o término de sua vigência, sob pena de as férias serem reputadas nulas e, por conseguinte, tal ato ensejar o seu pagamento em dobro em eventual demanda trabalhista.

Um terceiro aspecto diz respeito à antecipação dos feriados, de modo que tal prática não mais poderá ser adotada pelas empresas.

A questão que se coloca aqui é como a empresa deverá proceder no caso de a autoridade estadual ou municipal antecipar feriado que, por sua vez, já foi antecipado pelo empregador durante a vigência da MP? Nesse caso, valerá a antecipação realizada pela empresa, caso em que o empregado poderá trabalhar normalmente, atendidas às demais determinações relacionadas ao funcionamento dos estabelecimentos em tais dias, sem que seja necessário o pagamento diferenciado.

Outra questão trazida pela MP e que passa a ser tormentosa com o término de sua vigência diz respeito ao banco de horas.

A MP flexibilizou as regras contidas na MP permitindo que, no caso de interrupção das atividades da empresa, a compensação das horas poderia ocorrer no prazo de até 18 meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública, ou seja, a partir de 01 de janeiro de 2021, desde que estabelecido por meio de acordo individual ou coletivo.

A partir de agora, voltam a valer as regras insertas à CLT, sendo de até 6 meses o prazo para compensação, se firmando por acordo individual, ou de 1 ano, se houver negociação coletiva.

Todavia, os créditos e débitos a serem considerados para a compensação após o dia 31 de dezembro são somente aqueles computados até o dia 19/7; as horas negativas ou positivas levadas ao banco a partir de 20/7 deverão ser compensadas no período de 6 meses ou 1 ano, a depender do instrumento (individual ou coletivo) que as contemplar.

No que tange às exigências administrativas em segurança e saúde do trabalho, notadamente quanto a realização de exames médicos admissionais, periódicos e demissionais, tem-se que, a partir de agora, as empresas devem voltar a realizá-los, levando em consideração que, durante a vigência da MP, a contagem dos dias ficou suspensa.

As Comissões Internas de Acidentes (CIPA's) que tiveram os mandatos de seus membros mantidos durante a vigência da MP deverão promover novas eleições, desde que as empresas tenham retomado o funcionamento, uma vez que se exige que a atividade esteja sendo exercida para que haja eleições e posse dos membros respectivos. Caso contrário, considera-se prorrogados os mandatos até a retomada das atividades.

Os treinamentos de segurança previstos nas Normas Regulamentadoras também devem ser retomados a partir do retorno das atividades da empresa.

Outra questão de grande relevo diz respeito à impossibilidade de as empresas prorrogarem, e até mesmo parcelarem, o recolhimento do FGTS ante o término de vigência da MP.

Com o término da vigência da MP, além de não restarem outras alternativas às empresas além daquelas relativas à redução e suspensão da jornada de trabalho previstas na MP nº 936/2020, convertida na Lei nº 14.020/2020, não há a possibilidade de elastecimento do prazo de recolhimento ou de parcelamento do valor devido.

Ainda, as convenções e acordos coletivos que tiveram o prazo de vigência encerrado durante a vigência da MP foram automaticamente prorrogados e as regras previstas nos referidos instrumentos continuam em vigor.

Entretanto, com a caducidade da MP, não mais tem prevalência o acordo individual sobre o coletivo, sendo retomada a regra contida na CLT e introduzida com a Lei nº 13.467/2017, com a valorização do negociado em detrimento do quanto acordado individualmente ou na legislação.

De mais a mais, com a perda de vigência da MP, não poderá haver a reedição da referida medida provisória em 2020, razão pela qual se espera que o Parlamento edite um decreto legislativo para disciplinar as relações jurídicas praticadas enquanto na vigência da MP, tendo o prazo de até 60 dias para fazê-lo.

A ausência de votação da MP nº 927 demonstra o posicionamento antagônico do Congresso Nacional ao do Governo Federal, com consequências gravosas ao trabalhador, que se sujeitará à possibilidade de perder o emprego, e, por conseguinte, a sua renda; e também ao empregador, especialmente as empresas de médio e pequeno porte, que não mais poderão se valer da flexibilização das regras previstas na legislação laboral para continuarem existindo e oferendo postos de trabalho.

A conclusão final a que se chega é que a perda maior não foi política, com a derrota do Presidente da República perante o Congresso Nacional, mas sim de todos trabalhadores brasileiro, cujos botes ficarão à deriva até que a tormenta ocasionada pela pandemia do coronavírus deixe de produzir efeitos.

*Janaína Eichenberger é graduada em Direito pela Universidade Mackenzie São Paulo, pós-graduada em Direito Público pela EPD-Escola Paulista de Direito. Atua como advogada trabalhista nas áreas de contencioso e consultoria. Atuou como professora de redação jurídica em cursos preparatórios para OAB.

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Colunista

Ricardo Calcini é advogado, Parecerista e Consultor Trabalhista. Sócio Fundador de Calcini Advogados. Atuação Especializada e Estratégica (TRTs, TST e STF). Professor M. Sc. Direito do Trabalho (PUC/SP). Docente vinculado ao programa de pós-graduação de Direito do Trabalho do INSPER/SP. Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Colunista nos portais JOTA, Migalhas e ConJur. Autor de obras e de artigos jurídicos em revistas especializadas. Membro e Pesquisador: GETRAB-USP, GEDTRAB-FDRP/USP e CIELO Laboral. Membro do Comitê Executivo da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Professor Visitante: USP/RP, PUC/RS, PUC/PR, FDV/ES, IBMEC/RJ, FADI/SP e ESA/OAB.