Meio de campo

O tanto que a turbulência palmeirense fala do futebol brasileiro

Advogado Savério Orlandi trata da situação política e das perspectivas da Sociedade Esportiva Palmeiras.

18/10/2023

Depois de um longo período de calmaria e conquistas, o Palmeiras voltou a vivenciar um inferno astral dentro e fora dos seus muros, com a elevação da temperatura interna, reveses esportivos, destempero da mandatária, manifestações de ex-Presidentes, escalada no desentendimento com a torcida organizada, agitação nas redes sociais e na mídia palmeirense: a coletividade, cujo lírico histórico de rearranjos cunhou a expressão "acabou em pizza", se depara, a par da pujança atual, com a idiossincrasia da sua liderança e problemas de várias ordens como qualquer outro clube brasileiro, mesmo que aos olhos do grande público possa assim não parecer.

Em termos financeiros, o clube, que até então não encaminhou qualquer estudo antecedente de transformação em SAF e sequer aderiu ao PROFUT à época do seu lançamento,  realmente detém situação de equilíbrio fiscal, sendo dono de uma expressiva receita já em vias de alcançar a cifra do seu primeiro "bilhão" anual, contudo, possui um exagerado conjunto de despesas que tem levado suas demonstrações praticamente “ao empate”, a propósito, no exercício anterior ao da pandemia, seu balanço alcançou saldo positivo pela alocação até então inédita no ativo dos estoques de material esportivo.

É verdade que os fundamentos econômicos do Palmeiras são muito consistentes, traduzidos pelo forte programa de sócio torcedor, por receitas de bilheterias e de premiações, patrocínios, direitos de transmissão e negociação de direitos econômicos de atletas, o último catapultado pelo exitoso trabalho realizado nas categorias de base; ainda assim, embora possa parecer difícil de acreditar, o comprometimento do seu fluxo de caixa é manifesto, fazendo com que o clube necessite de aportes, antecipações ou prorrogação no cumprimento das obrigações, práticas que revelam um “modus operandi” já de longa data conhecido e que é igualmente observado em várias outras associações esportivas do futebol brasileiro, identificando-se aqui a primeira similaridade: como consequência, além da redução da capacidade destes clubes investir, para o mercado suas demonstrações financeiras invariavelmente não são confiáveis, notadamente em face de inconsistências, alocações indevidas, alargamento na interpretação das regras contábeis, alteração ou supressão de rubricas, enfim, na sua maioria são tidas como carecedoras de rigor técnico, sem a observância das melhores práticas.

Além do dinheiro, outra questão que se evidencia análoga é o propalado profissionalismo que as associações esportivas igualmente insistem em alardear e dele se vangloriar, mas cujo caráter é visivelmente falacioso: a profissionalização, em verdade, cinge-se apenas aos departamentos de futebol, com a excelência das áreas cientificas, de comunicação e de logística, com os quadros capacitados que os integram, os equipamentos de última geração e as ferramentas sofisticadas, isto é, encerrando-se por aí, tanto para o Palmeiras como para boa parte dos clubes brasileiros.

De fato, interna e organizacionalmente, as estruturas de comando e deliberação são precárias, disfuncionais, passíveis de cooptação, imunes a qualquer tipo de fiscalização ou controle efetivo; especificamente em relação ao Palmeiras, muito embora se trate de uma organização robusta e complexa com faturamento de centenas de milhões, não existem instrumentos indispensáveis de governança, vale esclarecer, o clube sequer dispõe de regimentos procedimentais básicos, de um código de ética, de um bom mapa de riscos (não são poucos), de canais de denúncia...   

Como se não bastasse, e daí outro aspecto característico de similitude, o conflito de interesses tem sido identificado, seja no Palmeiras como na gestão de alguns dos seus pares diretos, às vezes os guiando no caminho dos “clubes de dono”, um sinal retrógrado e muito preocupante.

Novamente tratando do Palmeiras, cuida de associação que nem mesmo dispõe de uma Política de Transação com Partes Relacionadas, muito embora a atual mandatária, ainda que negando peremptoriamente a existência de qualquer conflito de interesses, é também a patrocinadora exclusiva do clube, credora de dívida substancial, locatária de um camarote para relacionamento no campo de jogo, proprietária do táxi aéreo que transporta a delegação e os diretores do clube, concessionária do Estádio alternativo à casa onde são mandados seus jogos (Arena Barueri).

Vê-se que a fragilidade nos requisitos e práticas de boa governança corporativa é recorrente nos clubes do futebol brasileiro, revelando outro aspecto de identidade, aqui nitidamente danosa, e que resulta muitas vezes em absurdos como o ocorrido recentemente no Palmeiras, quando um grupo de conselheiros (cerca de 10% do CD) encaminhou requerimento oficial à mandatária com pedido de esclarecimentos sobre temas diversos no estrito cumprimento das atribuições funcionais no exercício do cargo, não tiveram qualquer resposta ao pleito de parte da direção e, ao final, foram ainda retaliados, em um inaceitável e perigoso flerte com o autoritarismo.

A inadequação se traduziu ainda na recente entrevista coletiva (seletiva) concedida, onde com o diversionismo de costume em suas narrativas, adotou o uso de tom beligerante que culminou com a esculhambação de Ex-Presidentes, vilipêndio à história pretérita e centenária do clube, total desrespeito às suas tradições, desapego ao caráter de pertencimento que só o amor de berço a um clube confere ("se eu sair a equipe cai, antes de eu chegar a alegria era não cair").

O traço comum do egocentrismo e da auto suficiência na gestão dos clubes é outro elemento de semelhança que se observa junto à classe dirigente, levando-a ao individualismo exacerbado, impeditivo por exemplo de sequer terem logrado a superação do debate inicial sobre o "sagrado direito" de um valer mais que o outro, receber mais do que o outro, circunstância que no caso brasileiro culminou com a recente acomodação momentânea das agremiações em dois blocos, ou melhor, em duas ligas, o que para muitos é um retumbante equívoco, na medida em que a consolidação do novo mercado futebolístico brasileiro demanda não só a definição da equação econômica, mas sim a necessidade de uma estruturação completa, com providências diversas (especificamente o desenho do novo formato das transmissões, revisão do produto, transição geracional, inserção no mundo dos games e E-Sports com estratégia de adesão e perenidade, licenciamentos diversos, participação no meio das apostas, ações e licenciamentos conjuntos).

O futebol, como se diz, é muito dinâmico, na realidade o futebol é cíclico e assim o Palmeiras não tardará para superar o período sensível, algo que ocorre sempre e com todos, em maior ou menor tempo: mas o que também importa é que a superação dos desafios presentes contemple a necessidade do avanço imediato nas questões relacionadas à governança, sem as quais tanto o Palmeiras como os demais clubes não acessarão com o devido aproveitamento a miríade de oportunidades e um momento tão disruptivo em anos de existência da atividade futebolística, com tantos potenciais afluentes, possibilidades e alternativas para desenvolver o novo mercado.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.