Em um hipotético campeonato brasileiro com vinte sociedades anônimas do futebol, apenas uma será campeã e, na outra ponta, quatro cairão para a divisão inferior. Assim, a simples passagem de modelo clubístico ao de SAF não garante resultado ou título. São necessárias, ademais, soluções para seis perguntas: o que o time foi; o que é; o que pretende ser; como atingirá o propósito; com quem; e com quais recursos.
Daí se extrai a seguinte proposição: SAF não é condição suficiente para o protagonismo no âmbito do futebol brasileiro contemporâneo. Mas esta proposição não pode ser isolada de outra, que lhe completa (em uma relação simbiótica complementar): apesar de não ser suficiente, a SAF passou a ser condição necessária.
Isso também não quer dizer que todos os times, para que sejam viáveis, devam abandonar o clubismo. Alguns, não muitos, ainda resistirão, pois, em ambiente historicamente desigual, a redução da desigualdade não se alcança com passe de mágica – ou com o advento de uma lei. Decorre de processo, eventualmente estimulado, aí sim, por uma lei. De modo que a comodidade, oriunda do poder econômico-futebolístico, justifica (ou justificará) os exemplares inerciais.
Aliás, anos (ou décadas) atrás, em função da limitação das fontes de receitas, os hiatos entre grandes e pequenos times eram menos perceptíveis – talvez exceto pelo tamanho da torcida - e, por isso, viabilizavam a existência, em certo plano de igualdade, de clubes periféricos: Guarani, Ponte Preta, Portuguesa e Juventus, em São Paulo; Bangu e América, no Rio de Janeiro; dentre outros.
Entre os chamados grandes, a situação gerava uma maior percepção de pertencimento a um seleto e inabalável grupo de elite, que se manteria em pedestal a despeito de eventuais (ou constantes) desmandos cartolariais – e de outras condutas inomináveis, que abalaram os alicerces de alguns desses times.
Quando a Lei da SAF surgiu, em 2021, o cenário, historicamente romantizado – da mesma forma que uma certa elite intelectual insiste em romantizar a pobreza – dera lugar a um palco de dívidas e crises políticas, patrimoniais e financeiras. Surgia, então, uma nova e democrática alternativa, que não exigia o rompimento com o modelo formal existente, mas apontava para o futuro, com uma solução já para o presente.
Não devia ser uma surpresa que os clubes integrantes da elite, ou, talvez, seus dirigentes e controladores, hesitassem – como alguns ainda hesitam –, logo no início, em mudar os rumos de suas histórias; assim como também não devia surpreender o fato de os clubes mais carentes em recursos ou em situação de crise aguda se aproveitarem da novidade para reconstruir suas trajetórias.
Pois, em linha com o que vem sendo defendido nesta coluna há alguns anos, em especial a partir do surgimento da Lei da SAF, as forças do “novo” futebol brasileiro tendem a se expressar pelos times que tiveram (ou venham a ter) capacidade de atrair apoio intelectual, financeiro e relacional, e de empregar esse conjunto de coisas em prol de um projeto reabilitador, libertador e transformador.
De modo simplista, e isolando algumas pouquíssimas exceções como o Palmeiras e, apesar da crise momentânea, o Flamengo, os demais clubes podem se dividir em dois grandes grupos (por motivos não necessariamente voluntários): um, que luta para afirmar que o passado pode ser maior do que o futuro (com as mesmas técnicas arcaicas daquele período glorioso); e, outro, que, sem romper ou negar o passado, a tradição e a relação com a torcida, projeta um caminho (ou, ao menos, um propósito) de novas tecnologias – e conquistas.
A fase de quartas de finais da Libertadores, coincidentemente, ilustra bem a situação: dos enfrentamentos entre brasileiros, duas sociedades anônimas do futebol venceram duas associações sem fins econômicos, dentro e fora de campo.
Poderia ter sido diferente? Sim, mas não foi.
Os motivos de campo podem ser demonstrados com maior autoridade pelos jornalistas e comentaristas especializados; já os motivos exteriores se associam, em grande parte, às técnicas providenciadas pela Lei da SAF.
O Botafogo, que trafegava com desenvoltura e persistência pela parte baixa da tabela (e pela série B), tornou-se, desde o segundo ano de modelagem empresarial, umas das forças do país, e conseguiu, mesmo com a quebra de expectativa do campeonato de 2023, manter a estrutura para voltar a brigar pelo título que deixou escapar – além de atingir uma posição histórica na mais importante competição do planeta, com exceção, ou não, da Champions League: a Libertadores da América.
O Galo, por via diversa, passou a trilhar o caminho traçado por bem-sucedidos empresários locais sem, contudo, perder a essência esportiva e a identificação com a torcida. Mais: além de nova arena, introduziu técnicas de direito societário e instrumentos de mercado de capitais ao ambiente do futebol. Seu protagonismo, no cenário atual, é incontestável.
Ganhem ou não seus próximos confrontos - para o futebol brasileiro e para o país seria bom que ganhassem -, Botafogo e Galo expressam a ponta do iceberg que poderá se revelar, com a intensificação e afirmação do benfazejo ambiente introduzido pela Lei da SAF. Algo que deveria alertar barcos e navios que o circundam, para evitar catástrofes de natureza “titânica”.