Meio de campo

Fechado para futebol – e sobre um concurso público para solucionamento da catástrofe do litoral paulista

Rodrigo R. Monteiro de Castro declara, assim como dizia o escritor Eduardo Galeano, o "fechamento" momentâneo para futebol e, no lugar, propõe um concurso público de proporção nacional para solucionamento da catástrofe do litoral paulista.

1/3/2023

Em Orfeu da Conceição, obra prima da humanidade, adaptada da mitologia grega por Vinícius de Moraes, e mencionada por Barack Obama no livro Dreams from My Father: A Story of Race and Inheritance, Orfeu, um músico negro, desce o morro numa terça-feira de carnaval para encontrar Eurídice, por quem se apaixonara. Ao subir o morro, em regresso de sua empreitada, é morto por iniciativa de sua namorada anterior, enciumada da nova paixão do amado.

No carnaval de 2023, no litoral Paulista, precisamente na região do Sahy e adjacências, centenas (ou talvez milhares) de pessoas foram involuntariamente descidas do morro. Não por amor.

Um morro uivante, como a ele se referiu uma moradora local que tive a tristeza, pelas circunstâncias, de conhecer; um morro que soltava gritos guturais ao ser agredido pela força da água que se projetava, cortante e sem piedade, do céu.

Seria apenas mais uma desgraça em um país que coleciona desgraças impingidas às populações carentes e desfavorecidas economicamente se, e apenas se, dessa vez, os impactos não tivessem se estendido às regiões e aos proprietários de imóveis de classes mais altas.

Não, não pretendo cair aqui na tentação de simplesmente levantar o dedo aos integrantes dessas classes – da qual, não posso negar, faço parte e da qual muitos dos principais colunistas e periodistas que trataram do tema, independentemente de suas convicções ideológicas ou políticas, também fazem parte - que, não raro, também dedicaram suas forças laborais para conquistar um sonho naufragado na mesma ocasião.

A eleição de um culpado, ou de um grupo de culpados, reduziria, indevidamente, o problema a algo episódico; pois, o que se vivenciou e ainda se vivencia no litoral não decorre de fato isolado. O território brasileiro está povoado de situações análogas de risco, que se transformam, ano após ano, em novas tragédias, sem que sejam promovidas soluções estruturantes.

Em linguagem abstrata, a sociedade que se construiu, desde a invasão portuguesa, é, lato sensu, responsável pela desigualdade e pelas catástrofes brasileiras.

Aliás, tudo ou quase tudo que se tinha a dizer, sobre as causas e os efeitos da desigualdade e o processo de segregação, foi dito em textos primorosos escritos, dentre outros, por Reinaldo Azevedo1, Antonio Prata2 e Oscar Vilhena3.

Do ponto de vista pragmático, nos dias que se seguiram à trágica noite de sábado para domingo do feriado de carnaval, viu-se a criação de diversas redes de apoio e solidariedade, que contribuíram para anestesiar o sofrimento.

O problema é que, passada a onda de empatia e de ações de caridade, as gentes que frequentam o litoral para veraneio, que lá estabeleceram suas segundas moradias, e os doadores esparsos, voltarão aos enfrentamentos cotidianos de suas vidas enquanto, nas regiões afetadas, famílias se depararão com as mazelas da nova realidade: sem chão, sem casa e talvez sem emprego. E, em alguns casos, sem membros da família e amigos.

Para piorar, em região turística cuja população depende do fluxo de pessoas e da circulação de recursos, os desafios se expandirão direta e indiretamente às comunidades em geral, dificultando a reconstrução material e imaterial de projetos das gentes locais.

A verdade é que a solução do problema exige esforços hercúleos e dificilmente (ou melhor, impossivelmente) os movimentos transformacionais necessários poderão ser promovidos sem a ativa participação do Estado.

Estado, aliás, que se ausentou, nos anos passados – ou será nas décadas e séculos passados? –, ao testemunhar a formação, à beira da estrada, em zonas de risco, de crônicas de mortes anunciadas. Sim, todos os sinais estavam lá, visíveis, seja a quem morava, a quem trabalhava, a quem trafegava pela estrada, ou a quem tinha incumbência de fiscalizar ou de propor e implementar políticas públicas. Assim como os sinais estão em muitos outros locais ou regiões, incluindo-se as periferias de grandes cidades.

Estado, ademais, que não soube (ou não quis) aplicar as centenas de milhares de reais, obtidas em royalties oriundos da exploração de petróleo e derivados, em soluções estruturais que, como se ouviu, não rendem votos.

Vê-se, também, neste momento, uma série de propostas de soluções, algumas que já estariam idealizadas (e que não teriam se materializado por conta de burocracias ou contraposição de interesses, eventualmente legítimos), ou que foram simplesmente ignoradas pelo Poder Público, e mais algumas que surgiram no calor do drama, e assim por diante.

Não se pode perder de vista que, ao lado do sofrimento humano – e das proposições bem-intencionadas –, também há quem abra os olhos para os lucros que poderão ser obtidos com toda a movimentação em torno da catástrofe (algo que, apesar de repugnante, está enraizado na sociedade patrimonialista brasileira e mundial, como se investiga, por exemplo, no âmbito de contratações realizadas por ocasião do enfrentamento da recente pandemia).

Disso tudo se conclui que o público e o privado deveriam, talvez pela primeira vez na história, unir-se em torno de um ideal, de revisão e reconstrução, inicialmente, das famílias e comunidades atingidas, mas inserido em um projeto transformacional maior, a ser definido mediante a determinação de política pública, para execução em decorrência de concurso aberto aos principais especialistas e entidades qualificadas, de abrangência urbanística, arquitetônica, habitacional, ambiental, fundiária, logística, etc. E cujo modelo final possa ser replicado ou ao menos aproveitado em outras situações, de modo preventivo, sobretudo – enquanto, claro, adotam-se medidas transitórias imediatas de apoio às vítimas e à região.

Apenas assim se afastarão dois problemas que corroem as bases da sociedade brasileira: o oportunismo, não apenas político; e a ganância, que pode estar a nortear movimentos infiltrados na problemática.

Foi para fazer essa talvez ingênua proposta que este espaço, pela primeira vez em mais de seis anos, se fechou para o futebol; e não com a intenção de – como fazia o escritor Eduardo Galeano durante copas do mundo, que se fechava para tudo e todos – acompanhar jogos de futebol. 

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1 Disponível aqui.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.