O jornalista Juca Kfouri escreveu e publicou, em seu blog, carta aberta ao presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco, autor da lei 14.193/2021, que instituiu no Brasil a Sociedade Anônima do Futebol ("SAF") e tratou dos instrumentos necessários à formação do novo mercado do futebol.
A Carta tem como propósito externar seu inconformismo com a postura do torcedor brasileiro em geral, que desrespeita, em espetáculos futebolísticos, a liturgia de execução do Hino Nacional. Ele afirma, a propósito, que "não apenas ninguém canta, como, ao contrário, nem sequer se faz silêncio em respeito ao Hino".
A prática de apresentação de um dos Símbolos Nacionais (formados pelo Hino, pela Bandeira, pelo Selo e pelo Brasão) não decorre de voluntarismo das entidades administradoras do futebol, como se pagassem tributo (ou reverência) pelo direito de explorar a atividade – e, no caso da CBF, organizadora do campeonato brasileiro, da copa do Brasil e da seleção, pela apropriação de cores, bandeira, representação e do próprio hino.
A ordem veio do Congresso Nacional, por intermédio da lei 13.413, de 29 de dezembro de 2016 ("lei 13.413"), que reformou a lei 5.700, de 1º de setembro de 1971 (a qual dispõe sobre a forma e a apresentação dos Símbolos Nacionais), para determinar justamente que o Hino fosse executado na abertura de "competições esportivas organizadas pelas entidades integrantes do Sistema Nacional do Desporto".
O tema não é óbvio – e, aqui, não se aborda, ainda, a motivação da Carta Aberta, mas o propósito da lei.
O futebol em geral e, em especial, a seleção brasileira, simbolizavam, até pouco tempo atrás – e mais do que qualquer Símbolo, o território ou a moeda -, a ligação entre os diversos Brasis. A relação que o torcedor (ou o povo) mantinha com aquelas expressões esportivas, que se incorporaram à cultura e ao patrimônio imaterial locais, justificava, pelo menos por alguns momentos, o abandono de diferenças, por mais inconciliáveis que elas fossem.
Nesse sentido, aliás, o cineasta Cao Hamburger mostra, em seu belo "O ano em que meus pais saíram de férias", o dilema de perseguidos políticos que, a despeito de suas convicções, torciam pela seleção de 1970, mesmo cientes de que o sucesso esportivo seria utilizado para afirmar o regime ditatorial que combatiam.
Deixando a política, por ora, de lado, fato é que, com o tempo, tal sentimento foi se desmaterializando até que, nos dias de hoje, o torcedor chega a ter raiva da seleção e de seus principais jogadores.
A causa, olhando para trás, parece evidente: o sistema construído a partir da Constituição de 1988 propiciou o encastelamento da classe cartolarial, nos clubes e nas entidades de administração, de modo que cada feudo se organizava em seu próprio benefício, sem preocupação com o coletivo – e com a sustentabilidade dos times e do sistema futebolístico.
O individualismo exacerbado passou a opor, no plano maior, clubes às federações e confederação, que se tornaram, não sem razão, espécies de vilãs nacionais. Daí, para se iniciar o processo de identificação dos Símbolos com a arrogância e os desmandos centrais – que levaram alguns cartolas à prisão e outros a se refugiarem em seu país –, foi um pulo.
Devo reconhecer, em um dolorido exercício de autocrítica, que, a partir do início de 1990, quando reconhecia na CBF a inimiga do meu time, passei a nutrir esse mesmo sentimento, que foi crescendo com o tempo, até o ponto de ... cantar o Hino Tricolor sobre a execução ordenada por lei.
Percebo, hoje, que o alvo estava errado. A indignação, que deveria se dirigir às reminiscências de um período anterior à Lei Áurea – o cartolismo como via de dominação da atividade esportivo-econômica –, mirava na imagem que o futebol (involuntariamente) outrora esboçava cimentar: a projeção de Nação.
Esse sentimento, infelizmente, ainda é compartilhado por muita gente, talvez a maioria, que, de maneira equivocada, não apenas comete o mesmo ato nos estádios, como, fora dele, rejeita as cores da Bandeira por associá-las aos usurpadores; e que passou a ter vergonha de ser brasileiro ao invés de se orgulhar de lutar para resgatar suas origens.
A lei 13.413 poderia, assim, ter servido como uma tentativa de reconstrução de uma ponte com a representatividade, com a emoção de ver (correndo-se, aqui, o risco do ufanismo), sobre o gramado, alguns brasileiros que romperam o apartheid econômico e se infiltraram no imaginário das classes mais abastadas.
Talvez por isso que ninguém, ou quase ninguém, realmente dê bola para que os reflexos da Lei se limitem a uma execução protocolar, abafada pelo desrespeito de torcedores que acreditam vociferar um ideal ou uma moral superior.
Por isso que, no lugar da revogação, que, em minha modesta opinião, apenas intensificaria o divisionismo – como querem os donos das estruturas clubísticas -, o melhor caminho talvez fosse, a exemplo do que se promove nos Estados Unidos da América, o enaltecimento da simbologia do Hino, da Bandeira e do próprio Futebol, com aparatos, se não similares aos que se produzem nos eventos daquele país – porque não se trata de copiar –, ao menos concatenados com as realidades locais.
E assim, quem sabe, contribuir-se-ia para a construção de um movimento de tolerância e respeito às diferenças, que podem – e devem – conviver sob um mesmo regime democrático.