Meio de campo

Uma fotografia da situação do futebol no Brasil (e projeções a partir da experiência do Red Bull Bragantino)

Vive-se num país livre e democrático, em que qualquer cidadão, ainda mais um renomado jornalista e professor universitário, pode – e deve – expressar sua opinião.

18/8/2022

O jogo de futebol de domingo passado (14/8/22), realizado em pleno dia dos pais, entre São Paulo Futebol Clube (SPFC) e Red Bull Bragantino (Red Bull), representou, para muitos torcedores tricolores, uma espécie de revelação, motivadora de gritos irados, em redes sociais, contra o jornalista Flavio Prado, que vem afirmando, há tempo, que o time de Bragança – controlado por investidor transnacional – será maior (ou mais relevante do ponto esportivo) do que o tricampeão da Libertadores e do Mundo.

Vive-se num país livre e democrático, em que qualquer cidadão, ainda mais um renomado jornalista e professor universitário, pode – e deve – expressar sua opinião.

Mesmo que se tratasse de uma ideia eventualmente descabida – e em sua essência não é, sobretudo considerando a figuração de sua proposição, no exercício de sua função –, ele (Flavio Prado) teria e tem legitimidade para expressá-la e defendê-la; e o contraditório deveria se formar de maneira civilizada e construtiva.  

A mesma legitimidade que outra jornalista, Milly Lacombe, tem para afirmar, em sentido de certo modo inverso, que clubes de futebol, em especial o Corinthians, deveriam indicar para sua diretoria, em substituição ao sistema eletivo cartolarial, uma junta formada por negras e negros, mulheres, pessoas LGBTQIA+, trabalhadores e trabalhadoras (foi, pelo menos, o que entendi da leitura de seu artigo disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2022/08/14/corinthians-o-pior-ainda-esta-por-vir.htm).

Não se pretende, neste texto, subscrever uma ou outra opinião, ou apresentar uma posição contestatória em relação a qualquer uma delas. O propósito é menor: pretende-se, apenas, apresentar uma posição, a partir de uma imagem (ou fotografia) da situação atual do futebol, e cotejá-la com as perspectivas propiciadas pela Lei da SAF, em contraponto ao secular sistema associativo – e, assim, dialogar com o/a jornalista.

Parte-se do atual campeonato brasileiro, que revela um desvio padrão histórico, pela ausência de, pelo menos, quatro (ou mais) times dos mais tradicionais do país, que disputam, atualmente, a segunda divisão nacional, a exemplo de Cruzeiro, Vasco, Grêmio e Bahia.

Essa excepcionalidade não escapa ao resultado do final do primeiro turno da série A, conforme posições dos times que o integram: do primeiro colocado, o Palmeiras, ao décimo-primeiro, o Botafogo, todos são ou se tornaram grandes (incluindo o Athletico Paranaense e o mencionado Red Bull).

Nas posições inferiores, posicionam-se times que costumam, pelo histórico, lutar contra o descenso ou, quando situados na série B, duelam pela ascensão, invariavelmente transitória.

Com o resgate do que se chamava de normalidade, representativa do acesso de, pelo menos, quatro dos seis campeões nacionais que hoje disputam a segunda divisão (a exemplo dos times mencionados parágrafos acima), sobraria, em tese, apenas uma vaga para ser disputada, anualmente, pelos times considerados, neste momento, “menores” – pois outros quatro seriam, também em tese, preteridos e rebaixados.

Sob outro ângulo, mais realista, ao se analisar a potencialidade de times que não eram considerados da “elite”, como Fortaleza, Ceará, América-MG e Atlético Goianiense, talvez se possa supor que, se tiverem acesso a recursos e financiamentos para investimento na formação educacional e esportiva de jogadores, bem como no desenvolvimento da empresa futebolística, poderão se manter e protagonizar na divisão principal do campeonato nacional.

E, assim, empurrar os grandes, endividados e mal estruturados, para baixo, que passariam, então, a lutar pela permanência, no lugar da luta por classificação para campeonatos internacionais ou por títulos nacionais – lembre-se, a propósito, que o SPFC, nos últimos anos, passeou, com frequência, pela zona intermediária, mirando, com maior proximidade, o “Z4” do que a pretensão a título.

Ou seja: os rearranjos organizacionais que se confirmam, com a mudança de patamar de Athletico Paranaense e Red Bull Bragantino, além da potencialidade de outros times, indicam o início de uma nova era do futebol brasileiro e o fim da zona de conforto dos times maiorais.  

A tradição não deveria implicar a negação evolutiva, característica intrínseca da humanidade. Os times que souberem se aproveitar desta perspectiva realística, protagonizarão os próximos anos – ou décadas –, até que outros dominem as mesmas técnicas e se equiparem, com atraso, aos que partiram na frente – e isso não implica a negação da torcida, do torcedor ou da história; ao contrário.

Daí a conexão com a proposição do jornalista Flavio Prado (que coincide, em termos, com a visão do Presidente da Federação Paulista de Futebol, Reinaldo Carneiro Bastos, que afirmou, em evento promovido pelo Fórum Estadão, que o Red Bull integrava a lista dos cinco grandes de São Paulo): este time já tem estrutura, administração, recursos e confiabilidade que lhe permitem se manter, com alguma segurança e previsibilidade, entre os principais do país – em permanente disputa com o próprio SPFC, por exemplo.

Por outro lado, clubes tradicionais, endividadíssimos, como Cruzeiro, Vasco e Botafogo, que foram ao fundo do poço, lançaram mão dos instrumentos criados pela Lei da SAF, menos por opção, mais por necessidade, e, ao que tudo indica, colherão os frutos com alguma rapidez.

Não porque se socorreram de torcedores abnegados (ou mecenas) ou juntas de idealistas para reconduzi-los; mas, sim, porque, enfim, tiveram que aceitar a falência sistêmica do modelo associativo e impor profundas mudanças estruturais.  

Outros, ainda, como o mencionado SPFC, insistem na afirmação da tradição, respaldada em glórias do passado (e numa fábrica de criar notícias e sonhos), para produzir uma narrativa que enfrenta enorme dificuldade para se sustentar – e que não desmorona, no caso desse time, apenas por conta de sua torcida.

Assim emerge a dificuldade de enfrentamento da realidade e a consequente adoção de subterfúgios denegatórios. Uns partem para violência argumentativa, expressiva do patrulhamento ideológico que assola o país; outros para soluções utópicas, inviáveis teórica e praticamente; e, ainda, outros para a criação de narrativas fantasiosas, sustentadas pela figura de presidentes carismáticos.

A fusão dessas posições ainda prepondera no futebol brasileiro e justifica o atual estado de coisas, que, em uma espécie de ensaio sobre a cegueira, insiste em negar a realidade e acaba por sustentar a irrealidade – ou a utopia. Não fosse o bastante, essa conjuntura ainda incentiva a promoção de ataques às novidades, derivadas de processos evolutivos, como meio de negação dos atrasos representativos de suas visões ou paixões.

E, assim, somente assim, justifica-se a ira derivada da afirmação, representativa de determinada opinião pessoal, de que o Red Bull será mais relevante do que o SPFC e muitos outros clubes tradicionais, se estes se mantiverem no atual estado de letargia estrutural em que se encontram.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.