Meio de campo

Futebol, a Lei da SAF e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM)

Como pode o país, que tem mais de 20 times com mais de um milhão de torcedores cada, reduzir sua perspectiva na estrutura mundial à mera exportação de jovens ainda em fase de formação?

9/11/2022

A situação financeira do futebol brasileiro provoca – ou deveria – provocar reflexões: como pode o país que mais gera jogador no planeta (aproximadamente 11% de todos os negócios envolvem brasileiros) produzir um endividamento bilionário e impagável, sob a perspectiva dos atuais clubes, constituídos sob a forma de associação civil?

Mais do que isso – muito mais, aliás: como pode o país, que tem mais de 20 times com mais de um milhão de torcedores cada, reduzir sua perspectiva na estrutura mundial à mera exportação de jovens ainda em fase de formação?

E, para arrematar (apenas pela dimensão deste espaço, pois as perguntas são quase infindáveis), como pode o país mais admirado (e temido) no plano das seleções nacionais, o único penta campeão mundial, “importar” mais de 90% dos seus selecionados junto a times estrangeiros (que contratam os jovens ainda em fase de formação; fato que, é verdade, coaduna-se com a posição exportadora assumida pelos times locais)?

Essas e outras perguntas, voltadas ao ambiente esportivo, conectam-se com questionamentos dirigidos ao ambiente da economia; ambiente este que aparenta ter ignorado a existência de uma atividade global e bilionária, da qual o Brasil deveria se inserir como protagonista.

Assim, em resumo: como se justificava, até o advento da Lei da SAF, a falta de interesse do mercado em geral, local ou internacional, em relação ao futebol brasileiro, que faz parte de sistema transnacional que atrai mais de 4,5 bilhões de pessoas e que, no plano institucional, congrega mais confederações associadas à FIFA do que países à ONU?

Não houve, na verdade, falta de interesse.

Houve incompreensão e inconformismo quanto à necessária mudança de um modelo, remanescente do século XIX – sim, do século XIX –, que encastelou a empresa futebolística em clubes sem finalidade lucrativa, controlados por dirigentes instáveis – fruto do processo eleitoral inerente ao modelo associativo – e incapazes de oferecer a necessária segurança jurídica e institucional a agentes interessados em financiar ou investir na empresa futebolística. 

Mas o futebol, como qualquer outra atividade econômica, precisa de recursos para seu desenvolvimento; e, na ausência de provedores de capital, passa a depender de um “submercado”, formado justamente por outros tipos de agentes que vivem e fomentam a crise alheia para, em condições não raro escorchantes, impor uma dependência da qual não se sairá sem a revisão estrutural do modelo.

Por isso que, historicamente, não surgiu, de dentro do futebol, uma solução para o próprio futebol: pois, contra os interesses deste – e dos torcedores –, grupos de pessoas com intenções e anseios particulares se apropriaram das decisões, das formas de captação e de financiamento, e do processo de endividamento, e se alimentaram do caos esportivo e institucional.

Diversos fatos novos, e relevantes, indicam, no entanto, que uma transformação estrutural pode estar em curso.

Negociações como as conduzidas por Cruzeiro, Botafogo, Vasco e, mais recentemente, Bahia –  que atraiu, nada mais, nada menos, que o grupo controlador do Manchester City –, jogaram luzes sobre a perspectiva criada com o início da construção de políticas públicas que reconhecem e elevam o futebol a tema fundamental da sociedade, pelos seus atributos culturais, esportivos, econômicos e sociais.

Aqueles clubes, bem como outros que desenvolvem atualmente seus processos internos de revisão modelar, inauguraram, pois, o que deverá se reconhecer como uma nova era do futebol brasileiro.

É com esses propósitos construtivos que o Instituto de Direito Societário Aplicado – IDSA, a mais importante e atuante entidade dedicada ao estudo, desenvolvimento e aperfeiçoamento do direito societário no país, promoverá, amanhã, dia 10 de novembro, na e com o apoio da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, evento com a intenção de, justamente, promover e colaborar com a formação de um ambiente regulatório adequado ao surgimento e afirmação de instrumentos de mercado. Participarão do evento legisladores, reguladores, presidentes de clubes e SAF’s, banqueiros, advogados e professores. 

O local de realização, sede da CVM, autarquia que se presta a “desenvolver, regular e fiscalizar o Mercado de Valores Mobiliários, como instrumento de captação de recursos para as empresas, protegendo o interesse dos investidores e assegurando ampla divulgação das informações sobre os emissores e seus valores mobiliários”, simboliza e sintetiza os esforços que agentes privados e públicos empregam, desde a proposição do anteprojeto de Lei da SAF, para criação do já mencionado mercado do futebol.

Mais do que isso: representa a ruptura de uma barreira, formada por distintos substratos (psicológico, sentimental, legislativo, regulatório etc.), que impedia o estabelecimento, em um ambiente seguro e previsível, do encontro entre os proprietários do futebol – os clubes – e os financiadores da empresa futebolística. 

Festeja-se, assim, o aparente interesse do regulador (CVM), que não apenas abre suas portas para o futebol (e, consequentemente, para o torcedor e para o País), e, sobretudo, indica (ao menos esta é a minha percepção externa) que poderá colaborar, no âmbito de sua competência definida em lei, para a formação e regulação de um mercado que contribuirá – é sempre bom afirmar e reafirmar – para o desenvolvimento econômico e social da nação.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.