Meio de campo

O fim da história do futebol: geral, arquibancada e o orgulho de vestir a camisa do time do coração

As transformações do futebol excluem o torcedor comum, distanciam a paixão e até restringem o uso da camisa do time, refletindo uma nova era de exclusão.

17/10/2024

O futebol não acabará, evidentemente. Mas passou e ainda passará por transformações que o levarão a um reenquadramento na sociedade. Coisas boas e ruins ficaram para trás; não voltarão, apesar de eventual saudosismo. Outras, também boas ou ruins, passaram a fazer parte do cotidiano.  

Exemplos: A área popular, reservada aos torcedores que se integravam ao espetáculo, conhecida como geral; a arquibancada de concreto; e a hiper lotação em jogos decisivos, de times com grandes torcidas, restam apenas nas memórias de torcedores que, logo mais, por decurso de tempo, também não terão memórias.

Aqueles hábitos, a bem da verdade, não fazem sentido nos dias de hoje. O desconforto, envolvendo o ato de participar de um evento esportivo, não tem sentido.

Basta comparar um automóvel santana quantum (ou um monza), produzido nos anos 80/90, que foi símbolo de status, com um audi atual, mesmo de menor porte (portanto, que nem mesmo seja um carro considerado topo de linha). O hiato é intransponível. A mesma sensação, ou algo parecido, revela-se na comparação entre o antiquado estádio e a nova arena.

O problema não é o conforto, mas a exclusão do torcedor comum, que escolhia o futebol como único (ou quase) único meio de lazer e de inserção social. Era lá, na geral ou na arquibancada, desconfortável para pobre e rico, que se integrava com a família (talvez em grande parte com membros do sexo masculino) e, em comunhão, extravasava.

Faltou sensibilidade aos governantes para ditar normas que não impedissem o progresso, mas, ao mesmo tempo, impedissem, aí sim, a acentuação da exclusão e da desigualdade entre torcedores.

Mais, ainda: a fidelização de torcedores abastados, atraídos pela transformação da experiência futebolística – propiciada pelos programas de sócio torcedor -, também criou níveis de preferencialistas que empurram para longe a chance de reintegração popular.

Para parte relevante da população, portanto, a alegria de ir ao campo chegou, prematuramente, ao fim. A história, para ela, será contada a partir das telas de televisões espalhadas em bares, mercados e outros espaços públicos.

Outra mania parece atentar contra a razoabilidade e o sentimento de orgulho e pertencimento: o uso da camisa do time de coração.

Na esteira da proibição de torcidas rivais em estádios e arenas paulistas, que priva o torcedor de um dos mais lindos espetáculos da terra – o contraste de torcidas e os gritos de apoio e de provocação -, surge a mania, em alguns estabelecimentos, de proibir a entrada com camisas de futebol, exceto de times estrangeiros ou irrelevantes.

É verdade que a razoabilidade não faz parte de todo ser humano, ao contrário, e, daí, advém a possibilidade de ocorrência de tensões pelo simples uso de uma camisa de time adversário, dentro ou fora de estádios, inclusive em ambientes neutros, como restaurantes e casas de show.

Mas nada justifica, numa sociedade supostamente livre, a proibição de uso, como vem se espalhando por diversos locais da cidade de São Paulo. Recentemente, por exemplo, presenciei a contenção de um inofensivo adolescente, que levava sua namorada a um show de rock em importante (e cara) casa de espetáculo, que somente teve o acesso autorizado após outra pessoa emprestar-lhe um casaco para cobrir as cores do time.

Não se trata, pois, de ambiente que exige certo código de vestimenta, mas que autoriza quase todos os estilos, eventualmente exuberantes, exceto camisas de futebol.

Isso tudo me faz lembrar de uma conversa com importantíssimo ex-jogador, a respeito do impacto das mídias sociais e da extrema exposição de jogadores atuais. Em poucas palavras, ele disse que, no seu tempo (o saudosismo é inevitável), só se pensava em jogar bola. Entre partida e outra, o atleta jogava bola. Na folga, mais bola. E quando se encerrava a carreira profissional, o jogo de bola mantinha-se como referência e estilo de vida.

Atualmente, ele completou, o aspirante pretende tornar-se jogador – e aproveitar as vantagens da posição -, e não jogar. O evento futebolístico, não raro, atrapalharia as campanhas publicitárias, as manifestações midiáticas, os romances e outras atividades pessoais. Claro que se abordavam, na conversa, os poucos escolhidos, que atingem o olimpo, e não o jogador cotidiano, que corre, em curta carreira, pela comida que colocará na mesa da família.

Há, sem dúvida, excessos nessas proposições. Talvez um ponto de indignação com as distâncias salariais, entre gerações. Mesmo assim, também há uma inquietante verdade: o mundo mudou e, com as mudanças, o futebol, no Brasil, mantém-se no terceiro mundo, em relação à adoção de técnicas de organização da empresa futebolística e de campeonatos (ainda não se viabilizou a liga de clubes, organizada pelos clubes), mas flerta com o primeiro mundo na ligação com seus torcedores-consumidores e com as técnicas de propaganda e marketing.

Enquanto isso, o torcedor comum fica fora do estádio (ou arena) e não pode vestir-se, em certas situações, com a camisa de seu clube; mas poderá ostentar, com orgulho ou complexo de vira-lata, a camisa do Real, do Barcelona, do PSG ou de outro apropriador das esperanças brasileiras (na posição de colonizador da contemporaneidade).

Parece, enfim, que há muita coisa fora da ordem, no estranho mundo novo que habitamos.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.