Meio de campo

Modo de quitação das dívidas na lei 14.193/21 ("Lei da SAF") sob a perspectiva de clubes, investidores e credores

O advogado José Francisco C. Manssur, um dos coautores da Lei da SAF, trata dos modos de quitação de dívidas, previstos na própria Lei da SAF, sob a perspectiva de clubes, investidores e credores.

14/9/2022

Já tivemos a oportunidade de mencionar, em artigos anteriores, a gravidade da situação financeira dos clubes de futebol brasileiros, em geral, salvo honrosas exceções.

Há clubes de futebol do Brasil que devem aproximadamente R$ 1 bilhão, enquanto seguem trabalhando com défice e receitais anuais inferiores à metade de tal valor. Segundo a consultoria E&Y, em estudo publicado em maio de 2022, a dívida líquida dos 27 mais relevantes clubes de futebol do Brasil ultrapassa R$ 10 bilhões. As receitas desses mesmos clubes atingem R$ 7,5 bilhões1.

Diante de tal cenário, poderia o legislador simplesmente não abordar o tema, deixando de prever, na Lei da SAF, alternativas para a solução das dívidas de clubes em geral, mesmo sendo elas anteriores à vigência da Lei, por conseguinte, à própria constituição da Sociedade Anônima do Futebol?

O tempo mostrou que a resposta à pergunta acima é um sonoro "não".

E, nesse sentido, há que se fazer Justiça ao trabalho importante do Senador Carlos Portinho, enquanto relator do Projeto de Lei 5.516/2019 no Senado, uma vez que foi produto de sua relatoria a inserção no texto original de artigos relacionados aos modos de quitação das dívidas dos clubes.

Também é de rigor ponderar o quão são injustos e absolutamente equivocados, com todo respeito, alguns entendimentos que pretenderam, ainda nos primeiros momentos de vigência da Lei da SAF, classificar os modos de quitação das dívidas na Lei da SAF como benéficos aos devedores, em detrimento dos credores. 

Inegavelmente, sob a ótica dos clubes e pessoas jurídicas originais afundadas em dívidas e sofrendo a pressão das constantes penhoras de suas receitas, a possibilidade de reunir suas execuções perante um único juízo, apresentar um plano de pagamento que, enquanto estiver sendo cumprido, impedirá a realização de constrições pode ser enxergado como, efetivamente, uma “taboa de salvação” e, em alguns casos, um recurso vital à própria sobrevivência de tais entidades.

O mesmo pode-se dizer em relação àqueles que vierem requerer recuperação judicial, outro modo de quitação de dívidas previsto na Lei da SAF, que remete, com suas particularidades, aos mecanismos da lei 11.101/2005, já recepcionada pelo mundo empresarial e jurisprudência.

Sob o ponto de vista dos investidores interessados em adquirir ações das SAFs, a previsão expressa de que as dívidas anteriores à sua constituição e não relacionadas à prática do futebol profissional permanecem sob responsabilidade dos clubes ou pessoas jurídicas originais que constituíram a SAF – não se negando a responsabilidade das SAFs, mas em prazo e condições especiais que já foram comentadas aqui em artigos anteriores - é um instrumento de segurança jurídico-financeira fundamental para fundamentar a decisão pelo investimento.

Os inúmeros casos de investidores interessados em trazer dinheiro novo para o futebol brasileiro a partir da Lei da SAF demonstram, na prática, a veracidade de tal constatação.

Resta mencionar a situação dos credores, que, em alguns casos, tem sido mencionada como desfavorecidos pela Lei da SAF, ao nosso ver, inadequadamente.

Os modos de quitação das dívidas dos clubes previsto na Lei da SAF não foi concebido apenas para trazer uma situação de menor instabilidade diante da situação desesperadora de boa parte dos clubes endividados, implicando, em consequência, maior confiança e interesse de possíveis investidores. Ao contrário, o modo de quitação de dívidas tem a inequívoca finalidade de proporcionar aos credores uma perspectiva clara de recebimento de seus créditos.

Não se pode imaginar que, sendo credor de um clube-associação com dívida muito superior à receita – como em grande parte dos casos – um credor teria segurança em receber os valores que lhe são devidos. Muito mais provável seria a hipótese de insolvência civil, uma vez que a possibilidade de recuperação judicial das associações esportivas é construção jurisprudencial recente, também incorporada como modo de quitação das dívidas à Lei da SAF.

Por isso, causa alguma estranheza, após mais de um ano de aprovação da Lei da SAF, ainda presenciarmos alguns pronunciamentos públicos formulados por brilhantes e combativos colegas que, na condição de advogados de credores de clubes de futebol – condição que o subscritor da presente também ostenta – ao pretenderem alegar que os modos de quitação das dívidas previsto na Lei da SAF "prejudicariam direitos dos credores".

A adoção do Regime Centralizado de Execuções, um dos modos de quitação das dívidas previsto na Lei da SAF, traz a perspectiva real de recebimento observados critérios objetivos e justos para pagamento de TODOS os credores, sem distinção ou privilégio em favor daqueles com maiores possibilidade materiais para realizarem constrições sobre as receitas dos clubes ou acesso aos seus dirigentes para realização de acordos com alto grau de subjetividade.

Isso porque, a adesão ao Regime Centralizado de Execuções implica a imposição de um prazo para pagamento integral das dívidas dos clubes, que será de 6 anos e, no caso de pagamento mínimo de 60% das dívidas, podendo ser prorrogável por mais 4 anos, a partir do qual, com o não pagamento das dívidas, a SAF ficará sujeita a ser subsidiariamente responsabilizada pelos pagamentos.

Como forma de contribuir para o cumprimento do prazo acima, a Lei da SAF também prevê a destinação de 20% das receitas correntes mensais auferidas pela SAF ao clube que a constituiu, ou destinação de 50% dos dividendos, juros sobre capital próprio ou outra remuneração recebida pelo clube na condição de acionista da SAF para pagamento das dívidas.

Ademais, a Lei da SAF traz um rol de credores preferenciais e ordem de credores que tira da subjetividade ou da capacidade econômica do credor – como já mencionado acima – a possibilidade de recebimento antes de todo um rol de pessoas com igual direito ao recebimento e, muitas vezes, maior urgência e necessidade.

Também nas hipóteses de recuperação judicial, os critérios de justiça e sensibilidade social no estabelecimento da ordem de recebimentos também estão presentes, até porque já consolidados na Lei de Recuperações e Falência em vigor desde 2005.

Por isso, na análise dos modos de quitação de dívidas previsto na Lei da SAF, o mais justo seria saudar o acerto na sua introdução ao texto legal e reconhecer que tem algumas qualidades fundamentais, sendo VITAIS para os devedores, SEGUROS para os investidores e JUSTOS em relação a toda classe de credores.

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1 Disponível aqui.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.