Meio de campo

Milei x AFA: Sociedade Anónima Deportiva (SAD)

O embate entre Javier Milei e a AFA sobre a transformação dos clubes de futebol em sociedades empresariais, abordando decretos que atacam privilégios fiscais e resistências às mudanças.

6/11/2024

Cerca de um mês após a eleição de Javier Milei à presidência da Argentina foi publicado, por meio do Diário Oficial da República Argentina, no dia 20 de dezembro de 2023, o polêmico DNU - Decreto de Necesidad y Urgencia 70/23. Intitulado como “Bases para la Reconstrucción de la Economía Argentina” e popularmente conhecido como megadecreto, o DNU 70/23 foi composto por 366 itens, dentre os quais, alguns interessam ao propósito deste texto.

Javier Milei tornou-se um defensor da instituição da SAD - Sociedade Anónima Deportiva no futebol argentino, possivelmente influenciado pelo modelo espanhol e, mais recentemente, incomodado com os resultados positivos que a Lei da SAF trouxe ao ambiente brasileiro e aos seus clubes.

Daí a proposta de alteração e revogação de uma dezena de artigos da Ley de Deportes (Ley 20.655/74), inclusive alguns que geraram embate imediato com a AFA - Asociación del Fútbol Argentino e suas lideranças políticas: em especial, a possibilidade de clubes organizados sob a forma de associações civis se constituírem ou se transformarem em sociedades anônimas.

Importante: Os estatutos da AFA proíbem a constituição e a existência de sociedades empresárias no ambiente do futebol argentino.

Em reação às pretensões de Javier Milei, o atual (e recentemente reeleito) presidente da AFA, Claudio “Chiqui”  Tapia, comandou movimento que contou com esmagadora maioria dos clubes argentinos, e que resultou, no início do segundo semestre de 2024, na suspensão judicial dos efeitos do decreto presidencial, que, em sua redação original, previa prazo de um ano para que AFA e demais federações argentinas futebolísticas adaptassem seus estatutos para o recebimento da SAD.

Javier Milei não aceitou o golpe e editou novo Decreto de Necesidad y Urgencia 730/24, publicado em agosto de 2024, no qual reiterou a possibilidade de os clubes argentinos passarem do modelo associativo ao empresarial, e reinseriu o prazo de um ano para adaptação dos estatutos das federações nacionais. Além disso, foi decretado que as entidades de administração do esporte não poderiam sancionar clubes que optassem pela adesão ao modelo empresarial.

Após ajuizamento de medida cautelar pela AFA, a Justicia Federal de Mercedes ordenou a suspensão imediata dos efeitos do DNU 730/24 – impondo nova derrota ao presidente argentino.

Parte da mídia nacional já considerava o assunto concluído até que, menos de um mês atrás, no dia 21 de outubro de 2024, o embate tomou novos rumos.

Por via de outro decreto executivo, o DNU 939/24, Javier Milei dirigiu-se aos benefícios fiscais instituídos pelo então presidente Eduardo Duhalde (seguido por seu sucessor Néstor Kirchner), em meados de 2003, por meio do DNU 1212/03.

Em síntese, o DNU 1212/03, diante de crescente crise financeira que culminou no aumento exponencial de endividamento dos clubes argentinos, instituiu regime tributário de cobrança e retenção do percentual de 2% da receita total da venda de ingressos, transferências de jogadores e direitos de transmissão para pagamento e quitação de valores referentes a contribuições pessoais e contribuições patronais dos funcionários dos clubes pertencentes à AFA - posteriormente elevado para 6,5% por Kirchner, em 2005, após melhora na situação de crise.

Houve, ainda, em 2019, diante da administração executiva do ex-presidente Mauricio Macri, outro defensor declarado da SAD, novo aumento no percentual do regime de benefícios fiscais para 6,75% (incluindo também receitas de patrocínio dos clubes, previamente não incluídas na base de cálculo).

O embate teve também capítulo protagonizado pelo ex-presidente Alberto Fernández com seu DNU 510/23, no final de 2023 (época na qual estava em campanha eleitoral contra Javier Milei), momento em que buscou a ampliação dos benefícios anteriormente reduzidos por Mauricio Macri, instituindo sistema para refinanciamento de dívidas acumuladas em decorrência das alterações de 2019.

Agora, Javier Milei ataca ponto sensível aos clubes, o benefício tributário, e justifica a medida com argumento que afeta toda população – neste momento, abalada pelas intensas medidas promovidas pelo próprio Presidente: perda de ARS$ 7,1 bilhões (em torno de R$ 41 milhões) aos cofres públicos somente entre os meses de novembro de 2023 e abril de 2024, de modo que “portanto, é necessário modificar as condições atuais do regime para evitar a expansão do desfinanciamento do sistema”.

Parece, pelo exposto, que a disputa política entre Javier Milei e AFA está longe de se terminar. Enquanto isso, os clubes argentinos perdem a oportunidade de acessar os mercados financeiro e de capitais e de se reposicionar como grandes forças do futebol sul-americano – e mundial.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.