O diplomata (e outras coisas mais) norte-americano Henry Kissinger escreveu, em livro essencial para compreender a geopolítica contemporânea, que "[o] sistema político determina diretivas mas a execução é deixada, em grau ainda maior, para burocracias separadas tanto do processo político como do público, cujo único controle são as eleições periódicas, se tanto. Mesmo nos Estados Unidos, decisões legislativas importantes muitas vezes compreendem milhares de páginas que, para pôr em termos brandos, apenas pouquíssimos legisladores leram detalhadamente"1.
Escancara-se, nessa passagem, o problema da representatividade nas democracias contemporâneas e, de maneira explícita, a dificuldade de implementação de políticas, a partir de uma decisão emanada de poder constituído (decisão que não necessariamente estará associada a um interesse coletivo, apesar de sua legalidade formal).
Quisera, em relação à (inexistente) política pública voltada à formação do mercado do futebol, no Brasil, que o problema fosse de tal natureza. Não houve ainda um governo que compreendesse a magnitude que o tal mercado poderia – e pode – alcançar e, daí, os reflexos sociais e econômicos benfazejos que seriam gerados à Nação e sua população. Não houve – e não há – política de estado, tampouco uma política de governo; mesmo que, neste último caso, tal plano governamental se sobrepusesse ou ignorasse uma hipotética política estatal.
Ao contrário, o cenário evidencia histórico desprezo, alternado por movimentações oportunistas ou populistas, em anos eleitorais ou de grandes eventos esportivos; desprezo que não se atribui a um ou outro Chefe, mas a todos, com maior ou menor intensidade (e responsabilidade).
Não à toa a imagem do futebol ter decaído da posição de orgulho e identidade nacionais (cujo ápice posicional se deu no regime militar, que a manipulou em favor da manutenção do sistema que representava) para uma espécie de terra arrasada, malvista internacional e, em parte, também nacionalmente.
Mais do que imagem: a relevância objetiva, em dois de seus pilares de sustentação, quais sejam, esportivo e econômico, também se esvai. Restaria a social, proclamada pelo povo, que ainda aposta no esporte como única forma de inserção e desenvolvimento – e, mesmo assim, sem eco nas esferas governamentais.
Aliás, a história do país farta-se em apresentar eventos entreguistas, muitos pela sua própria origem e incapacidade de reação econômica à invasão colonialista, mas, outros, muitos outros, pela apropriação patrimonialista que marcou (e marca) o processo político local, inclusive – e especialmente - pós independência e instauração da República. É essa apropriação, e não mais a posição de colônia, que justifica o atual estado de coisas no ambiente futebolístico.
Importa lembrar que, apesar do descaso de governantes anteriores, talvez não houvesse, até o crepúsculo deste século XXI, ambiente institucional, local e internacional, para um movimento estrutural, afinal: (i) o Brasil ainda se afirmava como Estado Democrático, após décadas de militarismo; (ii) seus mercados financeiro e de capitais se organizavam em compasso com a abertura da economia; (iii) não havia liquidez nos mercados globais (comparativamente ao que se revela nos tempos atuais); e (iv) o próprio futebol ainda não se posicionara como um negócio, local e globalmente.
Todos esses elementos foram sendo espontaneamente (ou não) reorganizados para formar uma certa convergência e, assim, viabilizar o que poderia – e ainda pode – ser, como se vem afirmando nesta coluna, o maior mercado de futebol do planeta e operar, sem ufanismo, como o principal soft power do país.
E se soma a esse cenário (quase ideal) a iniciativa do Senador da República e atual Presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, consubstanciada na Lei 14.193, de 6 de agosto de 2021, conhecida como Lei da SAF que, em apenas três anos, iniciou uma profunda transformação na forma de organização, manejo e financiamento do futebol; a qual provocou ações extraordinárias (mas igualmente isoladas), como o Parecer de Orientação CVM n. 41, de 21 de agosto de 2023, sob a presidência do Prof. João Pedro Nascimento.
A luz que surgiu, a partir da Lei da SAF – e que poderá se intensificar com (i) a absolutamente necessária formação de uma liga de clubes (e sociedades anônimas do futebol), dirigida no interesse dos times, dos torcedores e demais agentes que formarão seu sistema e (ii) o debate e encaminhamento da abertura de capital da CBF –, deveria permitir que o Governo enxergasse a oportunidade que lhe é apresentada, e, a partir do que já se vem construindo, pensar o futebol não apenas como um tema importante dentre os menos importantes, ou como tema de conversa de bar, mas com a importância que tem ou deveria ter (assim como os principais países desenvolvidos mantêm com os seus esportes mais relevantes e, se tivessem a perspectiva do futebol, o utilizariam como instrumento de inserção, desenvolvimento e dominação).
Nenhum outro governo, como o atual, foi agraciado com um estado de coisas que lhe permitisse, com uns passes para cá, outros para lá, fazer um gol histórico, mediante a organização do sistema que pensará e estruturará, de modo perene e sustentável, a mais global das atividades humanas.
Basta aproveitar o momento e colocar a bola para dentro.
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1 Kissinger, Henry. Sobre a China; tradução Cássio de Arantes Leite. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 200.