Meio de campo

Paris: 1874, Brasil: 21/24, as artes plásticas, o futebol e a Libertadores

Rodrigo R. Monteiro de Castro compara a situação das artes plásticas na França, em 1874 (ano em que artistas reunidos na Sociedade Anônima de Pintores, Escultores e Gravuristas lançou o movimento impressionista), e o Brasil, de 2021 a 2024, período em que a Lei da SAF iniciou uma espécie de revolução no ambiente do futebol.

30/10/2024

A Galeria Nacional de Arte de Washington (“Galeria Nacional”) inaugurou1 uma interessantíssima exposição denominada Paris 1874, na qual explora a importância de outras duas exposições que ocorreram em Paris, em 1874: uma, promovida pela Sociedade Anônima dos Artistas Pintores, Escultores e Gravuristas (“Sociedade Anônima dos Artistas”), em um espaço comercial localizado no Boulevard dos Capuchinos; e, outra, realizada no Palácio das Indústrias, que hospedava o Salão Anual, considerado o mais importante evento permanente de arte da época – e que havia sido instituído, aliás, desde o século XVII. 

A exposição promovida pela Sociedade Anônima dos Artistas apresentou em torno de 200 obras, concebidas por 31 artistas, e atraiu, durante o mês, número estimado de 3.500 pessoas; ao passo que a grande exposição oficial recebeu, em 2 meses, ao redor de 500.000 pessoas, que puderam apreciar 3.701 obras, produzidas por mais de 2.000 artistas2.

Os artistas reunidos na Sociedade Anônima dos Artistas ofereciam, com suas obras e proposições, uma espécie de revisão dos conceitos que, há décadas (ou séculos), dominavam o ambiente artístico, como a glorificação do passado, temas espiritualmente superiores e/ou que, de algum modo, elevavam as tradições e os feitos franceses. 

O vetor daquela sociedade artística - mais preocupada com temas da contemporaneidade como lazer (e prazer), cafés (e vida noturna) e homens e mulheres da sociedade; além da adoção de traços menos precisos, destaque à luz do dia (com pinturas feitas ao ar livre) e cores vivas -, que viria a ser identificada como impressionista, confrontava a própria essência do Salão e da elite econômica e cultural. 

Apesar de as obras impressionistas não terem sido bem aceitas inicialmente, tanto no Salão (que as rejeitou), como na crítica e na sociedade consumidora, elas rapidamente revelaram valores técnicos, estéticos e éticos que transformariam, sem exagero, o cenário local e mundial. 

Não deixa de ser impactante (e cruel), em tal sentido, a composição (e o resultado) da atual exposição em cartaz na Galeria Nacional. Apesar da apresentação de quantidade relevante de obras oriundas do Salão de 1874, muitas delas em maiores formatos do que as obras provenientes da Sociedade Anônima dos Artistas, o tempo fez muito bem aos impressionistas, mas parece ter reduzido as pinturas de Salão a um necessário momento evolutivo da história (sem desprezar a inegável técnica e beleza pictórica de algumas delas). 

A comparação se mostra ainda mais cruel ao espectador que deixa a exposição e se dirige às salas opostas do mesmo corredor da Galeria Nacional, que abriga (nada mais, nada menos do que) a maravilhosa coleção permanente de obras impressionistas, representada, dentre outros (e outras), por Manet, Monet, Renoir, Cézanne, Degas, Pissaro, Sisley e Morisot.  

A impressão que se dá, aliás, é de que, com exceção de poucas obras-primas impressionistas que se integraram à exposição Paris 1874, os realizadores preferiram mostrar obras não tão conhecidas, uma espécie de seleção reserva, para não humilhar os artistas do Salão. Mas não foi isso. O mote da exposição, o ano 1874, ditou o recorte, e, assim, se promoveu a comparação conforme produções de mesma época e para semelhantes finalidades. 

De todo modo, os impactos são facilmente identificáveis: enquanto a importância dos impressionistas ainda se intensifica com o passar dos anos, os pintores daquele Salão de 1874 que resistiram ao tempo permanecem em salas pouco concorridas de alguns museus. 

O relato pode, sem muito esforço, ser comparado à situação do futebol brasileiro e adaptado ao período que vai de 2021 a 2024. 

Em 2021, a lei da SAF, de autoria do senador da república e presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, foi promulgada e o establishment a ignorou – e, dissimuladamente, a repudiou. 

Forças reacionárias ainda tentaram desidratá-la, mas eventos como o investimento de Ronaldo Nazário, no Cruzeiro, de John Textor, no Botafogo e do City, no Bahia, anunciaram a sua irreversibilidade, de modo que, desde 2021, o sistema jurídico passou a propiciar o convívio de dois modelos: o clubismo, originado no século XIX; e o empresarial, plasmado na SAF (uma alternativa do século XXI).   

Apenas três anos após o surgimento da lei da SAF (portanto, curto prazo para absorção de nova lei e de nova via de organização empresarial, e mais de 70 sociedades anônimas do futebol constituídas), o ambiente já demonstra uma transformação que, além de irreversível, talvez reduza ou apequene, no plano esportivo, times que, no passado ou no presente, foram ou são protagonistas. 

Os resultados, até o momento, da edição 2024 da mais importante competição do planeta para sul-americanos, a Copa Libertadores, impressionam e reforçam a pertinência da comparação com a situação de 1874. 

Duas SAFs bateram dois clubes brasileiros nas quartas de final e, na sequência, humilharam, em seus jogos de ida da fase semifinal, os respectivos adversários estrangeiros, que são, nada mais, nada menos, do que River Plate e Penarol, tradicionalíssimos clubes da Argentina e do Uruguai, principais rivais, em geral, dos brasileiros. 

O enfrentamento não está concluído e pode, eventualmente, ser revertido. A despeito disso, as SAFs já começam a demonstrar força, planejamento, estrutura, recursos e consistência – inclusive as que não se propõem a ser protagonistas nacionais, mas relevantes localmente e competitivas, em plano maior. 

Soa, pois, o alarme para os times que acreditam que, pelas suas glórias do passado e tamanho de suas torcidas, não deixarão de protagonizar o cenário do futebol (em especial para os que, apesar desses atributos, já são – ou estão - coadjuvantes). 

Enfim, a arte, mais uma vez (e sempre), também por vias improváveis, revela os caminhos da humanidade (e do futebol). 

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1 A exposição foi apresentada, anteriormente, no Musée D'Orsay, em Paris. 

2 As informações numéricas e cronológicas foram extraídas dos textos explicativos da exposição e de suas obras, bem como do catálogo: Paris 1874 – The Impressionist Moment, Dist: Yale University Press. 

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.