No último dia 17 de março de 2022, foi publicada sentença nos autos da ação trabalhista 0010052-44.2022.5.03.0012, julgada pela MM. Juíza da 12ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte.
A sentença, em síntese, reconheceu a responsabilidade da SAF constituída pelo Cruzeiro Esporte Clube (Reclamado) por valores supostamente devidos pelo Cruzeiro Esporte Clube, anteriores à constituição da SAF, ao Reclamante.
O primeiro ponto a ser obrigatoriamente mencionado é o mais profundo respeito pela atividade jurisdicional exercida pela Douta Magistrada, no pleno e regular exercício de sua função de presidir os feitos judiciais e julgar as demandas de acordo com o seu melhor entendimento.
Por mais que a sua decisão tenha sido, aqui e acolá, utilizada para fomentar “discursos apocalípticos”, por aqueles que, desde a edição da Lei 14.193/2021, se propõem a fazer o papel de “coveiros da SAF” a cada situação natural que imponha novos desafios ao indispensável processo de evolução do futebol brasileiro – ora é uma decisão judicial, ora é a repactuação de termos do negócio em algum grande clube brasileiro – tais situações são absolutamente naturais e previsíveis. A Douta Magistrada julgou a ação trabalhista sob sua competência com fundamentos que lhe pareceram pertinentes. Refutáveis, sim? Respeitáveis, sempre!
Discordar dos fundamentos da decisão, como pretendemos fazer, não configura, nem pode configurar, qualquer espécie de desconsideração, desrespeito ou qualquer tipo de argumentação – ad personam – que só serviriam para desqualificar o debate, como, infelizmente, muito se vê nesses tempos difíceis em que nos encontramos.
Tampouco um entendimento emanado em uma ação judicial é capaz de inviabilizar todo o movimento de criação de uma norma de estímulo à adoção da organização profissional pelos clubes de futebol do Brasil, respaldada pela sociedade na edição pelos seus representantes legitimados.
Aos pontos da decisão.
A sentença menciona o artigo 9º da Lei 14.193/2022, apontando que “não se trata de vedação absoluta” à possibilidade de sucessão pela SAF das dívidas do Clube. E nisso tem razão. O artigo citado não veio extinguir a possibilidade de sucessão. Porém, criou situações especiais para a aplicação dos seus efeitos. A sucessão não foi extinta, mas sim, foi mantida, todavia em prazo e condições especiais definidas pela Lei.
A Lei da SAF criou um Regime Centralizado de Execução para possibilitar a apresentação de um plano de pagamento das dívidas anteriormente contraídas pelo Clube, mediante diversas e determinadas condições e num prazo de 6 anos que pode ser prorrogado por mais 4 anos.
Tanto a Lei da SAF não extinguiu a possibilidade de sucessão das dívidas do Clube pela SAF, que o artigo 24 da Lei prevê que a SAF responde pelas dívidas do Clube, subsidiariamente, se ao final do prazo que pode chegar a 10 anos do RCE, as dívidas não tiverem sido quitadas. Ou seja, há sucessão, como dito, mas diferida no tempo e em condições específicas.
A Lei da SAF também impõe obrigações expressas a serem assumidas pela SAF quando do ingresso do Clube no RCE, tais como: a destinação de 20% das receitas correntes mensais auferidas pela SAF e a destinação de 50% dos dividendos, juros sobre o capital próprio ou outra remuneração recebida na condição de acionistas.
Portanto, a Lei da SAF não aboliu a possibilidade de sucessão. Ao contrário, a manteve, mas em condições especiais. Com repasse de receitas da SAF ao clube – ou seja, obrigação da SAF -, com prazo para pagamento de 60% e depois de 100% da dívida, pela responsabilidade subsidiaria da SAF caso o pagamento não seja realizado pelo Clube no prazo. E, ainda, com responsabilização do Clube e dos dirigentes caso os valores dos repasses aqui mencionados não forem usados estritamente para amortização das dívidas. Não é correto dizer que o texto legal tenha mantido a SAF absolutamente indene em relação às dívidas anteriores do Clube que a constituiu. A SAF, em condições especiais, segue tendo obrigações em relação a tais dívidas e, no prazo, inclusive poderá assumi-las, subsidiariamente.
Ou seja, e aqui é preciso que se diga, que o argumento de que “as mazelas do Futebol não poderão ser regularizadas à custa do sacrifício dos trabalhadores” é injusta se aplicável ao caso. Sob o ponto de vista da função social da norma, a Lei da SAF criou para o trabalhador com crédito diante do Clube uma perspectiva de recebimento que, em muitos casos, antes da SAF sequer existia. Antes da constituição da SAF, o Reclamante tinha a perspectiva longínqua de receber seu alegado crédito de uma associação, com dívida perto de 1 bilhão e tantos outros credores, sem nenhuma perspectiva de entrada de novas receitas. Com a SAF, o Reclamante pode se fiar no repasse de receitas e valores de dividendos, na adoção de um plano de pagamento a ser homologado em Juízo e com a obrigação da SAF de quitar a dívida no tempo.
A sentença traz fundamento verdadeiro ao mencionar que a SAF poderá sofrer constrições pelas obrigações anteriores à sua constituição, caso o Clube não cumpra as condições de pagamento das dívidas anteriores previstas na Lei 14.193/21. Mutatis mutandis, esse mesmo fundamento também pode ser utilizado para amparar o entendimento de que, enquanto a SAF estiver realizando os repasses previstos em Lei e o Clube arcando com as demais obrigações legais, não há justificativa para aplicação imediata do preceito da sucessão.
Sobre a alegação de que a ressalva “às atividades específicas de seu objeto social” serviria para tornar a SAF imediatamente sucessora em todas as dívidas decorrentes da atividade do futebol, é fato incontroverso que não foi essa a intenção do legislador. Por óbvio, as dívidas mais relevantes dos clubes de futebol são aquelas originadas da atividade do futebol. Se a ressalva prevista em Lei fosse suficiente para excetuar todas as dívidas decorrentes do futebol de todo o mecanismo de quitação de débitos trazido pela Lei 14.193/2022, teria o legislador criado e refletido na norma mecanismo inútil, porque inaplicável para o “grosso” das dívidas. Sobre o tema, aliás, vale a lição de Rodrigo Monteiro de Castro, um dos autores do texto legal:
“No tocante às atividades específicas do objeto social da SAF, a determinação legislativa foi em outro sentido: a SAF responderá pelas obrigações que lhe forem (expressamente) transferidas (e que somente poderão estar associadas ao seu objeto), conforme disposto no parágrafo 2°, do art. 2° da Lei 14.193/21.” (n.g.)1
A toda prova, a Lei 14.193/2021 expressamente afastou a possibilidade imediata de sucessão pela SAF de dívidas originadas por atividades não ligadas à prática do futebol profissional pelo Clube, bem como oriundas de relações que se extinguiram antes da constituição da SAF, como se verifica no caso que foi objeto da sentença.
Porém, o afastamento da responsabilidade da SAF advinda da sucessão não é, nem jamais se pretendeu ser absoluta – e nisso também acertou a sentença - porque a mesma legislação incumbiu obrigações à SAF a partir da adesão do clube ao Regime Centralizado de Execução e prazo para pagamento das dívidas pelo Clube, antes que a SAF as assuma, subsidiariamente.
Ao não aplicar norma expressa da Lei 14.193/2021, a sentença, com todo respeito, derroga legislação que foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Poder Executivo, na estrita observância do regular processo legislativo, refletindo a vontade da sociedade, por seus representantes, em ver em vigor norma de estímulo à adoção do modelo empresarial pelos clubes de futebol brasileiro. A sociedade, por seus representantes, optou por inserir disposições específicas para o pagamento das dívidas dos Clubes de futebol anteriores à constituição da SAF, como forma de estimular a migração do modelo associativo para o modelo empresarial. Tal vontade e representação devem ser respeitadas, visto que sobre elas, a sentença não apontou sequer vício constitucional, o que poderia fazer em controle difuso.
No que diz respeito ao conceito de grupo econômico previsto no art. 2º da CLT, o primeiro elemento a ser citado é que, lei especial e posterior à CLT – no caso a Lei 14.193/2021, veio afastar, não o conceito em si, mas seus efeitos imediatos para o caso de constituição da SAF e adesão pelo Clube ao RCE.
Norma de hermenêutica aplica-se ao caso: lei posterior e especial prevalece em relação à lei anterior e geral.
No caso, a Lei 14.193/2021, posterior e específica em relação à CLT, jamais pretendeu tornar letra morta a norma prevista no artigo 2º da CLT, mas sim, mitigar seus efeitos em condições especiais e no tempo.
E isso já se dá na prática, na própria atividade do atleta de futebol. A Lei 9.615/98 prevê condições específicas para rescisão do contrato do jogador, que prevalecem em relação à norma geral da CLT.
Nada mais consolidado em nosso ordenamento. O mesmo fenômeno se aplica à norma que regulamenta a atividade do artista, a atividade do trabalhador embarcado... vis-à-vis o que determina a regra geral anterior da CLT.
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1 Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol – Lei 14.193/2021 – São Paulo, Quartier Latin, 2021, pag. 142.