Meio de campo

Sim, aprendam a conviver com a SAF

O tema desta coluna sugere um diálogo com texto publicado recentemente pelo editor geral de esportes do Estadão, jornalista Robson Morelli, cujo título é "aprendam a conviver com a SAF".

15/3/2023

O tema desta coluna sugere um diálogo com texto publicado recentemente pelo editor geral de esportes do Estadão, jornalista Robson Morelli, cujo título é "aprendam a conviver com a SAF"1.

Aliás, como falta ao país a prática da dialética, visando à construção de ideias, projetos e políticas públicas no interesse da coletividade. Acostumou-se, por aqui, a uma espécie de monólogo, sobretudo intelectual e acadêmico, de modo que contrapontos construtivos raramente são estabelecidos; ou, quando ocorrem, são levados, pelos envolvidos, para o lado pessoal.

Ao contrário do que se observa, por exemplo, nos Estados Unidos, em que é comum – ou, mais do que isso, é inevitável – o surgimento de posições e contraposições, quase sem fim, entre proposições ou teses lançadas por qualquer pensador. No plano jurídico, e mesmo econômico, formam-se antagonismos perenes, espécies de Fla-Flu ou São Paulo x Corinthians, entre intelectuais, esbarrando, até, num certo fetiche: basta um autor escrever algo que, na sequência, outro, e sempre o mesmo, já o rebate. Com isso se constrói uma sólida argumentação que reforça o funcionamento das instituições.

O propósito deste texto é muito menos ambicioso e não se presta a uma oposição; pretende-se, apenas, um diálogo a partir das mesmas premissas, mas que, em função da lógica adotada, servirão para sugerir conclusões distintas.

No mencionado artigo, o respeitado jornalista afirma que "ganhar jogos e valorizar o nome do clube e de sua marca (o distintivo) é o único objetivo dos donos das SAFs".

Essa afirmação merece algumas considerações.

Não parece que esses sejam os únicos objetivos, apesar de, sim, fazerem parte do propósito de qualquer investidor ou empresário (e deveriam fazer parte também dos objetivos de um clube). Mas, será que há algum problema naquela proposição? Ganhar jogos é um problema? E valorizar o nome da SAF e do time?

Lembre-se que, atualmente, quase ninguém fora do país conhece os times brasileiros, assim como nós, brasileiros, não conhecemos, de modo geral, times marroquinos, australianos, chineses, senegaleses, algerianos ou árabes. Mais: pouca gente lembrará – ou terá dificuldade para lembrar – dos times não europeus que eliminaram Palmeiras, Internacional, Galo e, logo mais, Flamengo, do Mundial de Clubes. Mas quase qualquer criança, de qualquer país, saberá discorrer sobre o Real, o Barcelona, o Liverpool, os dois times de Manchester, Liverpool e PSG. Ser conhecido, no plano futebolístico, tornou-se uma necessidade.

Ronaldo Nazário, no caso mencionado na matéria, ao ingressar no Cruzeiro (e tornar-se "dono" do time, além de um possível salvador da pátria), levou o nome de sua SAF, sem exagero, ao mundo todo. Se conseguir transformá-la numa potência, ganharão o próprio Ronaldo, a SAF Cruzeiro, o clube Cruzeiro, o time, os torcedores, o futebol brasileiro e o país.

No mesmo texto, o jornalista afirma que Ronaldo Nazário e "todos os outros" investidores "visam o lucro". Sim, e com razão. A obtenção ou a busca pelo lucro, quando inserida no ambiente futebolístico brasileiro, costuma ser tratada como uma conduta maligna, portanto, intolerável.

Porém, qual o mal no lucro, se obtido de forma legítima? Sob outro prisma, deve-se manter o modelo atual em que cartolas irresponsáveis, despreocupados com o equilíbrio, quebram seus clubes e subtraem a esperança de um contingente de torcedores, como fizeram os dirigentes anteriores do próprio Cruzeiro?

Se uma SAF reportar lucro, indicará ao mundo que suas receitas superam suas despesas e que, quem negociar com ela, lidará com responsabilidade e perspectiva de cumprimento de deveres e obrigações. Mais do que isso: que deverá existir um projeto sustentável.  

Também se aponta, no mencionado texto, que Ronaldo Nazário estaria vendendo, na alta, 20% de sua participação, para embolsar rápido lucro decorrente de seu investimento. Aceitando-se a premissa – a qual será, no entanto, questionada adiante – haveria um pecado ou uma quebra de confiança no investidor, pelo aproveitamento de uma oportunidade de mercado, após ter corrido o risco do negócio?

Entendo que não. Aliás, ele jamais disse que não negociaria com suas ações, após socorrer e, ao que tudo indica (ou ao menos se espera), direcionar o salvamento do Cruzeiro.

Dito isso, vale apontar que, em minha opinião: (i) o Cruzeiro ainda não está na alta, pois precisará se provar na série A; em uma edição que será, talvez, a mais competitiva deste século; (ii) a situação lá, como afirma com frequência Gabriel Lima, CEO da SAF Cruzeiro, continua muito complicada, e o objetivo de 2023 será se manter onde está (ou seja, não cair para a série B); e (iii) de acordo com informações públicas, contidas em matérias jornalísticas, Ronaldo não está vendendo ações; o investidor fará um aporte, conversível em participação na SAF, de modo que os recursos irão para a própria SAF Cruzeiro, e não para Ronaldo, o qual será, em decorrência da conversão, diluído.

Destaca-se outra afirmação do texto: "elencos fortes vão valorizar o clube. Vitórias e conquistas também. Mas é inegável que a torcida vai ter de entender e se acostumar com a nova forma de gerir o futebol. Vendas de jogadores haverá o tempo todo. A SAF pressupõe esse tipo desprendido de ação. A dúvida, no entanto, é saber se haverá reposição à altura".

Esta proposição merece algumas reflexões.

A descrição não coincide com a realidade dos clubes brasileiros antes do advento da Lei da SAF e não continua a coincidir dois anos após sua promulgação? Clubes brasileiros não se tornaram, ao longo do tempo, exportadores de jogadores imberbes? Quem consegue reter um jovem talentoso, após meia dúzia de boas apresentações?

Veja-se o caso do outrora poderosíssimo e hoje decadente São Paulo Futebol Clube: ele retem algum talento que cria? E, no ambiente de sua vocação contemporânea, qual seja, o comércio de jogadores, repõe à altura? Onde estão os substitutos de Casemiro, Militão, Neres, Antony, Sara ou Marquinhos? E de Endrick, perdido sem contrapartida ao rival?

Exemplos semelhantes podem ser extraídos de todos os demais clubes brasileiros, que não têm investidores, mas dirigentes abnegados que administram, em muitos casos, quase massas falidas, às custas de toda a sociedade, ou seja, de pessoas físicas ou jurídicas que pagam seus impostos – inclusive as novas SAF's, que são tributadas com base em receitas.

Portanto: o sucesso do time gerido pela SAF, as vitórias, a glória, o lucro, a distribuição de riquezas, a negociação de jogadores, o pagamento de tributo, o reinvestimento, o início de novos ciclos, e assim por diante, por mais contraintuitivo que possa parecer, são os pontos de convergência com a felicidade do torcedor.

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1 Disponível aqui.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.