Meio de campo

Reflexões a respeito de Neymar

Quase todo torcedor ou cidadão passa a esperar ou cobrar uma conduta compatível com aquela que supostamente teria se estivesse na posição da pessoa de referência, no caso, um jogador.

23/11/2022

Em 4 de julho de 2018, por ocasião da Copa do Mundo da Rússia, escrevi um texto, cujo título é “Em defesa de Neymar e a omissão do Estado”1, em que pretendia jogar luz sobre o fato de que Neymar era (e é), sob vários ângulos, reflexo da falta de sensibilidade do Estado, de governos e da própria população com as coisas do Brasil.

Explico-me.  

Num país em que heróis são necessários para acompanhar a vida cotidiana e justificar a perspectiva futurista de melhores condições – que chegam para poucos –, nada ou pouquíssimo se faz, no plano de políticas públicas, para produzi-los; e, quando esses heróis surgem, geralmente por esforços próprios ou de pessoas próximas, sujeitam-se ao tensionamento maniqueísta da elite cultural e, não raro, à tentativa de apropriação por agentes públicos do momento.

Foi assim durante o regime ditatorial e continuou da mesma forma, sob os distintos presidentes eleitos democraticamente – apreciassem ou não a democracia.   

Se antes Neymar era apenas um menino que queria ser o melhor jogador do mundo (tal qual Pelé e muitos outros) – e acho que ainda será –, e hoje se transformou, além do fenômeno futebolístico que é, numa das maiores personalidades do planeta, integrada a um sistema irrefreável de interesses econômicos (conforme anotei naquele texto de 2018), nada decorre, porém, de um esforço coletivo voltado ao bem comum, e muito menos de ações de Estado ou de Governos.

E aí está o tema a se enfrentar: mesmo assim, sem ter qualquer contribuição para o desenvolvimento ou o sucesso alheio, quase todo torcedor ou cidadão passa a esperar ou cobrar uma conduta compatível com aquela que supostamente teria se estivesse na posição da pessoa de referência, no caso, um jogador.

Por outro lado, uma pessoa pública, ainda mais da dimensão de Neymar, sempre estará sujeita ao escrutínio e terá que lidar com a problemática das cobranças e das projeções de natureza psicanalítica, quaisquer que sejam elas.

Ocorre que, em relação a ele (a Neymar, portanto), desde a sua origem, parece não ter havido boa-vontade para construção de uma relação afetiva capaz de dar-lhe uma conotação menos vilanizada – talvez em decorrência da ultra exposição e da associação a diversas marcas, ou pelo fato de não ter sustentado um discurso com preocupação social (o que não significa que não a tenha), e de algumas condutas ainda juvenis.

Perdeu-se, até hoje, por isso, a chance de aproveitamento de um gênio – não apenas de seu tempo, mas, no plano futebolístico, de todos os tempos –, como um poderoso soft power brasileiro.

Aliás, essa expressão está por todos os lados, a justificar investimentos bilionários da Coréia do Sul e a exportação, por exemplo, do seu K-Pop, como na capa do Caderno Ilustrada, da Folha, na edição de 20 de novembro, em que se lê o seguinte: “além de sediar a Copa do Mundo, Qatar consolida soft power na cultura e recheia Doha de museus e obras opulentas como os seus arranha-céus”.

A própria aquisição do PSG, como a contratação de Neymar – considerado, à época, o mais promissor e especial dos jogadores em atividade para empreender um plano de dominação ou de distribuição cultural –, pelos mesmos controladores finais que dominam a Copa do Mundo, tem menos a ver com a última linha do balanço (ou com os lucros diretos do investimento) do que com esse processo de afirmação planetária que, nos dias atuais, se alcança por vias não belicosas.

Melhor dizendo: não tão atual assim, pois os Estados Unidos já os produzem, ao lado da própria indústria bélica, aos montes, por intermédio, dentre outros, de Hollywood e da música.

Voltando àquele texto de 2018, que me perece ainda atualíssimo, indagava: “se ele não levanta bandeiras sociais – será que não? – ou se sua atuação, quando enfrenta ou apanha de adversários, incomoda, o problema é nosso, que projetamos nele aquilo que queríamos ser ou que gostaríamos que ele fosse, como herói”.

E, ainda: “deixemos que ele siga o seu caminho, e cobremos do Estado a formulação de uma política que possibilite o surgimento de um, vários ou cem mil grandes jogadores e cidadãos brasileiros, que possam compartilhar a responsabilidade que pesa, nessa Copa, sobre apenas um”.

Há um equívoco, pensando bem, naquela formulação: deixar que siga o seu caminho é o que se fez e se faz, com praticamente todos os meninos e meninas que não tiveram condições semelhantes às de uma minúscula parcela da sociedade, nascida em berços esplendidos.

Corrijo-me, pois: o Estado deve contribuir, não com favores de natureza pessoal, mas com programas e políticas que estimulem a educação por meio do esporte e o esporte, por meio da educação, e, além disso, com outras políticas que viabilizem a valorização posterior desses símbolos nacionais, em proveito do bem geral.

No que toca especificamente a Neymar, enquanto parte da população brasileira ainda insiste em maldizê-lo ou desprezar sua grandeza no plano do futebol, ele vem, por outro lado, contribuindo para afirmação de cidades ou estados com os quais não tem identidade.

Olhando sob outros prismas, se profissionais como Oscar Niemeyer e mesmo Pelé fossem, por exemplo, norte-americanos, teriam sido cuidados e trabalhados para se transformarem em identidades ou marcas perenes, geradoras de perspectivas, empregos, tributos e riquezas, para eles próprios, suas famílias e sociedade em geral.

Justamente o que deveria ser feito com Neymar – e que, pode-se apostar, está sendo programado, de maneira inédita no país, por seu entorno.  

Sem qualquer ufanismo: o sucesso de Neymar poderá fazer muito bem ao Brasil e, quiçá (aí sim, com uma certa esperança idealizada), chame atenção das gentes para o enorme equívoco que se comete ao tratar certas atividades e pessoas com o mesmo desdém que, historicamente, justificou a entrega às nações colonizadoras das riquezas locais.

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1 https://www.migalhas.com.br/coluna/meio-de-campo/283073/em-defesa-de-neymar-e-a-omissao-do-estado

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.