Faço uma pequena pausa na longa série que vem tratando, nas últimas semanas, do projeto de reestruturação e ressignificação da CBF (ao qual retornarei em uma ou duas semanas), para abordar certo evento que causou alvoroço ao ser anunciado: a venda do controle da SAF Cruzeiro pelo empreendedor e investidor, Ronaldo Nazário ("Ronaldo").
Ronaldo, sobre quem eu já escrevi em outras oportunidades, foi o salvador da Associação Cruzeiro, que estava afundada em dívidas e a caminho da terceira divisão. Técnica e empresarialmente, também estava, por ocasião de sua entrada, falida. Aliás, sabia-se que seu passivo era bilionário, mas não se conseguia quantificá-lo com precisão, pelo descontrole gerencial e outros motivos mais graves.
Importante lembrar, ainda, que, após o conselho deliberativo da Associação Cruzeiro aprovar uma operação em que ela mantivesse o controle da SAF a ser constituída, o sonho se desintegrou diante da falta de interesse de possíveis investidores nesse modelo.
Os problemas e o riscos envolvidos não justificavam qualquer projeção de retorno. Daí a aceitação, ao final do processo, de uma posição acionária minoritária para a Associação Cruzeiro, negociada com Ronaldo; posição, aliás, que não foi objeto de cobiça de outros investidores (incluindo torcedores bilionários).
Em suma, naquele momento, dizia-se que o novo controlador possivelmente se enrolaria num mar de lama e, dele, talvez não saísse. Nesse cenário, Ronaldo era – e realmente foi – o salvador da história do Cruzeiro.
Algumas poucas vozes, é verdade, sustentavam que o negócio fora barato. Sim, talvez, se considerados os compromissos de investimento assumidos e o potencial de retorno de um time da dimensão do Cruzeiro. Mas ninguém, além do próprio Ronaldo, aceitou correr os riscos políticos e patrimoniais que ele encarou, em especial por conta do passivo, que já se sabia que era gigante, mas que poderia ser ainda maior do que se imaginava, naquele momento. Para ele, talvez, considerando o tamanho de seu patrimônio e de sua exposição, o negócio fosse caríssimo (à beira da insanidade).
Com Ronaldo – e sua elogiável equipe, dentre ela, Gabriel Lima e Paulo André –, iniciou-se um inegável movimento de resgate, o qual ainda está em curso, importante ressaltar. E tomará algum tempo para atingir “nível de Cruzeiro”. Tempo que se tomaria – e se toma – na reestruturação de empresa em crise, ainda mais falida, do ponto de vista técnico, como estava a Associação Cruzeiro.
Em menos de três anos, o time deixou as páginas policiais e passou para as páginas econômico-empresariais, com a anunciação de um negócio expressivo, elogiado sob o prisma financeiro, mas questionado, no plano esportivo.
Grande parte dos questionamentos – uns, compreensíveis; outros, maliciosos – decorre da falta de intimidade com um ambiente ainda em formação, e, por isso mesmo, sujeito a movimentos por ora inesperados. Ou aparentemente inesperados, pois Ronaldo jamais afirmou que não venderia sua participação na SAF; além de ser algo absolutamente comum, em outros mercados.
Mas a sua saída é um problema?
Ao contrário de alguns respeitadíssimos jornalistas, entendo que não. Justificarei a proposição pela ótica da Lei da SAF (e, portanto, do ambiente do futebol) e da SAF Cruzeiro (consequentemente, de sua torcida). Não abordarei a perspectiva do novo controlador, pois se trata de um problema (ou não) dele.
A Lei da SAF foi recebida, no (e pelo) mercado, com incredulidade. Poucas pessoas ou instituições se mostraram, no início, interessadas. Curiosas, talvez; mas nada muito além disto.
Os motivos envolviam o histórico de desmandos e de corrupção no setor, o apego cartolarial à apropriação clubística, a falta de percepção da segurança jurídica pretendida pela Lei da SAF, a dificuldade de precificação do ativo futebolístico e, dentre outros, a dificuldade de visualização de uma saída para o investidor, imediatista ou de longo prazo.
A liquidez, derivada da probabilidade de saída de um investimento qualquer, justifica a existência, ou não, de um ambiente de trocas de posições; e quanto maior a probabilidade de saída, maior será a procura e, muito importante, maior será a atratividade para investidores institucionais ou mais conservadores.
A venda do controle da SAF Cruzeiro sinaliza justamente a perspectiva, antes negada, de que investidores teriam (e terão) como liquidar suas participações e embolsar, se e quando quisessem, o produto da liquidação dos seus investimentos, lucrativos ou não (sim, pois, eventualmente, a venda ocorra com prejuízo).
Mas não apenas isso.
A venda sinaliza também que o acesso a financiamentos e capitais pode perfeitamente passar por estágios diversos de interesse, no decorrer de seu amadurecimento, com entradas e saídas de investidores com diferentes perfis e perspectivas de riscos, até que se consolide a participação em um investidor “final” (que pode ser o perfil do novo controlador da SAF Cruzeiro).
Este investidor final, ou acionista referencial, terá maior propensão a manter sua posição por longos anos (eventualmente gerações), como ocorre com algumas famílias proprietárias de times de esportes norte-americanos.
Paralelamente, sob a perspectiva da SAF e da torcida, a entrada, agora, de novo acionista, com sólida atuação no ambiente empresarial, sugere uma nova onda de energia (e de recursos), pois, sobre o entrante, não pesam os desgastes naturais de todo o esforço pretérito, que envolveu o processo político de constituição da SAF, a negociação com o investidor Ronaldo, a iniciação do processo de recuperação e os percalços enfrentados, não apenas no âmbito da própria reorganização, como também dos solavancos que foram causados pela ambientação da (ainda novíssima) Lei da SAF.
Soma-se a isso o fato de que o novo acionista, pelo que se consta, tem patrimônio robusto e, tão ou mais importante, fluxo de caixa compatível com as necessidades de novos aportes e investimentos que serão demandados pela atividade futebolística.
E há, ainda, outro (e intangível) fator: a rivalidade local, que poderá fazer com que esse novo acionista de origem empresarial olhe para o rival e pretenda, com bases sólidas, medir-se ou superar o que vem sendo feito, de maneira bem-sucedida, por outros acionistas empresários daquele lado.
O que importa ao torcedor, no final das contas, é o sucesso de seu time. A imagem de Ronaldo foi útil, muitíssimo útil, na originação da SAF Cruzeiro, e na construção do seu processo de recuperação; mas o time do Cruzeiro construiu sua grandeza histórica por ser o Cruzeiro, e não pela dependência de uma ou outra pessoa.
E aí está o ponto crucial, talvez único, que mereça atenção geral (da torcida, das instituições, do poder público e do país, pela relevância social e econômica do futebol): a certificação de que o novo negócio foi construído em bases sólidas, que reforçarão e eventualmente acelerarão o reposicionamento do Cruzeiro dentre as maiores potências do continente.