Meio de campo

Interpretações tortuosas da lei da SAF e seus riscos em face da lei de recuperação judicial

Elogiável a intervenção da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho, que busca indicar os caminhos para aplicação correta das novidades legislativas; aguarda-se, assim, a devida recepção de tais diretrizes pelos seus destinatários.

19/10/2022

A lei 14.193/21 (“Lei da SAF”) completou, recentemente, seu primeiro ano de vigência no Brasil. Buscando promover uma ampla reforma nas estruturas jurídicas dos times de futebol do país, pode-se dizer, pelo que se viu até aqui, que o novo subtipo societário vem demonstrando impacto positivo, obtendo a adesão de gigantes do futebol brasileiro, como o Cruzeiro, Vasco da Gama, Botafogo, Bahia, entre outros.

Esse breve comentário não pretende, nem de longe, atacar todos os desafios que a Lei da SAF tem encarado nesses últimos tempos. O objetivo aqui é levantar possíveis consequências de um dos pontos basilares para aplicabilidade da SAF no Brasil: a sua responsabilização solidária, pela justiça trabalhista ou mesmo cível, por obrigações do clube anteriores à sua constituição.

Simplificando: serão as SAFs consideradas solidariamente responsáveis – ou, como alguns propõem, integrantes do mesmo “grupo econômico” – aos clubes associativos que lhes constituíram? O debate consiste, basicamente, na interpretação que será dada – e consolidada por tribunais superiores – ao artigo 9º da Lei da SAF. Relembrando-o:

Art. 9º. A Sociedade Anônima do Futebol não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social, e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas conforme disposto no § 2º do art. 2º desta Lei, cujo pagamento aos credores se limitará à forma estabelecida no art. 10 desta Lei.

Até o momento, há decisões judiciais para ambos os lados (deferindo e indeferindo a responsabilização solidária e inclusão das SAFs no polo passivo das demandas), especialmente na Justiça do Trabalho. Os credores em geral, e não apenas os trabalhistas, têm constantemente tentado atingir o patrimônio das SAFs, sob a justificativa de que, como seu crédito estaria relacionado “às atividades específicas do seu objeto social”, a SAF deveria ser incluída no polo passivo das cobranças e, portanto, considerada devedora solidária (ou coobrigada) do clube associativo.

Essa conclusão, em nosso entender, se dá por uma análise partida (e, assim, distorcida) do regramento disposto na Lei.

Há, inegavelmente, a regra geral de que a SAF não responde pelas obrigações do clube anteriores ou posteriores à data de sua constituição, com a seguinte exceção: obrigações que lhes foram expressamente transferidas, desde que relacionadas ao seu objeto social1. Ou seja, o estar relacionado ao “objeto social” é, na verdade, um dos requisitos para que a responsabilização da SAF seja possível. Deve-se ter em mente, portanto, que a exceção legal, vista por uma interpretação sistemática da norma, exige, cumulativamente, que a obrigação (i) tenha sido expressamente transferida à SAF e (ii) seja relacionada às atividades específicas do objeto social dela.

Apesar disso, as discussões tidas nas primeiras instâncias, como dito, geraram opiniões divergentes. Há quem se negue a reconhecer que responsabilizar a SAF quanto às dívidas antigas dos clubes seria, em termos simples, desconsiderar todo o cuidado legislativo para se criar uma estrutura e ambientes jurídicos capazes de fornecer solução à caótica situação de insolvência dos clubes brasileiros, oportunizando-os um caminho de soerguimento por meio da profissionalização e atração de investimentos.

Caberá às instâncias superiores consolidar o entendimento a ser adotado pelos tribunais brasileiros, estabilizando a interpretação legal. Enquanto isso não acontece, é interessante ressaltar os possíveis impactos que uma utilização tortuosa da Lei da SAF pode provocar.

Partimos, então, da situação em que o clube originário, após ter constituído a SAF, teve deferido pedido de processamento da recuperação judicial, ou mesmo teve aprovado seu plano de recuperação, nos termos da lei 11.101/05 (Lei de Recuperação de Empresas e Falência – “LRE”) e do artigo 13, inciso II, da Lei da SAF. Em seguida, credores trabalhistas e cíveis começam a requisitar a inclusão da SAF no polo passivo e consequente responsabilização solidária dela, atingindo seu patrimônio para ter saldada a dívida contraída anteriormente com o clube.

Se deferido o processamento da recuperação, em regra, restarão suspensas as execuções ajuizadas contra o devedor principal, conforme o inciso II do artigo 6º da LRE. Se o plano de recuperação já tiver sido aprovado, opera-se a novação dos créditos a ele submetidos, e os pagamentos se darão de acordo com seus termos. Há, portanto, um “estancamento” das cobranças e posterior repactuação das dívidas do clube.

Mas, dentro desse contexto, como fica a SAF? A suspensão ou a novação dos créditos seriam suficientes para proteger o seu patrimônio caso a tese – em nosso entender equivocada – de responsabilização solidária2 das dívidas anteriores do clube seja acolhida? Aparentemente, não; e esse perigo precisa ser evidenciado.

A resposta está na interpretação do artigo 49, §1º da LRE:

Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

§ 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso.

A jurisprudência é firme ao entender que o termo “coobrigados” inclui os devedores solidários, possibilitando a cobrança desses (mesmo estando o devedor principal em recuperação judicial). A súmula 581 do STJ dispõe que: “A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória3.

Ou seja, é necessário alertar que uma interpretação imprópria da Lei da SAF poderá trazer consequências graves até mesmo para os casos em que o clube associativo tiver o “estancamento” das cobranças e repactuação de seus débitos, por meio da recuperação judicial.

Portanto, é possível imaginar, contraditoriamente, o seguinte cenário: o clube terá suas cobranças suspensas e, enquanto isso, a SAF (entidade sem qualquer relação com os fatos geradores das dívidas) terá seu patrimônio atingido por credores com quem jamais contratou.

Esse risco só confirma a necessidade de cautela dos aplicadores do direito, em especial juízes, desembargadores e ministros, quanto à correta utilização da Lei da SAF, compreendendo os seus objetivos e sistemática.

A Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho – TST –, em 19 de agosto de 2022, editou Provimento CGJT 01/22, que alterou os termos da Consolidação dos Provimentos da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho. Esse Provimento, além de trazer considerações essenciais ao tratamento dado ao Regime Centralizado de Execução previsto na Lei da SAF, incluiu o seguinte parágrafo em seu artigo 153:

§ 4º Nos termos da Lei nº 14.193/2021, não haverá responsabilidade jurídica da SAF em relação às obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a tiver constituído, sejam elas anteriores ou posteriores à data da sua constituição, salvo quanto às atividades específicas do seu objeto social, respondendo pelas obrigações a ela transferidas na forma do § 2º do art. 2º da aludida lei, hipótese em que os pagamentos observarão o disposto nos arts. 10 e 24 da referida lei.

Apesar de refletir o caput do artigo 9º da Lei da SAF, o Provimento parafraseia a regra; tornando-a talvez mais clara aos seus intérpretes. A paráfrase muda o trecho “e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas” por “respondendo pelas obrigações a ela transferidas”. O gerúndio (“respondendo”) evidencia a compreensão de que a exceção à regra geral de não responsabilização4 possui os requisitos expressos de que (i) a obrigação seja relacionada ao objeto social da SAF e (ii) tenha sido a ela transferida. Logo, a transferência da obrigação é condição sem a qual a excepcional responsabilização da SAF resta-se impossibilitada.

Elogiável, portanto, a intervenção da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho, que busca indicar os caminhos para aplicação correta das novidades legislativas; aguarda-se, assim, a devida recepção de tais diretrizes pelos seus destinatários.

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1 CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de. (Org.). Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol: Lei Nº 14.193/2021. São Paulo: Quartier Latin, 2021. P.124.

2 A discussão muitas vezes passa pela caracterização de grupo econômico entre o clube e a SAF, que culmina na responsabilização solidária. Focamos, aqui, em analisar a eventual responsabilidade solidária em si, visto que as implicações quanto à caracterização de grupo econômico poderão variar conforme a legislação que esteja em debate. Grupo econômico, na legislação trabalhista (art. 2º, §2º, da CLT) pode não ser grupo econômico para fins da consolidação substancial que trata a legislação falimentar (art. 69-J da LRE). São conceitos diferentes com consequências igualmente diferentes.

3 Cite-se também o Enunciado 43 da I Jornada de Direito Comercial realizada pelo CJF/STJ: “A suspensão das ações e execuções previstas no art. 6º da Lei nº 11.101/2005 não se estende aos coobrigados do devedor”.

4 Note-se que a exceção de responsabilização prevista no artigo 9º da Lei da SAF é diferente daquela indicada no artigo 24 – que, por sua vez, não se aplica à hipótese aqui imaginada (clube em recuperação judicial).

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.