Desde o advento da Lei da SAF (lei 14.193, de 6 de agosto de 2021), de autoria do Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, mais de 70 sociedades anônimas do futebol foram constituídas e outras logo serão anunciadas.
O movimento não parará na próxima leva ou na outra (ou ainda na seguinte). A SAF, forma societária concebida para organizar a atividade futebolística, foi inserida e absorvida pelo sistema, e, nele, contribuirá para a ressignificação da importância do futebol, em seus diversos planos (esportivo, educacional, social e econômico).
Trata-se, pois, de um fato da realidade, que já faz parte da vida do atleta, do torcedor, do jornalista e dos demais agentes que, por qualquer motivo, gravitam ao redor do futebol.
Daí a importância de se promover uma constante avaliação do microssistema em que o mercado do futebol se insere e, se e quando houver necessidade, nele inserir mecanismos que, a um só tempo, incentivem seu desenvolvimento e reforcem a segurança jurídica sistêmica.
O ambiente inglês pode servir como uma das referências.
Origem do pensamento liberal clássico e das políticas expansionistas que propagaram ideais de liberdade e prosperidade, pelo livre comércio e eliminação de barreiras à circulação de pessoas e mercadorias, a Inglaterra, talvez coerente com a sua tradição, não criou, ao contrário de outros países (como Portugal, Espanha, Itália e Alemanha), leis específicas ou tipos societários para atração de investimentos no ambiente do futebol.
Basicamente, a entrada no país, para realização de investimentos no setor do futebol, segue, no plano legislativo ou regulatório, a normatização aplicável a quaisquer atividades.
O interesse global no mercado inglês se expressa pelo número de investidores estrangeiros que compõem o bloco de controle de times integrantes da Premier League: 16, dentre 20 competidores. Este número se revela ainda mais impressionante quando comparado à quantidade, por exemplo, de times alemães controlados por investidores estrangeiros: apenas 1[1].
O sucesso da Premier League talvez indicasse o conformismo com o modelo e a aposta no libertarismo. Não é assim, porém, que as coisas acontecem; e não é por aí que os debates atuais se intensificam.
Na ausência de leis ou regulamentos específicos, a Premier League adota, por via de autorregulação, dentre outros mecanismos, o Owner’s and Director’s Test (OADT), que tem como propósito assegurar que a pessoa que detenha participação em um time (ou o administre), acima de determinado percentual, ateste o preenchimento de padrões, sem os quais não estará habilitada à consumação de uma aquisição (ou à posição de administradora).
Tais padrões envolvem, dentre outros aspectos: (i) requerimento de confirmação de enquadramento, que se renova periodicamente; (ii) critérios de elegibilidade; e (iii) transparência. Com eles se pretende afirmar e reforçar a integridade e a reputação da liga e dos times que a integram.
Um tal movimento autorregulatório não seria viável no Brasil, ao menos por enquanto, pela inexistência de uma liga de clubes, semelhante à Premier League, constituída pelos próprios clubes (e sociedades anônimas do futebol) para organizar, autorregular, desenvolver, exportar e transformar a principal competição nacional em um dos mais valiosos produtos de consumo interno e de exportação do país.
Isso não significa que movimentos de proteção do ambiente e do mercado do futebol somente possam ocorrer a partir da tão aguardada criação da liga (que se viabilizaria com a unificação, sob alguma forma, da LFU e da Libra).
Ao contrário.
Mesmo na Inglaterra e com as normas internas da Premier League, debate-se, atualmente, a extensão de um movimento legislativo protetivo da história e da cultura do futebol - e, consequentemente, de seu mercado -, conforme se extrai, aliás, das palavras de seu maior representante, o Rei: “In his address to Parliament in early November 2023, King Charles III made a brief acknowledgment that ‘legislation will be brought forward to safeguard the future of football clubs for the benefit of communities and fans’. The UK Government later confirmed that such safeguarding would be the responsibility of an Independent Football Regulator (IFR)”.[2]
O Brasil deu um passo extraordinário com o advento da Lei da SAF e outras iniciativas que se seguiram, como a publicação do Parecer de Orientação n. 41, de 21 de agosto de 2023, pela Comissão de Valores Mobiliários - CVM. Em alguns aspectos, portanto, o incipiente modelo brasileiro está adiante dos demais e pode ser considerado o mais sofisticado do planeta.
Mas ainda lhe falta realizar certos movimentos que o elevarão a um padrão sem precedente e comparação, e o afirmarão como instrumento de criação do maior mercado do planeta.
Nesse sentido, e especialmente porque ainda não há 16 investidores (locais ou estrangeiros) controlando os times da primeira divisão, já é hora de se promover debate semelhante ao inglês, a respeito de critérios ou padrões de operações envolvendo SAF ou seus investidores, e, eventualmente, sobre a concepção de uma agência ou entidade de outra natureza, que contribua para higidez do sistema e consequente segurança social (e jurídica).
É o que se fará, com frequência, neste espaço.
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