Meio de campo

Sunderland, o futebol brasileiro, a SAF e o problema do cartolismo

Advogado Rodrigo R. Monteiro de Castro trata, a partir da referência ao time inglês Sunderland, do futebol brasileiro, da SAF e do problema do cartolismo.

4/5/2022

A primeira – e talvez principal – lição que se extrai da série Sunderland 'Til I Die, disponível na plataforma Netflix, consiste na revelação da importância que o time de futebol exerce em relação à população da cidade que ostenta o mesmo nome.

Localizada no nordeste da Inglaterra, Sunderland se manteve, durante décadas, de três atividades principais: mineração, indústria naval e pesca. Todas apresentaram, por distintos motivos, sinais inequívocos de decadência e deixaram rastros de desilusão e desemprego – sendo um ou o principal desses motivos, segundo a convicção local, a integração à União Europeia, o que se reflete na massiva votação favorável ao Brexit.

É nesse ambiente que se introduz o mote da série: a paixão – que não deixa de ser uma válvula de escape aos problemas sociais e existenciais – pelo time. Afirma-se, aliás, em certa passagem (que deve ser contextualizada), que o time de futebol é a coisa mais importante que restou aos habitantes locais; uma espécie de sopro de esperança por dias gloriosos que se conheceram no passado.

Antes de passar ao tema principal do presente texto – a relação das gentes com o esporte –, vale chamar atenção para o fato de que, até o ano que antecedeu o recorte cronológico adotado pela série, o Sunderland jogara 10 temporadas seguidas na Premier League, mas vinha de ser rebaixado para a “segunda divisão” inglesa, denominada Championship. Atualmente, o time disputa a League One, correspondente à terceira divisão nacional.

Nem por isso a paixão – embora eventualmente tumultuada – se arrefece (mesmo que, em momentos extremos, se transfigure em raiva).

Partindo-se, agora, do Brasil, o tema pode ser encarado sob dois ângulos.

O primeiro, relaciona-se ao papel que o futebol poderia cumprir como atividade relevante tanto econômica, como socialmente. O segundo, envolve o enfrentamento e o solucionamento da relação (quase) eterna entre o torcedor e o veículo de detenção da propriedade de sua paixão – o clube –, historicamente manipulada por uma classe intermediária: a cartolarial. 

Sobre o primeiro ponto, deve-se, é óbvio, evitar comparações absolutas. Inglaterra e Brasil não se confundem, assim como as conformações históricas e econômicas de (e do) Sunderland não encontrarão paralelo fidedigno em rincões locais e os times que os representam. Mesmo diante das diferenças, um elemento se prolifera e se imiscui nas realidades não apenas de cidades dos dois países, como de milhares e milhares de outras – sem eufemismo – espalhadas pelo planeta: o futebol.

E aí se revela o pecado que se comete contra o Brasil e o brasileiro, em geral, por sucessivos governantes, que ignoram, solenemente, a importância da atividade – ignorância que é subvertida, via de regra, apenas para aproveitamento momentâneo de oportunidades egoísticas ou de posições políticas.

Ou seja: o futebol não deveria ser tratado ora como mera expressão de entretenimento e, em outros momentos, como um fardo econômico, dado o seu bilionário estoque de dívidas, que se acumula à conta do contribuinte; isto é, do trabalhador brasileiro.

Não é isso, de modo algum: sob uma forma organizacional que se aproximasse dos modelos dominantes europeus, mas olhando-se para e se apropriando da essência e das realidades locais – em uma espécie de processo antropofágico, sob o enfoque popular, e não elitista –, poder-se-ia alçá-lo ao posto de atividade nacional fundamental, promovedora de ascensão social e de desenvolvimento econômico.

O futebol, para o Brasil, não pode se transformar no que o pau-brasil, o diamante, o café ou a borracha, em outros momentos, representaram, sob regimes extrativistas ou de exploração avassaladora; ao contrário, ter-se-ia, nele, a possibilidade de construção de um ambiente sustentável, pujante e tecnológico, visando, inclusive, o protagonismo regional e global. 

Sob o segundo prisma da análise, o Estado e as gentes sempre foram coniventes com o cartolismo e com a apropriação da coisa popular por algumas (poucas) pessoas que, do ponto de vista prático, preocupam-se apenas com elas e os seus projetos particulares.

Claro que há gente idealista e comprometida com um bem maior, mas, mesmo nessas situações especiais, a estrutura vigente engolia os ideais (e os idealistas), moendo e expelindo, com raras exceções – dentre elas o Athletico Paranaense –, mais do mesmo. 

De todo modo, nenhum governante, assim como nenhum cartola, têm o direito de destruir uma relação – ou um sonho –, que se oferece a milhares de famílias ou brasileiros que apostam no futebol como elemento ascensional.

Daí o dever moral e ético, diante da falência sistêmica do associativismo, de se promover uma evolução modelar, capaz de inserir a atividade que, a despeito de sua importância, mantinha-se, até a Lei da SAF, numa espécie de marginalidade econômica.

A resistência do cartolismo, no caso, que se iniciou de modo silencioso e começa a se expressar com mais vigor, não expressa ato de bravura, mas de pactuação com o atraso e com o, de certo modo, descaso com o torcedor e o cidadão comum.

Nesse sentido, às falácias históricas que sustentaram o modelo – tais como “o futebol é nosso”, “a situação no Brasil é diferente” e o que funciona na Europa não funcionará por aqui, e “o torcedor não aceitará a entrada de investidor” –, soma-se uma que já se ensaia para justificar a manutenção do poder cartolarial: “a história e as glórias do passado têm um valor subjetivo, impeditivo da precificação de uma operação monetária”.

Mas não adianta achar que, num ambiente globalizado, competitivo e demandador de capitais, times tradicionais em crise – e quase todos estão, em maior ou menor intensidade – conseguirão retomar, apenas com a boa vontade de abnegados (ou com uma plataforma supostamente pautada na honestidade, ética e trabalho), as glórias pretéritas. Ou que os times em ascensão, que poderiam subverter o eixo de força do futebol nacional, como o Fortaleza, conseguirão repetir, de modo recorrente, façanhas como a de 2021, no campeonato brasileiro.

Não vão.

 O sistema jurídico, pela primeira vez, oferece aos clubes um caminho para que a passagem ao modelo empresarial ocorra num ambiente regulado, em que o próprio clube poderá, em decorrência de lei, exercer a função de guardião das tradições do time, de modo inafastável por qualquer pessoa ou investidor, independentemente de seu poder econômico.

Esse é o fato da realidade: a Lei da SAF, de autoria do Presidente do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco, oferece, de modo inédito desde a introdução do futebol no País, caminhos – e não apenas um – para que, levando-se em conta a realidade de cada time, estruturem, se quiserem, projetos de resgate e afirmação de importância econômica e social, local, regional e nacional do futebol.

O não querer tem muito mais – senão apenas – a ver com a sustentação de interesses privados do que com a aderência cultural da torcida. Porque não é para um grupo político ou para uma pessoa, travestida de salvadora, ou mesmo para um clube associativo, que se torce – é para o time, que expressa, aliás, um conjunto de valores que somente o respectivo torcedor sabe capturar.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.