Meio de campo

Sobre a SAF e o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social

A Lei da SAF, apesar da torcida contrária dos donos do poder cartolarial e do reacionarismo, dá sinais, cada vez mais vigorosos, de que está pegando.

24/8/2022

A Lei da SAF, apesar da torcida contrária dos donos do poder cartolarial e do reacionarismo, dá sinais, cada vez mais vigorosos, de que está pegando. Portanto, já é hora de tratar e de relembrar, aos agentes que integrarão o novo mercado, de um dos mais relevantes institutos que a compõem: o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE).

Antes, porém, propõe-se uma rápida recapitulação.

Em capítulo essencial para o desenvolvimento de sua narrativa, Brás Cubas, autor de suas próprias memórias póstumas, relata o delírio que o acometera – e que seria essencial para os eventos pessoais subsequentes, até o seu passamento.

Nessa aventura psicodramática, deparou-se com um grande vulto, em forma de mulher, apresentada como Natureza ou Pandora; mãe e inimiga. Ela o guia, ou melhor, o apresenta aos eventos humanos passados e ao seu próprio destino.

"Cada século trazia" – extrai-se da obra-prima – "a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro e o seu cortejo de sistemas, de ideias novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde"1.

A Lei da SAF é produto de um caminho semelhante: decorre, pois, e se viabiliza por conta das experiências legislativas pretéritas (bem ou mal-intencionadas, ingênuas ou maliciosas, corretas ou equivocadas, iluminadas ou sombrias, conjunturais ou pretensiosamente estruturais).

Assim, os erros e acertos promovidos desde a Constituição de 1988, viabilizadora dos adventos da Lei Zico, depois da Lei Pelé e, muitos anos depois, da Lei do Profut, contribuíram, é preciso reconhecer, para iluminação da sombra estrutural do futebol no Brasil.

A Lei Pelé, por exemplo, em sua origem, previa que todos os clubes se transformassem em, ou constituíssem uma empresa. Havia, ali, uma falha conceitual incorrigível, pois se partia da premissa de que um comando formal seria condição suficiente para se impor sobre o modelo cartolarial, existente desde o século retrasado.

Mesmo assim, não resistiu às forças reacionárias, que souberam turvar as perspectivas transformacionais, mediante a negociação de contrarreforma operada durante a vacatio da própria Lei Pelé, resultando no sepultamento da idealização do clube-empresa.

Eis que, mais de duas décadas depois, em 2021, surge a Lei da SAF: a primeira iniciativa, desde sempre, que pretende, a um só tempo, criar, organizar e regular um sistema com os propósitos de recuperar os times brasileiros e contribuir para o desenvolvimento econômico e social da Nação.

O objetivo principal consiste na criação de um ambiente regulado em que agentes econômicos, de um lado, e proprietários dos ativos futebolísticos – em geral, os clubes –, de outro, possam se encontrar e entabular negócios que repercutam nos planos educacionais, sociais e econômicos.  

Não é outra a finalidade do PDE, consistente em convênio obrigatório a ser celebrado pela SAF com instituição pública de ensino, para promover medidas em prol do desenvolvimento da educação, por meio do futebol, e do futebol, por meio da educação.

As medidas podem envolver, dentre outras iniciativas, (i) a reforma ou construção de escola pública, bem como a manutenção de quadra ou campo destinado à prática do futebol, (ii) a instituição de sistema de transporte dos alunos qualificados à participação no convênio, na hipótese de a quadra ou o campo não se localizar nas dependências da escola, (iii) a alimentação dos alunos durante os períodos de recreação futebolística e de treinamento, (iv) a capacitação de ex-jogadores profissionais de futebol, para ministrar e conduzir as atividades no âmbito do convênio, (v) a contratação de profissionais auxiliares, especialmente de preparadores físicos, nutricionistas e psicólogos, para acompanhamento das atividades no âmbito do convênio, e (vi) a aquisição de equipamentos, materiais e acessórios necessários à prática esportiva.

Originalmente, o Projeto de Lei instituidor da SAF previa a concessão de incentivo tributário para adoção do PDE, que não se impunha como obrigação. Ao cabo do trâmite legislativo, o Congresso Nacional seguiu outro caminho: tornou-o obrigatório, mas não fixou parâmetros de investimento. De modo que, em situação extrema, uma SAF com receita bilionária pode atender a lei ao empregar um punhado de reais em algum projeto com alguma daquelas finalidades.

Não se pretende, aqui, criticar a solução final; ao contrário. Essa é a prática comum nesse país, que enaltece o que poderia ter sido com a intenção de desacreditar o que se realizou e, assim, manter as mazelas estruturais intocadas. De algum modo, essa conduta justifica o fracasso do clube-empresa, proposto nas Lei Zico e Pelé.

Cabe, pois, às pessoas que acompanham o futebol, em especial à imprensa especializada, goste ou não do modelo instituído, a função de compreender e esclarecer, com isenção, os movimentos que estão sendo praticados. Para o bem do futebol, do torcedor e do país.

E, sobretudo, a função de lembrar que, dentro da Lei da SAF, existe um instrumento, pioneiro, que pode, ou ao menos pretende, servir para apoio à formação de crianças e jovens, que, atualmente, são exportados, com raras exceções, sem a devida formação e conhecimento para construírem carreiras sustentáveis. E cobrar a adoção de projetos condizentes com a realidade e a grandeza do time operado pela respectiva SAF.

É isso: pouco se fala da SAF e jamais se investiga o projeto interno de cada uma delas no âmbito do PDE. Aí está um tema que deveria constar da pauta permanente do jornalismo socialmente responsável.

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1 Assis, Machado de; Memórias póstumas de Brás Cubas – 1ª ed. – São Paulo: Penguim Classics Companhia das Letras, 2014, p. 55.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.