Meio de campo

Um projeto grandioso para CBF: governança - Parte V

Rodrigo R. Monteiro de Castro apresenta a quinta parte do projeto de resgate e reestruturação da CBF, e nele trata de modelos de governação da entidade e do futebol.

20/3/2024

O grande dilema da teoria da governação de companhias (ou da governança, conforme termo mal traduzido do inglês), consiste na aderência de proposições de gabinete às realidades de entidades heterogêneas. Aliás, mais do que isso: também envolve a necessidade de adaptação de formulações estrangeiras, construídas para problemas locais, à realidade dos ambientes em que serão introduzidas, como o brasileiro.

A falta de sensibilidade, ou melhor, a utilização dogmática da matéria, inclusive por quem a conhece, mas que pretende encobrir uma série de imperfeições por detrás de um conceito mercadológico abstrato, vem contribuindo para falsear realidades complexas ou insustentáveis.

Daí a falibilidade, ou melhor, o fracasso, ainda não admitido no âmbito do mercado, dessa tentativa de construção de um padrão (ou conjunto) de práticas uniformes que sejam extensíveis, de modo geral, aos agentes que dele (mercado) participam.

Isso não existe e jamais existirá.

Por outro lado, não se pretende, com tais alertas, negar a relevância – ou mesmo a indispensabilidade – da autogovernação das sociedades (bem como de associações sem fins econômicos), que pode ser construída a partir da boa doutrina, local ou internacional, isenta e não capturada por interesses específicos.

Nesse sentido, um botequim de esquina – sem qualquer demérito, ao contrário, dos pequenos estabelecimentos que hospedam a alegria de trabalhadores (ou notívagos) – pode, eventualmente, implementar, dentro de sua realidade, uma governação que lhe propicie uma perspectiva de perenidade; enquanto uma enorme companhia que fornece os produtos ao mesmo botequim, eventualmente, estará sujeita a um modelo interno superficial, que a levará, no tempo, ao desaparecimento.

Partindo dessas premissas e, novamente, levando-se em conta os reais avanços propiciados por uma teoria independente, a governação da CBF (de modo amplo e com abrangência sobre todos os órgãos ou estruturas de poder), no âmbito da proposta que vem sendo apresentada nesta série de artigos (envolvendo, pois, sua mutualização, desmutualização e abertura de capital), teria um papel relevante em sua transformação, estabilização e projeção planetária.

Em primeiro lugar, com relação à estrutura de capital e às consequentes restrições à apropriação societária por uma ou outra pessoa, mediante, como já se aventou, a oferta de ações a pessoas integrantes de programas de sócios torcedores ou assinantes, apenas como exemplo, de planos de transmissão de jogos de campeonatos disputados no Brasil.

Além disso, por meio da imposição de limite de votos por acionista, independentemente do número de ações de que seja titular.

E, ainda, a eventual fixação de número máximo de ações por acionista.

Em segundo lugar, mas não menos importante, com relação à estrutura interna, mediante a arquitetura de órgãos de administração, consubstanciados em conselho de administração (com ou sem membros independentes), comitês executivos (ou de aconselhamento) do conselho de administração, diretoria (e gerências, inclusive regionais), área de relações com investidores, canais de transparência, comitês temáticos, auditores independentes e conselho fiscal, que reflitam, basicamente, os seguintes aspectos (ou interesses) fundamentais:

(i) o desenvolvimento do futebol no Brasil;

(ii) o desenvolvimento da seleção brasileira – que, conforme se depreende da realidade atual, está descasado do futebol no Brasil, pois a grande maioria dos atletas selecionados sai cedo do país, é formada fora e “importada” apenas para satisfazer os desejos da CBF (de modo que, em tese, para ela, a própria existência atual de campeonatos profissionais seria desnecessária, desde que brasileiros em fase de formação continuassem a ser exportados para alimentar times europeus);

(iii) o desenvolvimento regional por via das federações, que passariam a ter um papel desenvolvimentista inequívoco e atrelado a um projeto nacional;

(iv) o desenvolvimento do futebol brasileiro no exterior;

(v) a utilização do futebol como instrumento de incentivo à educação formal e à inserção social das pessoas integrantes do sistema;

(vi) a afirmação do futebol brasileiro como instrumento de divulgação e de softpower;

(vii) a afirmação da atividade como setor prioritário, empregador e distribuidor de renda; e  

(viii) o interesse nacional (assim como Hollywood, NBA, K-Pop ou Bollywood exercem em relação aos seus países).

No âmbito conceptivo da arquitetura do projeto, para posterior edificação da estrutura, e adequada distribuição de atividades e prioridades, a própria função da CBF e de suas atuações seriam revisadas e ressignificadas, considerando-se dois eixos principais: separação de atividades profissionais e essenciais de outras, auxiliares ou complementares; e atribuições e separações envolvendo interesses da seleção brasileira e interesses dos times de futebol.

O tratamento desses dois eixos será objeto do texto da próxima semana.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.