Meio de campo

Breves reflexões sobre a responsabilidade da SAF por obrigações do clube e o caso do Cruzeiro

O advogado Rodrigo R. Monteiro de Castro trata do sistema de responsabilização entre clube e SAF, previsto na Lei da SAF, e aborda o caso do Cruzeiro.

1/6/2022

Toda nova lei passa por um processo (natural e necessário) de compreensão e acomodação, promovido pelos operadores do direito, tanto em âmbito acadêmico como judiciário.

Enquanto não são produzidas decisões judiciais em primeira e segunda instâncias, aptas a pacificar entendimentos ou, na pior das hipóteses, a fixar divergências (que permitam ao menos a estimação do risco jurídico e a quantificação do impacto econômico), cabe ao advogado, ao jurista e ao doutrinador, conforme o caso, contribuir, dentro de suas atuações, com a adequada formação da compreensão da própria lei e de institutos nela previstos.

Pois bem: em pouco tempo a Lei da SAF encerrará seu primeiro ano de vigência. Desde a sua promulgação, notou-se uma certa perplexidade, sobretudo pela ambição nela contida de revigorar as bases de uma atividade esportivo-econômica que vinha – e ainda vem – sendo jogada na lata do lixo pela casta cartolarial brasileira.

Neste sentido, a lei de autoria do Senador da República (e Presidente do Congresso Nacional), Rodrigo Pacheco (PSD/MG), presenteou o país com uma perspectiva histórica – e que, pelos eventos posteriores, poderá se afirmar como uma das mais relevantes atuações legislativas contemporâneas.

Aquela perplexidade foi, na sequência, substituída pela empolgação, por ocasião do anúncio da entrada de Ronaldo Nazário em projeto que envolvia – e envolve – o Cruzeiro. Na esteira da novidade, foram divulgados negócios com outros dois tradicionais clubes, Botafogo e Vasco, que fizeram com que não apenas agentes locais, mas também internacionais, percebessem que algo grandioso – nos planos esportivo, econômico e social – estava por vir. E pode mesmo estar.

Essas oscilações na percepção do que se está construindo sempre foram – e jamais deixarão de ser – permeadas por manifestações proferidas, de acordo com as sábias palavras de José Francisco C. Manssur e Carlos Eduardo Ambiel (em texto publicado neste espaço), por gente interessada em "fomentar discursos apocalípticos", que se propõe “a fazer o papel de coveiro da SAF, a cada situação natural que imponha novos desafios ao indispensável processo de evolução do futebol brasileiro”.

O motivo da resignação da dupla de advogados (e doutrinadores) do direito esportivo envolvia a reação de grupos de interesse a uma decisão judicial de primeira instância, de natureza trabalhista, em desfavor da SAF constituída pelo Cruzeiro ("Cruzeiro SAF"), que atendia determinado pleito de reconhecimento de responsabilidade do próprio Cruzeiro SAF por obrigação do clube, a despeito de a Lei da SAF dispor de modo diverso.

Com argumentos precisos, os dois demonstraram, em texto que merece ser lido e relido, os equívocos da decisão.

Ocorre que, posteriormente à publicação do mencionado texto, adveio nova decisão, também envolvendo o Cruzeiro e o Cruzeiro SAF, em que outro magistrado de primeira instância decidiu de modo contrário a semelhante postulação – beneficiando, assim, nessa oportunidade, o Cruzeiro SAF.

Importante: afirmou-se em ambos os casos a existência de um sistema atributivo de responsabilidade, construído pela Lei da SAF, mas, na segunda decisão, além de se reconhecer a natureza especial desta lei, a se sobrepor a diplomas genéricos ou anteriores, também se reconheceu a legalidade do sistema de "modulação" arquitetado pelo legislador.

Fato é que, mesmo com o advento dessa decisão, que redireciona o enfrentamento de tema tão relevante no âmbito da Lei da SAF, ainda se conviverá com inevitável instabilidade decisória, ora para um lado, ora para outro, até que se comece a operar certa pacificação no âmbito de Tribunais Superiores. Fenômeno esse, aliás, comum a tudo aquilo que é novo em matéria legislativa.

Daí a importância de se abordar um aspecto essencial da estrutura interna da Lei da SAF, que poderá contribuir para o afastamento de equívocos interpretativos, bem como para a formação de uma correta jurisprudência: refiro-me à forma de constituição da SAF e às suas (distintas) consequências.

O texto original do PL 5.516/19 (“PL”), de autoria do Senador Rodrigo Pacheco, previa quatro hipóteses constitutivas da SAF: (i) transformação de clube em SAF; (ii) transferência de patrimônio do clube para SAF (ou seja, via drop down); (iii) transformação de empresa em SAF; e (iv) mediante iniciativa originária.

Após o devido processo legislativo, o Senado Federal aprovou, por unanimidade, o Substitutivo do Senador Carlos Portinho (PL/RJ), que mantinha a estrutura e praticamente todos os institutos do PL, e inovava em relação a determinados aspectos. Uma das inovações se refere à substituição do conteúdo do supramencionado item (ii), pela seguinte redação: "cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol".

Essa mudança poderia sugerir a proibição do drop down (operação alcunhada por alguns doutrinadores de cisão imprópria) como via de criação da SAF. Mas não foi isso que se promoveu. Com efeito, o art. 3º da Lei da SAF contempla, fora da lista expressa do art. 2º, uma quarta via constitutiva, representativa, justamente, daquela modalidade que se anunciava na redação original do PL, como se extrai da seguinte redação:  

"O clube ou pessoa jurídica original poderá integralizar a sua parcela ao capital social na Sociedade Anônima do Futebol por meio da transferência à companhia de seus ativos, tais como, mas não exclusivamente, nome, marca, dísticos, símbolos, propriedades, patrimônio, ativos imobilizados e mobilizados, inclusive registros, licenças, direitos desportivos sobre atletas e sua repercussão econômica".

Deve-se reconhecer, portanto, que a Lei da SAF autoriza, de modo expresso, quatro formas constitutivas (três listadas no art. 2º e uma contemplada no art. 3º); autorização essa, aliás, que foi reconhecida e manifestada na Instrução Normativa DREI/ME nº 112, de 20 de janeiro de 2022.

Ao se admitir que a SAF pode ser constituída por cisão (art. 2º, incido II) ou drop down (art. 3º), assume-se, ao mesmo tempo, que, pela diversidade, o regime jurídico que incidirá sobre a operação cambiará em função do caminho adotado.

É na Lei das Sociedades por Ações (lei 6.404/1976) que se encontra o conceito de cisão:

"Art. 229. A cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão".

Para que se opere essa modalidade de constituição da SAF, o clube deverá observar a ritualística prevista na Lei das Sociedades por Ações, que pressupõe: (i) segregação patrimonial; (ii) redução de patrimônio da entidade cindida; (iii) versão do acervo cindido para ao menos uma outra entidade, existente ou criada para esse fim; (iv) sucessão da cindida pela receptora (variando a extensão da sucessão de acordo com as características da operação); e (v) possibilidade de responsabilidade solidária entre cindida e receptora, a depender do regramento dado no ato de cisão e da preservação ou não da cindida pós-cisão.  

Ora, é justamente por esses motivos, evidenciadores da fragilização da perspectiva de satisfação de eventuais créditos, que se prevê um sistema protetivo de credores, contido no art. 233 da mesma lei, a evitar que a operação se realize para prejudicar terceiros.

Ocorre, porém, que o efeito segregacionista – e, portanto, redutor do patrimônio garantidor de credores – não se opera no drop down (ou na cisão imprópria), catalogado no art. 3º da Lei da SAF.

Nessa hipótese, o patrimônio do clube não será cindido e transferido para nova entidade, em relação à qual o clube deixará de ter vinculação societária (e patrimonial); ao contrário: trata-se, isto sim, de uma transferência "para baixo", em que, na partida, todo o patrimônio transferido pelo clube deverá ingressar na SAF, sob a forma capital, subscrito exatamente pelo clube – e que comporá o seu patrimônio.

Portanto: não existe separação e redução patrimonial no plano do clube, mas uma mutação contábil, que passará a expressar, no lugar de vários elementos do ativo e eventualmente do passivo (formadores do patrimônio "dropado"), uma participação em outra sociedade: na SAF. Ou seja: troca-se a titularidade direta pela titularidade indireta, via participação societária na SAF, dos ativos do futebol. Não ocorre, portanto, esvaziamento, mas substituição patrimonial.

Os credores, no caso, passam a ter, ao invés de ativos distribuídos em várias outras categorias contábeis, as ações de uma companhia investida pelo clube para satisfazer seus direitos.

No caso de drop down para constituição de SAF, a proteção é, por determinação legal, mais ampla do que a que se oferece a um credor de uma companhia ordinária que verte parcela de seu patrimônio para formação de outra companhia, porque, somente no caso de SAF, determina-se, como exemplos, que (i) um percentual dos dividendos recebidos pelo clube seja obrigatoriamente revertido para satisfação de obrigações anteriores e (ii) ela, SAF, seja subsidiariamente responsável caso as obrigações não se liquidem em certas circunstâncias e em certo tempo.

Daí as falhas verificadas em interpretações ou decisões reconhecedoras da cisão de clube, quando na verdade se opera um drop down, que não funciona como operação redutora do patrimônio de sociedade empresária ou de clube que o promove.  

Para concluir, é importante que, na constituição da SAF, não se lancem palavras ou se façam remissões desnecessárias, capazes de gerar confusões interpretativas, onde elas não existem, como as que se verificam, aparentemente, no caso do Cruzeiro (e que talvez tenham motivado o encaminhamento da decisão judicial atribuidora da responsabilidade da SAF por obrigações do clube).

Aliás, mais do que isso: ao se afirmar, no art. 1º, parágrafo primeiro, do estatuto do Cruzeiro SAF, que ele se constitui mediante segregação e transferência de atividade do futebol, "em conformidade com o disposto no art. 2º, inciso II, e art. 3º, da Lei da SAF", comete-se, no caso concreto, uma contradição insuperável, de natureza formal, pois a constituição decorre de um ou de outro evento, e não de ambos.

E, ao se analisar a ritualística adotada pelo Cruzeiro, não resta dúvida de que se operou um drop down, e não a cisão, na forma da Lei das Sociedades por Ações, que autorizaria, aí sim – e somente aí -, a extensão da pretensão responsabilizadora ao Cruzeiro SAF.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.