Nas duas últimas semanas, esta coluna se debruçou sobre os desafios que vêm sendo enfrentados pela lei 14.193/21, a Lei da SAF. O processo legislativo é essencialmente complexo, envolve etapas técnicas, longas e intrincadas, inclusive para equalizar interesses dos legisladores que são, muitas vezes, contrapostos. Há ainda uma etapa adicional, que nem sempre é considerada pelos operadores de direito ou pelos destinatários diretos da norma, que é aquela travada nos tribunais locais, após o início da vigência do novo diploma legal.
É o que acontece hoje com a Lei da SAF em alguns tribunais locais, que irão definir os rumos da jurisprudência sobre o tema. O mais novo e rumoroso desdobramento que ganhou as manchetes pelo Brasil aconteceu no estado de Minas Gerais, onde tramita atualmente a recuperação judicial do Cruzeiro Esporte Clube.
Frederico Chaves Guedes, ou Fred, foi jogador do Cruzeiro e, em sua última passagem pelo clube, desligou-se no começo de 2020. Atualmente, o ex-jogador processa o clube mineiro e demanda valores da ordem de R$ 30 milhões. A dívida foi constituída em reclamação trabalhista proposta no início de 2020, antes do processo de recuperação judicial da Associação Cruzeiro e da constituição da SAF Cruzeiro. Os recentes desdobramentos decorrem da quebra de um acordo celebrado exclusivamente entre a Associação Cruzeiro e Fred.
Há algumas semanas, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região proferiu decisão determinando que a SAF Cruzeiro efetue o pagamento da dívida da Associação. A determinação proferida nos autos reclamação trabalhista é consequência de decisão datada de outubro de 2022, quando referido Tribunal entendeu que a SAF deve responder solidariamente pelo débito da Associação.
A nosso ver, o entendimento do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região parte de uma interpretação equivocada da Lei da SAF. A decisão citada, que responsabilizou a SAF Cruzeiro solidariamente, faz expressa menção aos arts. 9º e 10 da Lei da SAF, mas de forma equivocada.
A limitação imposta pelo art. 9° é clara: a SAF não é responsável por repasses ou tampouco pelas dívidas das associações anteriores à sua constituição, com exceção da hipótese contida no art. 10. Este dispositivo, por sua vez, prevê que a SAF realizará repasses à Associação quando (i) a Associação adotar o Regime Centralizado de Execuções ("RCE"), hipótese em que serão vertidos 20% de suas receitas (inciso I) ou (ii) a Associação receber dividendos (ou outros pagamentos decorrentes da posição de acionista da SAF), caso em que 50% do montante recebido deverá ser destinado à satisfação de obrigações anteriores à constituição da SAF (inciso II).
Em resumo, a legislação veda a responsabilização da SAF por obrigações relacionadas à Associação e prevê duas hipóteses em que poderão ser realizados repasses. E nenhuma dessas hipóteses se confunde com o que acontece hoje na recuperação judicial da Associação Cruzeiro ou na reclamação trabalhista proposta por Fred.
Há dois principais equívocos no entendimento do Tribunal. O primeiro é o de que o art. 10 estabeleceria uma hipótese de responsabilização solidária da SAF, o que não ocorre. O dispositivo trata da possibilidade de repasse nas duas hipóteses acima, bem delimitadas pela letra da lei. O segundo é o de que a recuperação judicial seria equivalente às hipóteses contidas nos incisos do art. 10, mas essa não é a realidade. É bem verdade que a Associação Cruzeiro optou em um primeiro momento pelo RCE. Posteriormente, contudo, a Associação desistiu da medida e deu início ao processo de recuperação judicial hoje em curso.
O pagamento de credores da Associação Cruzeiro, sejam eles trabalhistas ou não, deve observar o plano de recuperação judicial que será ainda votado em assembleia, em atenção concurso universal dos credores. Essa importante conclusão não implica dizer que a SAF Cruzeiro não efetuará repasses ou aportes para garantir o pagamento dos credores da Associação, mas que inexiste regra legal que imponha a solidariedade, que, nos termos do art. 265 do Código Civil, não pode ser presumida.
Originalmente, a intenção do legislador foi segregar a Associação da SAF, justamente para permitir o desenvolvimento da SAF e estimular investidores locais ou internacionais a alocar seus recursos nos clubes e no futebol brasileiro. Em outras palavras, a Lei da SAF intencionalmente não previu a responsabilização solidária da SAF justamente para que, em um ambiente seguro, sejam atraídos novos recursos para recuperar, estimular e desenvolver a atividade futebolística. Ao mesmo tempo, a Associação não deixará de receber valores da SAF ou de auferir rendimentos, mas suas dívidas serão readequadas para viabilizar investimentos. Essa foi a intenção do legislador.
Além disso, a Associação deterá participação societária em uma SAF que tem valor econômico significativo e que lhe deverá gerar recursos, distribuíveis via dividendos, por exemplo.
Assim se equilibram interesses: ao mesmo tempo em que as associações devem reduzir ou eliminar as dívidas que acumularam ao longo de anos, procurou-se criar um ambiente de segurança jurídica para realização de negócios, de modo a garantir o desenvolvimento do futebol e dos clubes.
O Poder Judiciário deve, nesse sentido, reforçar a segurança jurídica e não servir como elemento desestabilizador. Caso contrário, a jurisprudência que está se formando nos tribunais locais servirá apenas para a manutenção de um sistema que é intolerável nos dias atuais, com a ultrapassada lógica de benefícios de cartolas, intermediários e outros privilegiados.