Em participação no programa Roda Viva da TV Cultura, no ano de 1992, Telê Santana fez uma defesa contundente da passagem do modelo associativo ao empresarial, no âmbito e na gestão do futebol brasileiro.
Mesmo quando confrontado, em perguntas formuladas pelos entrevistadores, com dogmas que impediram, por décadas, a evolução gerencial e o acesso aos mercados de capitais pelos clubes (constituídos sob a forma de associações sem fins lucrativos), Telê Santana não hesitou: a perspectiva do lucro e a sua distribuição entre os acionistas – dentre os quais pode ou deve estar incluído o próprio clube criador da empresa –, não seria jamais um problema; mas sim a solução.
Curioso que ele utilizou como exemplo de patologia, impregnada no sistema associativo – e que deixaria de ocorrer em empresas futebolísticas –, a mais corriqueira, inexplicável e suspeita das práticas, consistente na aquisição irresponsável de direitos de jogadores.
Dizia ele que os negócios dessa natureza ocorriam – como ainda ocorrem, com raras exceções – sem critério, sem embasamento técnico ou econômico, e geravam, na maioria das vezes, prejuízos, contributivos dos sucessivos déficits anuais. Ele apostava, pois, que isso deixaria de ocorrer com a mudança de modelo.
A entrevista foi concedida em período que antecedeu a Lei Zico, marco da tentativa de criação do clube-empresa no Brasil. Depois desta lei, datada de 1993, a Lei Pelé, de 1998, também pretendeu promover avanços importantes, mas sofreu mutilações justamente na parte relacionada ao tratamento da empresa do futebol, as quais foram patrocinadas pelos lobbys cartolariais.
De lá para cá, o Brasil assistiu ao filme das transformações promovidas pelos países que se tornaram hegemônicos, fingindo não ter nada a ver com ele. A conta veio, como todos sabem, e se tentou, com a Lei do Profut, remediar o irremediável buraco financeiro.
Não deu certo: o atual estoque de dívidas supera a dezena de bilhões de reais. Aliás, naquela lei também se tentou criar mais um mecanismo de obrigatoriedade de transformação de clube em empresa, em troca de um regime tributário setorial, o que acabou vetado pela Presidente Dilma Rousseff, aparentemente por recomendação do então Ministro da Fazenda, Joaquim Levy.
A sofrida história do processo de libertação do futebol do associativismo, que teve como protagonistas alguns dos nomes mais importantes da história do esporte, dentro e fora de campo, como os mencionados ídolos Zico e Pelé, e o jornalista Juca Kfouri, poderá ter chegado ao fim com o advento da lei 14.193/21 (“Lei da SAF”), de autoria do Presidente do Senado Federal – e do Congresso Nacional –, Rodrigo Pacheco (PSD/MG).
Desde que a Lei da SAF passou a compor o sistema jurídico, percebem-se movimentos de diversas ordens, que tendem a contribuir e a fazer com que o conteúdo legislativo se acomode e o novo mercado do futebol se organize.
Casos como os de Cruzeiro, protagonizado pelo pentacampeão mundial Ronaldo Nazário, e Botafogo, encabeçado pelo norte-americano John Textor, sugerem ao Brasil – e ao mundo – que algo muito relevante pode estar a acontecer por estas bandas – e de fato está, com mais de 10 projetos em estudo.
Mas não é apenas no plano clubístico que a movimentação se percebe. As instituições, aparentemente, começam a responder no tocante às suas competências, de modo a enriquecer o arcabouço normativo e, assim, a principiar a construção de ambiente seguro e mais previsível.
O DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração, ao qual compete, dentre outras funções, “supervisionar e coordenar, no plano técnico, os órgãos incumbidos da execução dos serviços de Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins; estabelecer e consolidar, com exclusividade, as normas e diretrizes gerais do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins; solucionar dúvidas ocorrentes na interpretação das leis, regulamentos e demais normas relacionadas com o registro de empresas mercantis, baixando instruções para esse fim; e prestar orientação às Juntas Comerciais, com vistas à solução de consultas e à observância das normas legais e regulamentares do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins”, dispôs, por meio da Instrução Normativa 112, de 20 de janeiro de 2022, sobre o registro da SAF, de modo que se espera uma padronização de entendimento e de procedimento perante as Juntas Comerciais, constituídas em “órgãos locais, com funções executora e administradora dos serviços de registro” do empresário.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, na esteira de caso envolvendo a Portuguesa de Desportos, baixou a Resolução 861/2022, modificando determinadas resoluções, para definir que (i) as Varas de Falências e Recuperações Judicias da Comarca de São Paulo serão competentes para processar, julgar e executar os feitos relativos às ações principais, acessórias e conexas relativas ao Regime Centralizado de Execuções (“RCE”), previsto na Lei da SAF, (ii) as Varas Empresariais e de Conflitos relacionados à Arbitragem da 1ª Região Administrativa Judiciária terão competência para todo o Estado de São Paulo, excluída a Comarca da Capital, para as ações principais, acessórias, e conexas relativas ao RCE, (iii) o RCE dar-se-á por intermédio de instauração de concurso de credores, sendo que os processos de execução em curso não serão redistribuídos ao juízo centralizador, e (iv) as Câmaras Reservadas de Direito Empresarial terão competência para julgar ações principais, acessórias e conexas relativas ao RCE.
No plano da administração do esporte, a CBF, cujo estatuto prevê, no art. 5º, I, que constitui fim básico, dentre outros, “administrar, dirigir, controlar, fomentar, difundir, incentivar, melhorar, regulamentar e fiscalizar, constantemente e de forma única e exclusiva, a prática de futebol não profissional e profissional, em todo o território nacional”, emitiu o Ofício 246/2022, de 18 de janeiro de 2022, mediante o qual pretende orientar os clubes que desejarem iniciar ou estiverem em processo de constituição da SAF, a respeito, dentre outros temas, de (i) cadastro no sistema Gestão Web, (ii) taxas aplicáveis, (iii) registro de atletas e treinadores, (iv) manutenção de vaga em competições e (v) efeitos da constituição da SAF.
Começa-se, assim, a formar (mesmo que com algumas lacunas e inconsistências) o ambiente jurídico infralegal e regulatório necessário à implementação e à acomodação da Lei Federal – a Lei da SAF – que poderá, enfim, transformar o ambiente do futebol no Brasil (como, aliás, defendia o visionário Telê Santana).