Na parte final do texto publicado semana passada neste espaço, afirmou-se, de modo resumido, que uma das belezas da mutualização consistiria na atribuição de títulos patrimoniais da CBF aos clubes e federações. Em decorrência dela, os beneficiários incorporariam aos seus patrimônios ativos valiosíssimos que, atualmente, não existem.
Os efeitos parecem, a esta altura, evidentes. Dentre eles, a criação, do “nada”, de um conjunto patrimonial bilionário – sem exagero –, representativo do valor extrínseco da CBF, distribuível entre (i) os clubes, que o utilizariam para reduzir passivos, inclusive com o fisco, e para desenvolver a atividade futebolística no país, e (ii) as federações, que deveriam, no plano regional, promover tal desenvolvimento.
Paralelamente, a CBF também se capitalizaria ainda mais, com o ingresso de recursos primários, e se beneficiaria de uma estrutura de governança poderosa, de modo a liderar um movimento pioneiro no plano global.
Antes de tudo isso, um derradeiro passo haveria de ser dado: a desmutualização da própria CBF.
Explica-se.
A criação de títulos patrimoniais e a sua consequente atribuição aos clubes e federações, apesar de aumentar o patrimônio de cada entidade, não viabilizariam a circulação, dos títulos recebidos, dentro ou fora do sistema do futebol. Eles permaneceriam enclausurados nos balanços contábeis, sem consequências econômicas.
Dentre outros motivos, porque associações civis, sem fins econômicos, como a CBF, não podem distribuir excedentes (lucros) aos seus associados; e seus títulos não são negociáveis (sob regras atrativas aos proprietários e, ao mesmo tempo, aos possíveis adquirentes).
Deve-se, pois, inicialmente, conferir a esses títulos uma nova feição (ou natureza) jurídica.
Mas não basta que os títulos da associação sejam submetidos a um processo transformacional; antes, a própria entidade deve se transformar também para, a partir daí, viabilizar a conversão daqueles títulos em ações (que seriam, as ações, pois, a nova expressão jurídica dos títulos associativos).
A ideia não é nova e encontra precedentes bem-sucedidos na história recente: as desmutualizações da Bolsa de Valores de São Paulo e da Bolsa de Mercadorias & Futuros.
Ali se viabilizou, em ambos os casos, a passagem do modelo associativo ao societário, com o surgimento de novas companhias, cujos capitais passaram a ser divididos em ações, distribuídas entre seus antigos mutualistas, que se converteram, portanto, em (felizes e milionários) acionistas.
Na sequência, as novas companhias promoveram seus próprios registros de emissoras de valores mobiliários e, por fim, os registros de ofertas públicas de distribuição de ações, para viabilização da abertura de seus capitais.
Com isso, aquele patrimônio, antes ilíquido e pouco valorizado, carregado ao longo de anos ou décadas pelas corretoras associadas à bolsa, encontrou, no mercado, uma liquidez sem precedentes, e facultou a cada um de seus proprietários a oportunidade de realizar vendas parciais ou totais de ações – e, em muitos casos, de embolsar dezenas ou centenas de milhões de reais.
De volta ao mundo do futebol, a proposta que se reapresenta, nesta série de textos, tem o mesmo objetivo: a desmutualização da CBF implicaria a atribuição aos clubes e federações, como indicado acima, de determinadas quantidades de ações de emissão de uma companhia (a CBF) que, na origem, seria fechada.
A companhia CBF, ato contínuo, promoveria sua abertura de capital e, neste momento, além de atrair novos recursos para si, mediante oferta primária, para aplicação no reforço e na afirmação da seleção brasileira, também viabilizaria a venda parcial ou total, pelos mencionados clubes e federações, de suas ações.
A venda não seria – e jamais será – mandatória; a decisão de manter ou não para si o ativo obtido com o processo inicial de mutualização da CBF caberia a cada clube ou federação, em função de sua saúde financeira, de sua necessidade de obtenção de caixa para pagar dívidas ou de investir na atividade futebolística, bem como de sua percepção de valorização das ações no tempo, atrelada ao resultado futuro da seleção brasileira.
Está-se, assim, diante de uma oportunidade histórica.
Desde o advento da Lei da SAF, de autoria do Presidente do Congresso Nacional e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), o Brasil vem atraindo a atenção de investidores locais e internacionais, dos mais distintos perfis. Não à toa a integração ao sistema, em pouco mais de dois anos e meio, de aproximadamente 60 sociedades anônimas do futebol.
Ademais, o futebol brasileiro, a despeito do permanente esforço realizado por certa casta cartolarial para destruí-lo – como atividade relevante, como orgulho nacional e como softpower internacional –, ainda é o maior vencedor de copas e o único, no planeta, que reúne atributos que o viabilizariam como sistema autossuficiente.
A autossuficiência – no sentido de que, em tese, não depende de elementos exógenos para sobreviver e competir em alto nível, ao contrário dos pares europeus, que se afirmam, apenas, com a importação obsessiva de jogadores trans e multinacionais – se afirmaria e intensificaria com as cachoeiras de recursos que jorrariam, para os clubes, federações e à própria CBF, do processo de mutualização, desmutualização e abertura de capital da CBF.
Um processo inovador e único, sem precedente, com potencial de atrair agentes de todo o planeta. Com uma precificação também única, pois se trata de uma entidade, mais uma vez, única, pois responsável pela seleção brasileira. E que movimentaria uma quantidade também única de recursos, para formação, nada mais, nada menos, do que o maior ambiente futebolístico jamais visto ou concebido na história mundial.
Pontos de atenção, porém, devem ser seriamente considerados, durante e após o processo, como (i) a distribuição de riquezas de modo equilibrado (não entre cartolas, evidentemente, e sim entre a própria CBF, clubes e federações, as quais podem, aliás, replicar o modelo, mediante, por exemplo, a mutualização, a desmutualização e a abertura de capital da Federação Paulista de Futebol), (ii) a estrutura de poder resultante e seus instrumentos de pesos e contrapesos e, naturalmente, (iii) a governação da CBF.
Sobre esses temas se tratará no próximo texto da série.