A lei 14.193, de 6 de agosto de 2021, também conhecida como Lei da SAF ou Lei Rodrigo Pacheco, completou, semana passada, um ano. Haveria, assim, motivo para comemoração ou ainda é cedo para compreender a relevância da iniciativa?
Antes do enfrentamento da questão, resgata-se, aqui, a experiência de outra iniciativa que transformou o mercado e a perspectiva de captação de recursos e de financiamento de companhias brasileiras.
No ano 2000, a Bolsa de Valores de São Paulo lançou o Novo Mercado, consistente em segmentos diferenciados de listagem de ações, que previam, de modo resumido, (i) a adoção de níveis mais elevados de governança, (ii) a imposição de técnicas e instrumentos informacionais resultantes em maior transparência e (iii) o reconhecimento de determinados direitos aos acionistas, em especial minoritários, não previstos na legislação que então vigorava.
Apostava-se que a medida atrairia interesse de investidores e financiadores locais e internacionais, que teriam meios adequados para avaliar ativos e quantificar ou projetar riscos e retornos.
Sob a ótica das companhias e dos acionistas, também se apostava que a redução da assimetria informacional e a construção do novo arquétipo de governação – com deslocamento de poder ao conselho de administração, órgão essencialmente colegiado, e a abertura de espaços para conselheiros independentes (sem ligação com acionistas controladores) – contribuiria para atração de novos emissores, valorização das cotações de ações e aumento de liquidez.
A adesão ao Novo Mercado não era, como ainda não é, impositiva. Aliás, nem mesmo decorre de lei.
Após o seu advento, conviveu-se com um (longo) período de marasmo, sem aderência de qualquer companhia, motivando cogitações públicas e doutrinárias, no sentido de que a iniciativa sugerira uma intervenção artificial, desconectada da realidade local. Mas, em 2002, a situação começou a se reverter com a decisão da Companhia de Concessões Rodoviárias de aderir, de modo pioneiro, ao modelo.
Atualmente, os três principais níveis de listagem (Nível 1, Nível 2 e Novo Mercado) contam com cerca de 250 companhias e se pode afirmar que não há caso de abertura de capital que se faça fora deles (ou seja, no ambiente convencional).
Portanto, a partir de uma iniciativa autorregulatória contribuiu-se para transformação do ambiente mercadológico brasileiro e para afirmação do comprometimento – nem sempre respeitado - com princípios mais elevados de governo e de transparência.
Retomando-se o mote deste texto, a Lei da SAF, em apenas um ano, motivou a constituição de, pelo menos, 26 sociedades anônimas do futebol, indicadas abaixo:
Mais importante do que isso, revelou-se a via de salvação – ainda em construção e que enfrentará, sem a menor dúvida, uma série de obstáculos - de grandes e tradicionais clubes, como Cruzeiro, Vasco da Gama e Botafogo.
Também parece que a Lei se apresentará como o caminho para reorganização de outros times populares, tais quais Atlético Mineiro e Bahia. Ou para confirmação de um clube que se revela cada vez maior e protagonista, estrutural e esportivamente: o Athletico Paranaense.
Para além desses eventos, e para que não se diga que a Lei da SAF surgiu para solucionar os problemas dos grandes clubes - o que não é verdade -, nela times regionais e de menor porte também procuram caminhos para enfrentar crises que, sem ela, seriam irreversíveis.
Desse estado de coisas se extrai que, apesar de a hermética casta cartolarial jamais ter se organizado ou reclamado uma solução sistêmica para os times – e torcedores – que, estatutariamente, representa – pois se protege em busca de interesses pessoais ou grupais -, havia uma lacuna legislativa que oferecesse alguma luz para o redirecionamento dos modelos de propriedade e de governação do futebol brasileiro.
Mesmo com o seu surgimento, o principal obstáculo para que o esporte se liberte de maneira sistêmica, após mais de 140 anos de encastelamento, ainda se concentra nessa mesma estrutura de interesses que implodiu a atividade e a converteu em um negócio de exportação de jovens (ou de pé-de-obra).
Não se trata - e aqui não se defende, ao contrário - de alienar, a qualquer preço e em qualquer circunstância, a riqueza futebolística nacional, distribuída por cada time, ao primeiro interessado, nacional ou estrangeiro, que se apresente como Messias.
Aliás, nem se trata de defender a implementação de projetos de SAF se não houver, antes, em cada clube interessado, uma adequada planificação, que projete onde se está, o que se quer ser, e como e com quem atingirão os objetivos pretendidos.
Mas se trata, sim, de reconhecer que o poder político interno de não poucos clubes, de grandes a pequenos, ainda se sustenta nas falácias que construíram o sucateamento da indústria e na formação de um estoque de dívida que supera a dezena de bilhões.
Apesar das quase três dezenas de sociedades anônimas existentes no país – número nada desprezível, para o primeiro ano, considerando-se que a CBF conta com aproximadamente 775 clubes profissionais nela registrados –, o principal gargalo para que o novo mercado do futebol siga, respeitadas todas as diferenças, a benfazeja trilha que o Novo Mercado, criado há décadas pela então Bovespa, vem trilhando, ainda reside e resiste, lá, no cartolismo (que nada mais é do que uma faceta folclorizada do coronelismo). Mas que, como tal, não deveria ter espaço na sociedade contemporânea.