Texto de autoria de Janete Aparecida Deste e Fábio Luiz Pacheco
Muito apressadamente, em poucos meses, inúmeras alterações ocorreram no mundo do trabalho durante a pandemia (coronavírus |Covid-19) e permanecerão após ela. A pandemia declarada pela OMS – Organização Mundial da Saúde foi internalizada pelo Brasil por adesão ao Regulamento Sanitário Internacional OMS/Brasil, por meio do decreto 10.212, de 30/1/2020, tendo sido declarada a situação como de calamidade pública até 31/12/2020, pelo decreto legislativo 6, de 20/3/2020.
A partir desse quadro, foram editados diversos atos normativos com a finalidade de abrandar os impactos graves da pandemia e frear a transmissão do vírus, principalmente com restrições à circulação de pessoas, o que acarretou na impossibilidade de estarem os trabalhadores em seus locais de trabalho, ainda que muitas atividades pudessem e devessem seguir sendo realizadas. Foram, então, publicados novos atos normativos, de apoio às empresas, visando, sobretudo, a manutenção de emprego e renda.
De forma repentina, milhares de trabalhadores começaram a atuar, tanto quanto possível, em suas respectivas casas, pois, entre as primeiras medidas anunciadas como atenuantes do impacto da pandemia, incluía-se na MP 927, de 22/3/2020, a adoção do regime de teletrabalho (art. 3º, I). Açodadamente, implementou-se o home office nacional (art. 62, III, da CLT). E, conquanto a CLT, com a alteração promovida pela lei 13.467/17, contenha um regramento sobre o teletrabalho (arts. 75-A a 75-E), a MP 927 trouxe nova disciplina à matéria (arts. 4º e 5º).
Veja-se, por outro lado, e até em virtude da urgência imposta, que não houve nenhum treinamento dos empregados quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho (art. 75-E da CLT), não sendo fornecidos equipamentos tecnológicos e de infraestrutura específicos (art. 75-D da CLT) e, muito menos, houve alterações contratuais expressas nesse sentido (art. 75-C da CLT).
Embora o foco do presente artigo não seja a análise da legalidade do teletrabalho e dos dois regramentos supra, no atual momento pandêmico (doença Covid-19) importante concluir que o aumento do número de teletrabalhadores acarreta muitas consequências, ganhando relevo a ponderação acerca da produtividade do labor remoto.
Trabalhar de dentro do lar é, além de conduta muito íntima e ímpar de cada empregado, reveladora da adaptabilidade de cada um nestes tempos de isolamento físico. Ao passo, por exemplo, que há quem facilmente adapte-se à nova rotina, há quem não consiga produzir com qualidade.
Desponta, em tal cenário, a chamada "síndrome do caxias", ou seja, o bullying sofrido pelo empregado inteligente, organizado e capacitado. "O melhor burro é o que carrega mais peso"; "o prego que se destaca ganha martelada". Pensamentos assim são caracterizadores de uma espécie de assédio moral, qual seja, por competência ou por produtividade.
Esta modalidade de assédio moral caracteriza-se pela exigência de maior produtividade e/ou de atribuição de tarefas mais complexas aos trabalhadores mais competentes, habilidosos e inteligentes.
O assédio moral por competência se apresenta, em muitos casos, como um falso "reconhecimento" por parte do empregador (ou chefia). Resulta em desequilíbrio entre o volume de trabalho maior exigido de determinado trabalhador (em face da sua competência, responsabilidade, dedicação, comprometimento, etc), e o volume de trabalho menor requerido de outros trabalhadores que se encontram em idêntica situação funcional e salarial.
É modalidade de assédio personalíssima, pois tem em pessoa determinada a sua vítima – diversamente do assédio moral ambiental ou organizacional (direcionado a pessoas indeterminadas).
Certo que o assédio por competência é tendente a gerar degradação da saúde física e mental do trabalhador (em face da pressão velada experimentada pelo assediado) e, a nosso ver, passível de indenização compensatória (arts. 186 e 927 do CCB; art. 5º, V e X, da CRFB; Convenção 190 da OIT; Anexo II da NR-17 da Portaria 3.214/87 do extinto MTE).
E, nestes tempos de pandemia, em que o teletrabalho "forçado" se tornou a regra, o assédio moral por competência revela-se escancaradamente.
Com efeito, seja na iniciativa privada, seja no meio público (no Judiciário, inclusive), é clara a percepção de que há trabalhadores mais preparados e/ou habilidosos frente ao trabalho não presencial. Unindo-se, ainda, a características pessoais como objetividade, organização, atitude, empenho e facilidade em aprender um novo labor virtual, "voilà", estamos diante de um sério candidato a receber grande quantidade de tarefas.
Por mais tentador que seja, imperioso é o olhar do empregador (privado ou público) sob o viés do assédio moral por produtividade, ao distribuir as tarefas a seus subordinados. Ressalta-se que no ambiente público a modalidade é ainda mais perversa, uma vez que os vencimentos são idênticos aos que ocupam o mesmo cargo – já que as funções e cargos comissionados são limitados, e não há como "premiar" todos os bons servidores.
A razoabilidade na exigência do cumprimento das tarefas e na distribuição delas é a tônica do momento (auge do confinamento social). A preservação do equilíbrio físico e mental no ambiente laboral é obrigação dos empregadores (art. 157 da CLT; art. 19, §1º, da lei 8.213/91; arts. 7º, XXII, 196, 200, VIII e 225, §3º, todos da CRFB; Convenções 148, 155 e 161, todas da OIT), reforçada em várias manifestações recentes da OMS, os quais devem pautar-se pela igualdade entre os membros da equipe, sob pena de exigir-se serviços superiores às forças de cada um, o que tipifica hipótese de falta grave do empregador (art. 483, "a", da CLT).
Em conclusão, a situação de Emergência de Saúde Pública de importância internacional decorrente da pandemia (coronavírus) exige alterações significativas na forma de trabalhar, sendo os empregados confinados em seus lares chamados a cooperar para que as atividades produtivas possam ser minimamente mantidas. Mas o teletrabalho deve ser implementado de forma racional e equilibrada, de forma a não sobrecarregar o trabalhador mais competente e produtivo, sob pena de caracterizar-se o denominado assédio moral por competência e o correlato dever do empregador de indenizar o dano moral respectivo.
*Janete Aparecida Deste é juíza do Trabalho aposentada do TRT da 4ª região. Professora de Direito Processual do Trabalho e de Direito do Trabalho Titular do JURISJAD, instituição destinada à preparação de candidatos aos concursos da Magistratura Trabalhista e Ministério Público do Trabalho. Advogada. Membro da ASRDT - Academia Sul Riograndense de Direito do Trabalho. Mestre em Direito pela PUC/RS.
**Fábio Luiz Pacheco é juiz do Trabalho Substituto do TRT da 8ª região. Ex-assistente de desembargador (TRT/4ª região). Ex-oficial de Justiça federal da Justiça Federal do RS (TRF/4ª região). Ex-assistente de juiz do trabalho (TRT/3a Região). Ex-chefe de Cartório Eleitoral (TRE/RS). Ex-advogado, ex-assessor jurídico municipal e da Confederação Nacional de Municípios (CNM – Brasília/DF). Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PUC/RS. Professor e palestrante.