Não pretendia abordar o assunto, descrito no título, neste momento. Mas a assiduidade com que ele vem aparecendo na mídia, nos últimos dias, fez-me antecipá-lo.
Antes, relato uma conversa que tive, há uns 5 anos, na B3 (à época denominada BM&FBovespa), por ocasião de reservado almoço oferecido pelo seu então Presidente, Edemir Pinto, a Raí. O propósito era, além do encontro de dois ícones em suas áreas de atuação, falar sobre o projeto de lei que criava a SAF e de seus impactos no mercado.
Eu talvez não seja preciso – ou melhor, não serei preciso – nas referências que foram utilizadas, pelo Presidente da Bolsa, para apontar o desafio que envolve a formação do mercado do futebol, mas, disse ele, e espero que minha memória não me traia, que a companhia mais exposta na mídia brasileira não geraria mais informação, boato e especulação, em um ano, do que um grande time em apenas uma semana (ou talvez ele tenha dito em um mês).
Daí a complexidade do enquadramento e do cumprimento, por uma SAF de capital aberto (com ações negociadas em bolsa), de normas de mercado, como como as que exigem a divulgação, por intermédio de fato relevante, de decisões, atos, fatos ou negócios que possam influir na cotação das ações ou na decisão de investidor de comprar, vender ou manter ações da SAF.
Imagine-se, nesse sentido, que toda especulação relacionada à saída ou à chegada de um treinador ou de um jogador, ou mesmo um desentendimento interno entre jogador e comissão técnica, ou uma possível lesão de determinado craque, devesse ser explicada, em termos regulatórios, a acionistas e ao mercado em geral. Seria uma panaceia.
A experiência internacional, envolvendo times controlados por companhias cujas ações são negociadas em bolsa, mostra que a utilização de tal expediente ocorre de modo parcimonioso, e quando se trata de algo realmente essencial. No mais, a boataria se mantém como uma prática inafastável da cobertura futebolística.
A situação do Cruzeiro e de seu possível investidor, Ronaldo, pode ser analisada sob a mesma ótica.
Numa operação societária, em que um agente se dispõe a investir recursos em outro agente, resultando na modificação da estrutura de poder do investido, é muito comum, para não se afirmar que é inevitável, que, desde a celebração de um memorando de entendimentos, por exemplo, até a consumação dos negócios pretendidos (com a celebração dos contratos definitivos), ajustes ocorram e desentendimentos a respeito de cláusulas iniciais gerem tensões negociais – eventualmente rupturas e reatamentos –, levando, eventualmente, a modificações da estrutura projetada.
Faz parte do complexo processo de redução de assimetrias e de confirmação da convergência de propósitos, no âmbito de operações societárias.
Até onde meu conhecimento vai, o modelo anunciado por Cruzeiro e Ronaldo continha indicações dos principais elementos do negócio, que não estava fechado (isto é, consumado, em definitivo). Ainda dependia, portanto, da implementação de uma série de condições, dentre as quais a realização de auditoria para verificação da real situação financeira, econômica e patrimonial do clube.
Esse tipo de documento, quando celebrado por duas companhias atuantes em outros setores, costuma ser mantido em sigilo, até que se tenha alguma certeza de que, com base nas informações apuradas, a operação poderá ser consumada.
Idealmente, essa prática também deveria ser seguida, penso eu, no caso do time mineiro. Até porque, a comunicação e a celebração de um documento ainda preliminar pode gerar, como gerou, a expectativa de um desfecho que pode não ocorrer ou, quando ocorrer, acabe revestido de características distintas.
Mas os agentes envolvidos, inclusive experientes assessores financeiros, queriam ou precisavam dar publicidade ao evento.
Há, ainda, outro fator, que não se pode desprezar no plano do futebol: a informação que no âmbito de uma empresa se consegue manter em sigilo, no ambiente do clube talvez não seja possível resguardar. Daí a necessidade de clubes e investidores anteciparem notícias ainda em construção e, sobretudo, de se acostumarem a negociar com a presença de “torcida”.
Esses fatores levam à seguinte conclusão: as pessoas envolvidas na negociação tomaram uma decisão aparentemente precipitada, mas calculada, e convocaram os milhões de torcedores e as dezenas de jornalistas que cobrem o time para acompanhar a sequência de um processo sujeito a revisão de condições e idas e vindas.
Nesse caminho, repita-se, é comum, e nós, expectadores, devemos desde já saber – e conviver com esse fato –, que o investidor pode vir a descobrir que a situação anunciada pelo clube não reflete a sua realidade; ou que clube e investidor, na celebração do memorando de entendimentos, deixaram para momento posterior certas condições para tratamento futuro, após a superação de obstáculos iniciais; ou que esqueceram de abordar algum elemento relevante, passível de acarretar conflitos (eventualmente insuperáveis).
Reconheçamos: o tratamento reservado a discussões que acontecem em uma sala de reunião, que costuma ocorrer entre companhias, provavelmente não se produzirá no plano do futebol, pela natureza quase pública de sua atividade.
Daí a necessidade de se segregar o que é realmente importante do que não é, como se faz na Europa para efeito de publicação de comunicados por companhia aberta, e, assim, tentar isolar os elementos puramente midiáticos daqueles que podem abalar um negócio significativo para milhões de torcedores.
Mais do que isso: a necessidade de se saber que, em uma negociação, os percursos não são sempre lineares, e as soluções nem sempre estão previstas numa lei, como a Lei da SAF, pois compete às partes envolvidas, a partir de determinado chassi regulatório, construir os modelos que lhe sejam adequados (e que não cabe ao legislador definir), mediante a atribuição e precificação de obrigações, deveres e direitos.
Espera-se, pois, pelo bem do Cruzeiro – e do futebol brasileiro –, que as divergências que se tornaram públicas – bem como outras que inevitavelmente surgirão - possam ser solucionadas, reservada ou publicamente, e o projeto conjunto confirmado.