Meio de campo

A tirania do cartola de bem e a formação do clube-zumbi

Na coluna de hoje, o advogado Rodrigo R. Monteiro de Castro discorre sobre a tirania do cartola “de bem” e da formação do clube-zumbi.

15/6/2022

O professor e economista Luiz Gonzaga Belluzo publicou em sua coluna no Valor, veiculada na edição de 7 de junho, texto intitulado "a tirania dos homens de bem", em que ensina, com o acerto que lhe é comum, que desde a Era do Iluminismo e da Revolução Francesa não se admite aos cidadãos invocar a própria honestidade ou a boa consciência para contestar a universalidade da lei ou os procedimentos legais.

Mais do que isso: ele afirma que "seria uma insanidade, no mundo moderno, substituir os preceitos e a força da lei escrita pela presunção de bondade intrínseca de um grupo social ou de um agrupamento de indivíduos".

E arremata: "as reflexões mais profundas sobre a ética da modernidade repeliram sempre com energia as tentativas conservadoras de desmoralizar o formalismo da lei em nome da espontaneidade, dos bons sentimentos, da palavra de honra".

Tais considerações se encaixam e explicam a situação e o momento de alguns (ou de muitos) clubes e do futebol brasileiro, que permanecem sob o jugo, há mais de 140 anos, de uma classe cartolarial que, quando não se afirma pela força, se preserva pela mesma narrativa despótica característica da tirania contemporânea.

No plano do futebol, ambiente em que intelectuais se transmutam em ogros, e ogros em intelectuais, e todos se reencontram com suas personalidades ostensivas quando o tema se esvai, a sociedade e até rigorosos observadores se acostumaram a aceitar o inaceitável, e se tornaram condescendentes com os déspotas, que, não raro, passaram a ser tratados como figuras folclóricas, apesar do descaso (que não faziam questão de simular, aliás) com normas estatutárias e com a lei posta.

Porém, a hegemonia dos déspotas-folclóricos e os tempos áureos de alguns clubes se dissiparam com o passamento da maioria daquelas figuras, e com o consequente enfraquecimento político dos poucos pares restantes, que acabaram sendo substituídos por substratos de mesma natureza, mas que se apresentavam (e se apresentam) com discursos moralizantes e pautados na boa intenção.

A combinação das características passadas e atuais propiciou a formação dos "clubes-zumbis": expressão cunhada a partir de série disponível na Netflix, denominada Walking Dead (que, por sua vez, foi adaptada de quadrinhos com o mesmo nome).

A série se situa em um período pós-catastrófico, ou apolítico, notabilizado pela propagação de zumbis, ou mortos-vivos, que se alimentam dos poucos seres humanos sobreviventes, os quais tentam se proteger em pequenos grupos de resistência, ou de sobrevivência, que convivem em ambiente anárquico – e selvagem –, sem leis gerais e abstratas ou poder central.

Os sobreviventes, assim, reduzem suas ações às mais primitivas formas preservativas: a busca pela alimentação e a autodefesa, o que implica uma horrorosa e infindável sucessão de “assassinatos” de zumbis e de seres humanos, que, paradoxalmente, são vítimas dos mesmos atos instintivos.

O clube-zumbi, que se identifica, com facilidade, pela sua situação patrimonial e financeira deteriorada pelos anos de cartolismo, inclusive de cartolas-folclóricos, se faz representar, com alguma frequência nos tempos atuais, por gente que aposta num discurso empresarial ético-moralizante, para enfretamento de uma crise que, como ocorre em Walking Dead, somente se resolverá de modo sistêmico e organizado.

Aí se encontra, então, a conexão com o texto de Luiz Gonzaga Belluzo: o cartola contemporâneo invoca as boas intenções, as boas consciências e, eventualmente, a própria honestidade – algo que nem sempre é possível afirmar com o vigor das demais – para se diferenciar dos antecessores e para se sobrepor ao passado, mesmo sendo ele fruto e parte integrante da estrutura à qual pretende, discursivamente, se distanciar.

Não apenas isso: aposta-se na publicização dos atributos pessoais, que constituiriam condição suficiente para o resgate de um passado quase imemorial, resistente nas lembranças e nos registros históricos.

Ocorre que, conforme se extrai do texto de Luiz Gonzaga Belluzo, "no nosso Brasil [e também no futebol] as transições sempre acontecem para impedir que o passado fique no passado. A memória, enquanto reflexão sobre o que passou, vai se apagando depressa, na mesma velocidade com que se rearmam as forças e os interesses que comandaram os grandes desastres e desatinos".

Foi assim com a Lei Zico (naquilo que oferecia de transformador), com a Lei Pelé (sobretudo no tocante à criação e à mutilação da ideia do clube-empresa), com a Lei do Profut (que serve para postergamento de obrigações), e assim seria com a Lei da SAF, se a crise sistêmica não tivesse abalado alguns dos times mais tradicionais, que se encontravam tecnicamente insolventes – e que lhe deram a eficácia que não se imaginava possível.

Mas o clube-zumbi, que o Estado ajuda a preservar por diversos motivos e diversas vias (isenções, imunidades, parcelamentos etc.), ao invés de buscar uma solução estrutural, ainda insiste em fabricar, com base nas glórias do passado, soluções milagrosas, empacotadas por cartolas “de bem”, quando não são eles próprios – os cartolas - a solução.

Daí a falta de comprometimento com resultados, com soluções, com os agentes que dependem dos times, com a torcida, com a sociedade e com o país. Daí, também, a atual situação (quase que pós-apocalíptica, como em Walking Dead) do futebol brasileiro. 

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.