Meio de campo

E lá vem mais uma tentativa de golpe no São Paulo Futebol Clube. Resistir é preciso

O cartolismo teve, em momentos não tão distantes, mais do que a aceitação da sociedade: era, de algum modo, apreciado e folclorizado.

31/8/2022

"(...) o Golpe de Estado é um ato realizado por órgãos do próprio Estado"1

O cartolismo teve, em momentos não tão distantes, mais do que a aceitação da sociedade: era, de algum modo, apreciado e folclorizado. Houve, e ainda há, é verdade, níveis e estratos dentro dessa classe, provenientes de distintas origens.

Um exemplo, eternizado em série disponível na plataforma globoplay, é o de Castor de Andrade: bicheiro declarado, que desfilava em altas rodas (inclusive intelectuais e artísticas) com a mesma desenvoltura que pegava em arma para correr atrás de árbitro de futebol – dentre outras práticas que, hoje, são corretamente tidas como inaceitáveis (ou criminosas).

Outro, também originado em clube carioca, foi Eurico Miranda. Suas estórias de mandos e desmandos são conhecidas em todos os cantos: desde a tentativa de agressão à economista Elena Landau ao suposto assalto que sofreu após uma partida do seu time, o Vasco da Gama, em que lhe surrupiaram a renda de bilheteria, por ele transportada em seu veículo.  

O Estado de São Paulo também produziu os seus.

O São Paulo Futebol Clube (SPFC), objeto deste texto, maior clube da história brasileira sob o modelo associativo – título que se integra às suas glórias do passado –, exemplo de todos e para todos, ostentou, durante anos, Juvenal Juvêncio, que tinha um perfil distinto daqueles indicados acima.

Seu fetiche, acho eu, era o poder. Mais, talvez: a manipulação do poder.

E foi assim que, em 2011, ele deu início ao movimento que mudaria a história de time tão vitorioso: um golpe, interno, para, mediante manipulação das estruturas institucionais, modificar as regras do jogo, em seu benefício, e ganhar mais um mandato para comandar o clube.

Ali se rompeu o compromisso, ou pacto moral, ético e político que sustentava a instituição.

Formou-se, então, uma tropa de choque que defendia, com argumentos pseudo-jurídicos, o que era (e é) indefensável – e que o judiciário refutaria, com efeito, muitos anos depois.

Juvenal Juvêncio, em resumo, era um déspota esclarecido, temido pelos opositores e também pelos aliados, que, ao mesmo tempo, lhe reverenciavam.

Com o seu afastamento, antes do pesaroso passamento, grupos politiqueiros se formaram ou se arranjaram para cobrar a fatura do apoio ao golpe.

Infelizmente, esse tema já foi repisado, em diversas ocasiões, nesta coluna: de lá para cá, a estrutura interna apodreceu e os reflexos se projetam, ainda hoje, sobre o time e seu entorno.

Conquistas, recordes e glórias deram lugar a derrotas, estatísticas negativas e vergonha. Na conta sobram, ainda, os feitos do passado (sim, e com orgulho para todo torcedor), um patrimônio – sobretudo imobiliário – sucateado, e uma torcida cada vez mais fanática e apaixonada – que lota estádios e segura, há anos, com fios de nylon, o time na divisão principal.

Nesse ambiente desolador, a classe cartolarial não se acanha em demonstrar a falta de sintonia com o problema de que faz (e também é) parte.

Ano passado, por exemplo, em meio a uma das piores campanhas da história, enquanto o torcedor se desesperava com o risco de rebaixamento – algo, que aliás, tem sido mais próximo da realidade tricolor do que a conquista de título relevante –, tentou-se reproduzir, sem o carisma e a força de Juvenal Juvêncio, outro golpe estatutário, mediante a propositura de nova reforma do recém reformado estatuto, para autorizar mais um mandato ao atual presidente; mudando-se, portanto, a regra do jogo durante o próprio jogo, em benefício de quem, por tempo determinado, detinha de forma legitima o poder.

Lembre-se, pois muito importante: em 2016, por ocasião da mencionada reforma, trocou-se o mandato de dois anos, com direito a uma reeleição, por mandato único de três anos. Agora, pelo que se indica, pretende-se, com apoio do principal e único beneficiado, manter o prazo estendido e, sobre ele, autorizar uma renovação.

Portanto, menos de um ano após a maior derrota política de um grupo situacionista, ou seja, a rejeição da reforma de 2021, eis que ressurge, apoiada em discurso falacioso, a proposta rejeitada. Uma espécie de vingança contra os 20 milhões de são-paulinos.

Ela surge, com crueldade, em momento parecido ao do ano anterior: quando o time volta a flertar com a zona de rebaixamento, da qual se distancia por apenas 4 pontos; e se mantém vivo por conta da persistência e da resistência de sua torcida – e, verdade seja dita, de seu técnico, Rogério Ceni.

A partir de agora, a metralhadora girará, como método de convencimento dos associados, com disparos de promessas e realizações fantasiosas, forjadas às custas de um endividamento que se torna impagável ou viabilizadas pelo ingresso milagroso de recursos oriundos de transferências de jogadores negociados ao exterior (como Anthony).

O primeiro golpe, patrocinado por Juvenal Juvêncio em época de opulência e dominação, levou o clube à lona; o segundo, em período de penumbra, se efetivado, sacramentará o fim da história de grandeza – que não mudará com o eventual (e necessário, tanto para o sofrido e fiel torcedor, como, paradoxalmente, para os propósitos golpistas) título sul-americano, prêmio de consolação em mais um ano perdido.

Resistência, mais uma vez, é o que se espera do associado são-paulino. Pelo SPFC (e jamais pelos interesses de agrupamentos cartolariais).

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1 Dicionário de política / Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino; trad. Carmen C, Varriale et al.; coord. trad. João Ferreira; ver. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1.a ed., 1998. Vol. 1, p. 545.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.